Festival de Gramado

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

“Ferrugem”, longa curitibano de Aly Muritiba, quinto concorrente da competição brasileira do Festival de Gramado, chegou para confirmar a boa qualidade dos títulos selecionados. Uma das melhores da história do festival gaúcho. Até agora, os filmes vão de bom a ótimo. Nenhuma decepção.

Com a retirada de “O Banquete”, de Daniela Thomas, da disputa pelos Kikitos, resta aguardar a exibição de mais três longas (o carioca “10 Segundos para Vencer”, cinebiografia de Eder Jofre, dirigida por José Alvarenga Jr., o gaúcho “A Cidade dos Piratas”, de Otto Guerra, e o gaúcho-carioca “O Avental de Rosa”, de Jayme Monjardim (que substituiu a comédia black “Correndo Atrás”, de Jeferson De).

Para retirar “O Banquete” da competição, Daniela Thomas, que esteve no centro de acirrado debate no Festival de Brasília (com “Vazante”), alegou “momento inoportuno para o encontro entre a ficção e a realidade”, no momento em que se deu a morte prematura do publisher da Folha de S. Paulo, Otávio Frias Filho. A cineasta entendeu que, neste momento de luto, a exibição de “O Banquete” poderia gerar “interpretações equivocadas, suscitadas pela ficção”. Uma das matérias constitutivas do novo longa de Daniela é carta aberta que o jornalista, editor e proprietário do Grupo Folha, dirigiu ao então presidente Fernando Collor.

Entre os cinco longas brasileiros exibidos até agora, “Ferrugem” está posicionado no time dos melhores. Depois de um longa documental (“A Gente”) e de substantiva estreia na ficção (“Para minha Amada Morta”), Muritiba reafirma seu talento e, o que é melhor, sua capacidade de realizar filmes que não se descuidam de aspectos formais e conceituais, ao mesmo tempo, não escondem seu desejo de comunicar-se com o público.

Sob o enigmático título de “Ferrugem”, está um drama adolescente construído em fina sintonia com a geração ultra-conectada de nossos dias. Num colégio da elite curitibana, jovens bonitos e saudáveis estudam, namoram, proferem (ou desenham nas portas e azulejos dos banheiros) bobagens eróticas e disparam infinitas imagens e mensagens.

Até que o ato de um destes jovens (não sabemos quem foi) coloca, na rede digital, vídeo privado de uma jovem (Tati, interpretada pela expressiva atriz Tifanny Dopke). Ela e o então namorado haviam registrado cenas íntimas com a câmera de um celular. De volta ao colégio, depois da brutal exposição, a adolescente é vítima de todo tipo de bullying. E o vídeo vai parar até num site pornô, apregoado com chamada apelativa: as aprontações eróticas da “Novinha”.

Na primeira parte do filme, acompanhamos o impacto que tal exposição provoca na vida de Tati. Na segunda, nos envolvemos com as angústias de Renê (Giovanni de Lorenzi). Impressionante a expressividade e o denso frescor dos dois jovens que protagonizam o filme de Aly Muritiba. Com eles, estão dois atores profissionais e tarimbados: Enrique Diaz, que faz um professor de Ciências e pai de Renê, e Clarissa Kiste, a mãe (separada da família, pois constituiu nova relação conjugal). O elenco de apoio (Pedro Inoue, Dudah Azevedo, Nathalia Garcia, Giovana Negrelli) também rende muito bem. Os diálogos são curtos e precisos. A fotografia do português Rui Poças é de beleza densa e reveladora. Primeiro, no registro próximo dos corpos dos adolescentes. Depois, numa praia-refúgio, ensopada pela chuva, onde a culpa atormenta um deles e sua família.

Ao apresentar “Ferrugem” ao público, no Palácio dos Festivais, o produtor Antônio Júnior, da Grapho, reafirmou a importância de se produzir filmes em todos os Brasis. E lembrou que “Ferrugem” é um produção 100% paranaense. Externou, então, sua preocupação com “o desmonte das políticas públicas que permitiram a regionalização da produção cinematográfica brasileira”.

Aly Muritiba também reafirmou seu apoio incondicional à regionalização e apresentou sua equipe, destacando o talento de seus jovens protagonistas, Thiffany e Giovanni, ela estreante paranaense e ele, paulista. E agradeceu, em especial, sua co-roteirista Jessica Candal. “Sem ela”— afirmou — “eu, que sou homem, heterossexual, cisgênero, não seria capaz de imprimir a sensibilidade feminina que ela trouxe para o filme”. E, por fim, arrancou gargalhadas da plateia ao apresentar o montador João Mena Barreto, “um gaúcho que acaba de viver emoção sonhada por todos seus conterrâneos no nosso audiovisual: passar pelo tapete vermelho do Festival de Gramado”.

