Em Nome da América
Um boato – “o de que o jovem Steven Spielberg, para fugir da Guerra do Vietnã, teria integrado os Peace Corps (Voluntários da Paz) no Nordeste brasileiro” – serviu de estímulo original ao documentário “Em Nome da América”, de Fernando Weller, estreia desta quinta-feira, 5 de abril, nos cinemas.
Weller, que é professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), deixou o boato de lado para mergulhar em história apaixonante: a presença, ao longo dos anos 1960 e 1970, de seis mil Voluntários da Paz, no Nordeste brasileiro. Estariam aqueles jovens norte-americanos a serviço da CIA? Eram peças no tabuleiro da Guerra Fria? Ou apenas jovens idealistas que, vindo prestar serviços (enfermagem, nutrição, cooperativismo, educação), em regiões miseráveis do Brasil, ajudavam a minorar os sofrimentos de milhares de desvalidos?
Para responder a esta e a outras perguntas, o fluminense (radicado em Pernambuco) Fernando Weller, 39 anos, mergulhou em importantes arquivos brasileiros e norte-americanos, leu diversos livros e entrevistou dezenas de ex-voluntários. Entrevistou, também, um “espião”, Tim Hogen, descrito outrora como charmoso e irresistível galã, que falava português fluente.
O hoje septuagenário Hogen não perde a calma, nem a verve. Em sua casa, nos EUA, ora se expressando em português, ora em inglês (para não ser traído pelas palavras), rebate acusações registradas no livro “A Revolução que Não Houve”, de seu conterrâneo Joseph A. Page. Nesta publicação, editada também em português (Record, 1972, com tradução de Ariano Suassuna), Page garante que Tim Hogen escondia, por por trás da fachada de mero funcionário do governo dos EUA, a máscara de espião destinado a ajudar no desmantelamento das Ligas Camponesas. Ele espionava e financiava cooperativas agrícolas no Nordeste brasileiro. E, para desempenhar tais tarefas, contava com parceira sólida, a Igreja Católica (em especial com os padres Paulo Crespo e Antônio Melo).
O mundo da Guerra Fria, nos lembra o filme, antagonizava capitalistas, representados pelos EUA, e comunistas (a URSS e seus satélites). Como Cuba promovera, no final dos anos 1950, uma revolução socialista, a paranoia de que movimentos revolucionários se multiplicassem pela América Latina só fazia crescer. Ao desembarcarem no Brasil, no começo dos anos 1960, os Voluntários da Paz (e o “espião” Tim Hogen) pretendiam, com ajuda de padres preocupados com um possível triunfo do materialismo comunista e o consequente fim do Cristianismo, melhorar a vida dos camponeses brasileiros, afastando-os das Ligas Camponesas e de seu líder, Francisco Julião.
Além de “A Revolução que Não Houve”, de Joe Page, Fernando Weller trabalhou com outro livro fundamental, “Em Nome da América – Os Corpos da Paz no Brasil”, de Cecília Azevedo (Editora Alameda, 2008). Este livro, que emprestou seu título ao filme, ajudou o cineasta “a contextualizar os interesses dos EUA no golpe militar de 1964 no Brasil, a Guerra do Vietnã e a infiltração da CIA na América Latina”. E, o que mais interessava a Weller, recuperar histórias dos voluntários que participaram do programa Peace Corps, criado em 1961, pelo presidente Kennedy.
O programa governamental norte-americano nasceu como representação da imagem modernizante da era Kennedy. Opunha-se, com a inteligência do soft power, à imagem do norte-americano imperialista e arrogante, então difundida pelo mundo. O jovem presidente, que seria assassinado dois anos depois, convocou uma verdadeira legião de jovens idealistas, recém-formados em universidades, e afinados com o discurso de solidariedade e voluntarismo de luta contra a fome e a pobreza.
“Em Nome da América” mostra o medo das elites agrárias brasileiras de que o Nordeste se tornasse uma “nova Cuba”. Um pernambucano, proprietário da Usina Catende, armado e articulado, deixa claro em depoimento ao documentário “Brazilian: The Troubled Land” (Helen Rogers, 1961), que mataria quem se metesse a organizar seus trabalhadores. Para, em seguida, concluir: “meus camponeses são preguiçosos, não têm cabeça para poupar. Se eu pagar mais, eles trabalham apenas dois dias por semana”.
