Nada a Perder
A se julgar pelo desempenho de público verificado no complexo Cinemark Praiamar, em Santos, da primeira sessão de “Nada a Perder” – estreia desta quinta-feira, 29 de março, em mais de mil salas – o segundo longa-metragem da Record e Paris Filmes ficará bem distante de seu bem-sucedido antecessor, “Os 10 Mandamentos”.
Os dois filmes, ambos dirigidos por Alexandre Avancini, são bem diferentes. O primeiro, um épico bíblico nascido como telenovela e condensado em longa com duas horas, vendeu 11,3 milhões de ingressos e, queira-se ou não, transformou-se em fenômeno de público na TV e nas telas dos cinemas. A maior parte dos ingressos, ao que tudo indica, foram comprados antecipadamente por pastores da Igreja Universal do Reino de Deus e distribuídos entre fieis. Muitos atenderam ao chamado e foram aos cinemas.
O segundo, “Nada a Perder”, primeira parte da cinebiografia do Bispo Edir Macedo, criador e principal pastor da Igreja Universal, é um filme convencional e previsível. Não há nada de notável no genérico registro da trajetória do futuro bispo, visto de sua infância em pequena cidade do interior, até ser preso (por 15 dias), no começo dos anos 1990, acusado de “charlatanismo e curandeirismo”. Embora apregoado como “um mix de drama e ação”, o novo longa não é nem uma coisa, nem outra. Nada tem de dramático e como filme de ação, é decepcionante.
Em 2016, “Os 10 Mandamentos” chegou aos cinemas depois de, como telenovela, causar furor. Os capítulos que mostraram as pragas do Egito e a abertura do Mar Vermelho alcançaram índices de audiência altíssimos e perturbaram a paz da poderosa Rede Globo.
A primeira sessão do épico bíblico na Rede Cinemark, em Santos, teve lotação esgotada. Dos 222 lugares disponíveis, todos estavam vendidos e ocupados. Fui assistir à sessão e não havia nenhuma poltrona disponível para venda. Somente a fila dos cadeirantes, que traz algumas poltronas para acompanhantes. A bilheteira informou que não podia vender tais assentos. Por insistência, já que a sessão ia começar e não havia nenhum cadeirante com seu respectivo acompanhante na fila, consegui acesso à sala (realmente) lotada. O público assistiu ao filme do começo ao fim, (re)encantou-se com as cenas das pragas do Egito e, em especial, com a abertura do Mar Vermelho (apesar do tom genérico dos efeitos especiais). Os comentários eram audíveis, pois explicitados com entusiasmo pela plateia, formada em parte por pessoas que nunca tinham ido ao cinema.
Nesta quinta-feira, 29 de março, na mesma sala, chegara a vez de “Nada a Perder – Parte 1”. Ao me dirigir à bilheteria para comprar ingresso para a sessão das 16h, a bilheteira me avisou que só havia disponibilidade nas duas primeiras fileiras, A e B, debaixo da tela. Todas as outras estavam vendidas.
Na entrada da sala, dois jovens me ofereceram um “lenço” pequeno que continha mensagem religiosa. E me avisaram que, ao final do filme, eu compreenderia a razão de tal oferta. Antes do início da propaganda (de plano médico para idosos) e dos trailers de filmes religiosos, programas futuros da Rede Cinemark, contei o público presente: 33 pessoas. Enquanto os traillers eram exibidos, chegaram oito retardatários. Total: 41 espectadores, numa sala de 222 lugares (todos “comprados”, com exceção das filas A e B). Ficaram, portanto, vagas, 181 poltronas.
A plateia assistiu ao filme em silêncio, sem demonstrar nenhuma reação de entusiasmo. Um risinho aqui, outro ali, mas foram raros. Terá a primeira parte da cinebiografia de Edir Macedo o poder de mobilização de público de “Os Dez Mandamentos”?
Os distribuidores do filme (a Paris Filmes, de Márcio Fraccaroli, com a Downtown, de Bruno Wainer, na retaguarda) garantem que foram vendidos, antecipadamente, perto de 4 milhões de ingressos. Se este dado for real, há que se constatar, em definitivo, que a Igreja Universal e seus pastores estão comprando imensas quantidades de ingressos para distribuir entre os fieis. Mas o interesse destes potenciais espectadores pelo filme está, ao que tudo indica, a anos luz do interesse despertado pelo épico bíblico. Basta citar os 222 espectadores da sessão do Cinemark Praiamar Santos, presentes para ver a primeira sessão do épico religioso, e os 41 espectadores de hoje (no mesmo local e horário).
Há que se registrar, aliás, que “Os 10 Mandamentos”, em sua versão telenovela, continua mobilizando grandes plateias. Nesta semana (a última de março), Patrícia Kogut registrou em sua coluna de TV, em O Globo, que o folhetim bíblico, reprisado diversas vezes, acaba de atingir 12 pontos no ibope (enquanto novelas inéditas da Record não chegam a dois dígitos).