O cineasta paranaense, nascido na Bahia, e agora vivendo no eixo Curitiba-São Paulo (ele é um dos diretores da bem-sucedida série global “Os Carcereiros”, com José Eduardo Belmonte), nunca escondeu seu desejo de realizar filmes de empenho artístico, mas que levam o público em conta. Um público exigente, com vontade de aceitar desafios. “Ferrugem” cumpre muito bem este desejo, já a partir do tema: o universo da juventude estudantil, com seus hormônios a mil, suas gírias erotizadas, suas brincadeiras que vão da inocência à estupidez, suas complexas relações familiares. O roteiro, muito bem construído (com seus diálogos secos e cortantes), sua trama com reviravoltas surpreendentes e desdobramentos lacunares (Muritiba prefere definir sua trama como “sutil”) que instigam nossa imaginação. Um forte candidato à conquista de alguns Kikitos.

A quinta noite do Festival de Gramado exibiu o terceiro candidato latino-americano ao Kikito (são apenas cinco). Depois do excelente “Las Herederas”, do Paraguai, com seus 17 prêmios (três deles em Berlim), a competição perdeu força. A comédia argentina “Recreo” é bem-feita e competente, mas não causou impacto. Mesmo caso da simpatissíssima trama juvenil de “Mi Mundial”, coprodução uruguaio-brasileira, dirigida por Carlos Morelli, e protagonizada por dois jovens e promissores talentos, Facundo Campello, o Tito, aspirante a craque dos gramados, e Candelaria Rienzi, a Florencia, sua namoradinha e jogadora do time “As Garrinchas”. Na retaguarda, três craques do cinema uruguaio, Cesar Troncoso, Veronia Perrota e Nestor Guzzini. Dois brasileiros integram o elenco: Roney Villela, na pele de um agente que compra craques em potencial para outros times, e um médico do São Paulo Futebol Clube, interpretado por Fernando Muniz, também coprodutor e distribuidor do filme.

“Mi Mundial”, que baseia-se em livro homônimo de um ex-jogador, Daniel Baldi, conta com um final delicioso, além de saborosa e edificante carta escrita (e lida pelo protagonista Tito) por Diego Lugano, ex-capitão (na vida real) da Seleção Uruguaia. E, também, atleta que fez vitoriosa carreira no São Paulo (hoje, ele é diretor institucional da poderosa equipe paulistana). O vibrante final do filme deve muito à potência magnetizante de melodia e versos de “Los Camiños de la Vida”, cantada por Vicentico. O filme nos toca e cai bem numa Sessão da Tarde. Mas perde força quando comparado a um drama denso como seu concorrente “Las Herederas”.

Os dois curtas da quinta noite nos apresentaram personagens idosos e excepcionais. Mirela Kruel, diretora de “Catadora de Gente”, exercita seu poder de escuta ao dar voz a uma líder de catadores (de lixões) das mais articuladas, Maria Tugira Cardoso. Do lixo, ela retirou o sustento de sete filhos, que lhe deram 22 netos e três bisnetos. Do lixo, ela retirou, também, livros jurídicos (incluindo a Constituição de 1988) e obras literárias (Jorge Amado, Machado de Assis) que a fortaleceram, a ela e a seu discurso cidadão. Por isto, hoje, Tugira, que é presidente da Associação de Catadores de Lixo Amigos da Natureza, se define não como catadora de resíduos, mas sim como catadora de gente, de cidadãos com alma e autoestima.

O outro idoso da noite (no formato curto) foi Manoel do Norte, conterrâneo de João Guimarães Rosa, nascidos, assim como o mineiro Marco Antonio Pereira, os três na mineira Cordisburgo. O filme — de nome singular e impenetrável, “A Retirada para um Coração Bruto” — é a primeira parte de pentalogia que vai do realismo ao delírio nonsense. Que investe no bizarro, sem nenhum pudor. O filme e seu realizador caíram no gosto de curadores de festivais nacionais e internacionais, por sua desconcertante e poética construção. Feito com poucos recursos financeiros e materiais, o curta mistura um sertanejo que perdeu (e enterrou) a esposa num ermo onde Judas perdeu as botas, com rock pauleira e nave comandada por extraterrestres. Na verdade, ao invés de ETs, dela, desembarcam dois roqueiros mascarados, que parecem saídos de uma Folia de Reis.

Da “pentalogia cordisburguiana” já foram realizados mais dois títulos: “Alma Bandida”, que estreou em Berlim, e “Teoria para um Planeta”, que está a caminho de dois festivais internacionais. Os dois faltantes serão realizados em breve e, findos, serão sequenciados pelo primeiro longa-metragem do divertido Pereira. No debate de seu curta, o cineasta fez um apelo: “estou atrás de editora que se interesse em publicar os poemas de Manoel do Norte, um artista de raro talento, que já produziu três livros, todos inéditos, e mais de 70 músicas”. E fez um desabafo: “nossos filmes estão encontrando espaço em muitos festivais, mas — para tristeza de Manoel do Norte — nenhum deles foi projetado na Semana Roseana”, momento máximo da vida cultural do município que cultiva seu filho mais ilustre, o autor de “Grande Sertão: Veredas”.

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