Fest Brasília – Embate político entre pai e filha e “pedalada satírica” agitam a competição

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

A quarta noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro ano 50 mostrou dois filmes que têm a política, permeada por afetos pessoais, como matéria-prima. O curta-metragem, na verdade um média de 30 minutos, “Mamata”, do baiano Marcus Curvelo, constrói-se com a irreverência anarquista de seu diretor, ator-protagonista e nome presente em todas as categorias técnicas (sozinho ou com parceiros), da fotografia ao som.

Já o longa “Construindo Pontes”, da paranaense Heloisa Passos, reflete sobre o Brasil grande dos tempos da ditadura militar e sobre fatos do presente, como o impeachment de Dilma e a caçada jurídica ao ex-presidente Lula. Tudo permeado pela relação da cineasta com o pai, o engenheiro Álvaro Passos, defensor ardoroso dos governos militares instalados pelo Golpe de 1964.

Os dois filmes foram bem recebidos pelo público. O curta mostra Joder, um jovem baiano, muito do folgado, querendo ir ao encontro da namorada nos EUA. Mas ele não tem dinheiro e vê ruir a chance de ser contratado para atuar em campanha política. Pela internet, Joder conversa com a namorada. E, na mesma internet, pesca imagens que simbolizam muito bem o momento em que vivemos (Vanusa cantando um Hino Nacional todo estropeado, patos da Fiesp, David Luís chorando o 7 x 1 etc). Ah, fundamental na trama: Joder deixou a Bahia e veio a Brasília para prestar concurso público. Só que tomou uma “pedalada” alucinógena e perdeu a prova.

A irreverência de Marcus Curvelo (“Mamata” até ganhou título alternativo: “Pedalada”) arrancou sonoras gargalhadas da politizada plateia que, todas as noites, lota o Cine Brasília. Mas delírio mesmo, foi o que aconteceu em outra competição, a Mostra Brasília, iniciada a cada final de tarde.

A competição brasiliense se anunciava, em seu segundo dia, modorrenta e tediosa. Afinal, subiram ao palco, para apresentar dois filmes infanto-juvenis, equipes gigantescas. E como acontece há mais de vinte anos – desde que a Assembleia Legislativa do DF criou a mostra, em parceria com o festival – cineastas candangos fizeram discursos longuíssimos e apresentaram todos (todos!) os integrantes das equipes mais de 30 pessoas cada): do ator principal ao assistente do assistente.

A plateia, em sessão com censura livre, aglutinava muitas crianças e pré-adolescentes (alguns deles presentes também no elenco dos dois filmes). Havia espectadores sentados no chão. A algazarra era total. Havia um verdadeiro clima de “primeiro cinema”, aquele dos anos pioneiros, quando o invento dos Lumière agitava feiras populares.

O curta “O Menino Leão e a Menina Coruja”, de Renan Montenegro, agradou ao público e foi ovacionado. Mas caberia ao longa-metragem “Menina de Barro” a catarse do dia. Vinícius Machado acumula, neste filme, as funções de diretor, roteirista, comontador, diretor de arte e trilheiro. Em sua fala no palco (ele é graduado em Filosofia e autor do longa “Errantes: o Abandono dos Órfãos”), Vinícius deu a entender que assistiríamos a um destes filmes bem intencionados, que denunciam o bullying e falam do atendimento a jovens superdotados.

Depois do cineasta, falou, em nome da imensa equipe, a atriz Marina Mara. E o clima ferveu. Ela avisou que veríamos um filme integralmente bancado por seus realizadores (sem leis de incentivo) e que observássemos “o empoderamento feminino” da narrativa, protagonizada por uma “Mulher Maravilha pré-adolescente, só que de carne e osso”. E declamou, para encerrar, poema feminino e libertário. Foi aplaudida apoteoticamente.

“Menina de Barro” começou com seus temas “ongueiros” e custou a engrenar. Depois, pegou ritmo e mostrou as ações de uma estudante superdotada, Diana (Rafaela Machado), que tenta enfrentar, ao lado do namoradinho, um grupo que atemoriza os alunos mais frágeis. E, nas horas vagas, dedica-se, no banheiro,  a um “clube da luta”, similar ao do filme norte-americano.

O longa-metragem é marcado pelas boas intenções, mas merece atenção por não baratear sua trama. Diana evoca a deusa mitológica, mas é morena e usa cabelos afro. Ao tentar sensibilizar a direção do colégio a promover campanha contra o bullying, ela se decepcionará. Suas ideias e propostas serão barradas, pois – crê a administração – poderá prejudicar a imagem do colégio, arriscado a perder dinheiro e matrículas. A mãe de Diana, interpretada pela feminista e poeta Marina Mara, é uma herdeira do pacifismo hippie e cria a filha sozinha, sendo capaz de enunciar frase polêmica (o homem só é necessário em um momento, o da concepção; em todos os outros, a relação, esta sim permanente, se dará entre mãe filha).

No melhor momento de “Menina de Barro” (atenção, Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos!), Diana é inquirida, pelo namoradinho, sobre suas crenças religiosas. Ela, fato raríssimo no cinema brasileiro, se definirá como “cética”.