Em 2016, a imprensa cultural brasileira registrou, em diversas reportagens, que a espantosa bilheteria de “Os 10 Mandamentos, o Filme” era suspeita. Afinal, havia “salas com lotação esgotada” nos guichês de ingressos, mas quase vazias na hora da sessão propriamente dita. Vale ponderar que tal realidade se verificou nas semanas em que, na ânsia de ultrapassar “Tropa de Elite 2” (11,1 milhões de ingressos), o então campeão brasileiro de bilheteria, a Record passou a apelar a todo e qualquer expediente. (O Brasil só passou a computar dados de bilheteria a partir do final da década de 1960, quando foram criados mecanismos de acompanhamento pelo INC e, depois, pelo Concine, até 1990. E pela Ancine, daquela década até hoje).
Ninguém comprou ingressos para distribuir de graça entre os potenciais espectadores do filme de José Padilha, nem do segundo colocado, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto (10,9 milhões, em 1976). Houve – e isto é ponto pacífico – compra de grande quantias de ingressos para “Os 10 Mandamentos” e, agora, para “Nada a Perder”. O grupo Kinoplex contou ao jornal O Globo (29/03/18) que vendeu, sim, a preço de meia-entrada, pacotes com mais de 100 ingressos a diversos grupos de interessados.
Por isto, vale perguntar: é justo comparar bilheterias como a de “Tropa de Elite 2” e a de “Os 10 Mandamentos”?
Sim e não. Se levarmos em conta que quem foi ver o filme de Padilha pagou por seu próprio ingresso e realmente ocupou a poltrona para assistir ao filme, a comparação se mostra injusta. Já boa parte de quem viu o épico bíblico da Record ganhou o ingresso de graça. E alguns dos presenteados nem foram ao cinema ver o filme (daí o fenômeno das “cadeiras cinéfilas”). Portanto, o hiperbólico e bíblico dado dos “10 Mandamentos” só tem valor econômico, já que os exibidores, que não são bobos, receberam o valor do ingresso, mas o número real de espectadores é, sim, dos mais questionáveis.
“Nada a Perder”, parte 1, terá dificuldade de mobilizar grandes plateias, porque é um filme sofrível. Seus diálogos são primários e recheados de chichês. Sua narrativa tem a profundidade de um pires. Suas 2 horas e 15 minutos passam lentas pela tela. Tudo é genérico. A fé que toma conta de Edir Macedo desde a adolescência não convence a ninguém. Sua vida amorosa não desperta maiores interesses. Seu enriquecimento empresarial (como pregador e dono de uma grande rede de televisão) é tratado de forma apressada e inconvincente. Só um indício de seu enriquecimento – ajuda acidental do Plano Econômico de Zélia Cardoso de Melo, a ministra da Economia de Collor – nos é oferecido, mas com imensa superficialidade.
O roteiro de “Nada a Perder” é descosturado. Num certo momento do filme, durante uma pregação, Esther e o Bispo Edir adotam um bebê, que se chamará Moisés. Só que ele desaparece da trama, sem deixar vestígio. Mesmo caso de anunciadas incursões do Bispo em missão religiosa pela África (decerto o Moisés adotado e a pregação em Angola e Moçambique ficaram para a Parte 2). E mais: quem já viu moleque do interior, no Brasil dos anos 1950, subir em árvore com sapato e meia?
E, o mais grave, ninguém presta no filme. Só o núcleo familiar de Edir Macedo e dois de seus pastores-assessores têm valor. Nem o pastor (interpretado por Arthur Khol) da igreja frequentada pelo jovem Edir (que até tentará demover a bela Esther de se casar com o rapaz pobretão), nem o cunhado, também pastor (R.R. Soares/André Gonçalves), nem a Igreja Católica (vilã total, pois representada por um bispo que quer acabar com a Universal e, para tanto, se alia a representantes do Governo), nem a Justiça (Dalton Vigh interpreta um juiz que vive para perseguir o telebispo).
O filme se constrói sem ganchos mobilizadores, o elenco é opaco (o experiente Petrônio Gontijo, o protagonista absoluto, beira a canastrice ao endurecer o queixo sempre que Edir enfrenta alguma adversidade), a banda sonora é excessiva e apelativa, a contextualização histórica é pífia, a vilanização de quem ousar se opor a qualquer ato do líder religioso será, além de enfadonha, recorrente.
Até os trombeteados 8 mil figurantes chegam para causar constrangimento. Afinal, eles foram filmados numa manifestação em favor do bispo quando ele estava encarcerado. A mesma sequência (com o mesmo número de pessoas, no mesmo lugar, com as mesma roupas) foi usada para o momento em que o Bispo deixou, dias depois, o presídio. Para um filme que custou R$ 20 milhões (foram anunciados R$ 40 milhões para as duas partes) esta é uma falha risível.
Para piorar ainda mais o que “Nada a Perder” tem a mostrar, cheguemos ao final, composto de puro e explícito proselitismo religioso. O Bispo Macedo da vida real, hoje septuagenário, aparece para explicar-justificar o “lencinho” recebido por todos os espectadores na entrada da sala e para fazer uma oração. Nunca se viu tamanha instrumentalização do cinema, em solo brasileiro, em seus mais de 120 anos de história.
Por Maria do Rosário Caetano