Além de “Brazilian: The Troubled Land”, outro documentário desempenha importante papel na narrativa de Fernando Weller: “The Foreigners”, de Mark Jonathan Harris, produzido na América Hispânica (em especial na Colômbia), em 1968. O cineasta brasileiro conta que o documentário de Harris nasceu “como encomenda” e com objetivo de retratar os Peace Corps. Mas o resultado saiu bem diverso do que fora encomendado. Em trechos do filme, camponeses questionam com veemência a intervenção dos EUA em outros países. Um deles pontua: “Vocês dizem que vão nos civilizar. Mas como, se levam todas as nossas riquezas, se intervieram na Guatemala e tomaram parte do território mexicano?!”. Por isto, “The Foreigners” caiu no ostracismo. Nem o diretor tinha cópia para ceder ao colega brasileiro. Mas acabaram por encontrá-lo num dos poderosos arquivos norte-americanos.
Há, no documentário “Em Nome da América”, depoimentos de grande força. No primeiro deles, o voluntário Bob Dean, que esteve no Nordeste entre 1969 e 1971, relembra com emoção sua experiência, reafirma seu amor pelo Brasil, bebe guaraná Antártica, toca seu violão e canta “Carolina”, de Chico Buarque.
Outra voluntária, Nancy Scheper-Hughes, recorda que chegou ao Nordeste “quatro meses depois do golpe militar”. Já Selma Sawaya chora ao lembrar que vacinava crianças paupérrimas, pele e osso. John Reeder lembra que os voluntários eram orientados a não se envolver com política.
Bruce Jay, por sua vez, conta que um integrante das Ligas Camponesas levou cinco tiros e foi parar em uma unidade médica. Ele, em pessoa, foi lá, saber notícias do camponês, mas acabou informado de que “tinham ordem para não prestar ajuda àquela pessoa”. Que, pelo que soube, morreria e seria enterrada em cova sem nome. O ex-voluntário Wally Winter conta que, quando chegou ao Nordeste, alguns moradores pensaram que ele fosse espião.
Outro depoimento que chama atenção no filme de Weller é o de Stephen Dachi, hoje professor universitário. Ele divide a vida humana em cinco fases. A primeira, idealista, a segunda, pragmática, a terceira, realista, a quarta, cínica. A última, amargurada. O filme mostra, então, imagens de uma voluntária na Jamaica, ensinando crianças negras a preparar comidas capazes de garantir boa nutrição. O faz com figuras de papel-cartão e não com ingredientes reais.
Fernando Weller lembra que o perfil dos jovens norte-americanos que vieram atuar no Nordeste brasileiro “era diverso”. Uma parte “vinha tocada pelos movimentos dos Direitos Civis que varriam os EUA nos anos 1960 e esperava encontrar no programa uma forma de ativismo social”. Outra parte, “via nos Peace Corps uma forma de escapar da Guerra do Vietnã”.
Quem tem pouco conhecimento da História do Brasil do tempo das Ligas Camponesas e da Guerra Fria terá que prestar muita atenção na complexa trama tecida por Weller. Sendo professor universitário (com mestrado, na UFF, doutorado, na UFPE, e estágio doutoral no Canadá), o cineasta quis realizar um filme denso como os livros que lhe deram origem. E sem postura panfletária. Até porque são dolorosos os depoimentos atuais da gente pobre, sobreviventes da região (Bom Jardim, Orobó etc.) que mais integrantes dos Peace Corps recebeu.
Uma senhora negra, Irene da Silva, diz que não pode falar muito por ser gente “pequena”. Já a ex-voluntária que a visita (norte-americana e branca) é gente “grande”, pode dizer tudo que quiser. Em outro momento, no final do filme, o dono de modestíssima birosca é instado a dar nome à réplica da Estátua da Liberdade, plantada em sua comunidade, e expressar opinião sobre os americanos, que lá estiveram. Suas respostas são desconcertantes: “Esta estáutua é da Princesa Isabel, né?”. E mais: “O que acho dos americanos? Isto é para quem sabe ler. Sou analfabeto, tenho 73 anos. Não sei ler”. E mais não disse.
A se julgar por tais depoimentos, os espectadores até poderão concordar com “o charmoso espião” Tim Hogen, cercado de álbuns de fotografia e visto em programa de TV (“To Tell The Truth – American Games Shows”, 1972). Ao ser indagado (por Weller e no tempo presente) se participara, com as cooperativas que ajudou a criar, da interrupção de processo revolucionário que estaria em curso no Brasil, ele foi de sinceridade desconcertante: “o brasileiro é muito desorganizado, (aqui) não haveria revolução comunista, ao contrário de Cuba, pois os camponeses cubanos eram instruídos, os brasileiros, não”.
Em Nome da América
Documentário (PE), 96 minutos, 2018
Direção: Fernando Weller
Prêmio Petrobras de melhor filme documental na 41ª Mostra Internacional de SP
Assista ao trailer do filme aqui.
Por Maria do Rosário Caetano