Cética, feminista e muito inteligente, Diana será a força gravitacional do filme, que merece exibição no circuito comercial, ainda mais num país que realiza tão poucos filmes para o público infanto-juvenil. E a jovem atriz Rafaela Machado é um talento dos mais promissores. A ovação ao filme, no final, foi algo raras vezes visto no Cine Brasília. Claro que parentes dos muitos pré-adolescentes que povoam o elenco ajudaram a inflar a consagração.

Política e afeto

Na competição nacional, o Cine Brasília estava, mais uma vez, lotado. E o público assistiu, pela primeira vez, nesta edição de número 50, à apresentação dos concorrentes por dois homens, ambos negros. Pai e filho. Os atores Antonio e Rocco Pitanga. Aliás – há que se registrar – nunca se viu, na história do festival, mobilização mais poderosa (e justa) que a feita por profissionais black. Eles têm marcado presença nos debates com rara vitalidade e muitos e duros questionamentos.

Há que se registrar, também, que a produtiva tensão se fez anunciar ano passado, durante seminário (com realizadores negros e indígenas) organizado pela Fundação Ford, em parceria com o festival brasiliense. Representantes black estão, agora, na comissão de seleção (o crítico Heitor Augusto), no júri (Joel Zito Araujo), no quadro de mestres de cerimônia (além dos Pitanga pai e filho, a atriz Mariana Nunes estará entre os apresentadores da noite de entrega dos Candangos). E atores negros estão nos elencos de filmes curtos e longos (caso do baiano “Café com Canela”, do terror “O Nó do Diabo” e no polêmico “Vazante”, que gerou o mais tenso debate desta edição).

Heloisa Passos trouxe a Brasília seu primeiro longa-metragem como diretora: o documentário “Construindo Pontes”. Antes, há que se lembrar, ela se notabilizou como uma das grandes diretoras de fotografia do cinema brasileiro. Entre seus mais de vinte trabalhos nesta função, vale destacar “Mulher do Pai”, “O que se Move” e “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo”. E também “Lixo Extraordinário”, que abriu para ela as portas da Academia de Hollywood (honra atribuída a apenas três documentaristas brasileiros: o saudoso Eduardo Coutinho, João Moreira Salles e Helô).

O filme da cineasta curitibana parte de uma preciosidade: imagens registradas, na década de 1970 e em super 8, do Parque das Sete Quedas, com suas volumosas cataratas. Ela ganhou tais registros de presente. Em 1982, o governo militar brasileiro inaugurou a Hidrelétrica de Itaipu, uma das maiores do mundo, e as Sete Quedas desapareceram, devoradas pela imponente barragem.

Estimulada pelas imagens, Helô resolveu realizar um filme que refletisse sobre o Brasil Grande dos militares vitoriosos em 1964, tendo seu pai, um engenheiro civil responsável por muitas obras paranaenses, como um dos personagens. Ela mesma, cineasta e filha, seria a coprotagonista. O pai, defensor juramentado dos governos fardados, seria confrontado pela filha, defensora de ideias em tudo opostas às dele. As divergências entre pai e filha construíram-se por razões afetivas e políticas. A opção sexual da jovem a levaria a deixar a casa paterna aos 22 anos.

A cineasta encontra no pai um interlocutor decidido, sedutor, que não se arrepende do apoio total aos governos militares e que repete, diversas vezes, que “naquele tempo, havia um projeto de país”, mesmo que autoritário, a ponto de torturar e matar os que não comungassem do mesmo ideário.

O filme esboça caminhos que nos fazem crer que veremos narrativa de fundo ora ecológico (os grandes espaços naturais perdidos em nome do progresso), ora afetivo (as relações familiares da cineasta), ora político (o projeto de Brasil Grande comandado pelas Forças Armadas). Ao fim de enxutos 72 minutos, nos deparamos, para valer, com poderosas imagens de arquivo (Costa e Silva visitando imenso canteiro de obra), com mapas nos quais o engenheiro Alvaro Passos desenha o percurso das estradas de ferro (ou asfalto) que ajudou a construir e com fotografias que evocam um tempo marcado pelo autoritarismo.

Veremos também acaloradas discussões entre pai e filha sobre o Brasil de nossos dias, marcado por “golpe parlamentar (na opinião dela) e por “legítimo impeachment” (na dele), sobre o papel da Rede Globo no processo (a cineasta irrita-se com o escarcéu midiático da emissora no dia em que o ex-presidente Lula foi alvo de condução coercitiva) e sobre a figura de Sérgio Moro, que ele venera e ela questiona com veemência.

Durante o debate de “Construindo Pontes”, houve quem reclamasse por mais espaço para a opção sexual da realizadora (explícita no filme, mas sem muito alarde, pois o foco era o embate entre pai e filha) e questionasse o final. Para alguns, o desfecho soou “conciliador”. Para outros, matizado e necessário – vide a metáfora da construção de pontes – neste momento, em que o país está embrutecido por paralisante polarização entre “golpistas” e “golpeados”.

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