O Paciente
Quarenta anos atrás, o cineasta Sérgio Rezende e sua mulher, a produtora Mariza Leão, mergulharam fundo nas mazelas médico-hospitalares brasileiras. O assunto escolhido era o comércio de sangue. O longa documental “Até a Última Gota”, lançado em 1980, nos contava que, no Brasil, sangue contaminado não poupava nem presidente da República. O poderoso Ernesto Geisel contraíra hepatite numa transfusão.
Pois o casal está de volta ao mundo médico. E, desta vez, para relembrar os 38 dias de agonia de Tancredo Neves, presidente eleito por via indireta, com a nobre incumbência de conduzir o Brasil da ditadura militar à Nova República. Milhões de brasileiros acreditavam que o mineiro de São João del Rey, raposa velha da política, comandaria o alvorecer de um novo tempo marcado pela bonança, democracia e justiça social.
A bilheteria de “O Paciente – O Caso Tancredo”, décimo-quinto longa-metragem de Sérgio Rezende – estreia desta quinta-feira, 13 de setembro – contém ingredientes capazes de ajudar a tirar o cinema brasileiro do atoleiro em que se meteu ao longo deste ano? Lembremos que nem as comédias estão fazendo o sucesso esperado. Romper a barreira do milhão virou desafio de imensas proporções.
A produtora Mariza Leão não esbanja otimismo. Realista, jamais sonhou em ultrapassar, com “O Paciente”, a casa do milhão de espectadores.
Ela espera, então, atingir ao menos os 500 mil ingressos vendidos por “Getúlio” (2014), de João Jardim, protagonizado por Toni Ramos?
Escaldada pelas bilheterias das dezenas de filmes nacionais lançados até este mês de setembro (“Nada a Perder”, sobre o bispo da Igreja Universal, não conta, pois ofertou milhares de ingressos a fiéis evangélicos e as salas, nem assim, tiveram boas lotações), Mariza responde, modesta: “os 500 mil ingressos (de “Getúlio”), em 2014, podem ser 100 mil hoje”. Afinal, “o mercado mudou muito”.
“O Paciente” será lançado “em 60 ou 70 salas, no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Brasília, Salvador, Curitiba e Porto Alegre”. Ou seja, em apenas sete capitais e com número modesto de cópias (um candidato a blockbuster brasileiro ocupa, no mínimo, 400 salas).
Se der boa média, o circuito poderá crescer, mas com cautela. “O Paciente”, afinal, é um filme para adultos. E, hoje, só estouram nas telas nacionais, filmes que têm os jovens, fãs de filmes de super-heróis, ou de terror, como alvo.
“O Paciente” leva o espectador de volta ao Brasil, que se preparava para a posse de Tancredo Neves, no dia 15 de março de 1985. Só que dois dias antes da transmissão da faixa (do General Figueiredo para o político mineiro), intensa dor no ventre levou o eleito à sala de operações no Hospital de Base de Brasília. Suspeitava-se de uma apendicite.
Aqui há que se fazer um registro. Elio Gaspari, um dos mais conhecidos articulistas políticos da imprensa brasileira, garante que Tancredo Neves não contava mais com tal apêndice.
No filme, baseado em livro homônimo do historiador Luis Mir, o apêndice estava no organismo de Tancredo. Mariza comenta o tema: “o Mir afirma que o presidente eleito tinha, sim, apêndice”. Como o roteiro – escrito por Gustavo Liptzein – baseou-se no livro, fruto de anos de pesquisa, produtora e diretor não viram por que duvidar de tal fato.
“O Paciente” conta com elenco notável. O baiano Othon Bastos, de 85 anos (portanto, dez a mais que Tancredo quando viveu sua agonia) e alguns quilos mais gordo, convence com seu imenso talento e desempenho nuançado.
O galã Emílio Dantas, o cantor de axé da novela “Segundo Sol”, está ótimo na pele do porta-voz Antônio Brito. O telejornalista ficou tão famoso na época, graças aos seus boletins médico-otimistas, lidos na TV e rádios, que se elegeria governador do Rio Grande do Sul. Num filme de pouca presença feminina, Esther Góes ilumina a tela com sua compreensiva e dedicada Dona Risoleta.
Paulo Betti esbanja vaidade ao encarnar o Doutor Pinotti, o indicado do “Dr. Ulisses (Guimarães) e de Franco Montoro”, Leonardo Medeiros, revive com nuances o cirurgião Pinheiro Rocha, o primeiro a abrir a barriga de Tancredo. Otávio Muller está perfeito na pele do bonachão e inseguro Dr. Renault, médico do Congresso Nacional, que está sempre ao lado de Tancredo. Idem para o veterano Emiliano Queiroz, como o pacato (e retrógrado) médico da família Neves, que chega de São João del Rey, por gozar de total confiança de Dona Risoleta e seus dois filhos (Tancredo Augusto e Inês Maria). Ele chega com o objetivo de integrar a equipe médica que bate cabeça na tentativa de salvar o presidente eleito, depois de série de procedimentos que só adicionavam novas complicações.
Os médicos ficam mal na fita. São vaidosos, implicam uns com os outros, soltam farpas, não chegam a consensos. Parecem, até, nem querer chegar a um denominador comum. A foto feita para acalmar os brasileiros (na qual se vê Tancredo e Dona Risoleta cercados por “serena” equipe médica) funciona como mais um elemento de ilusão popular. E da vaidade enganadora daqueles profissionais da Medicina.
E os cidadãos oriundos da Paulicéia (médicos e políticos) desdenham do Hospital de Base de Brasília. Repetem que “a melhor saída” para um paciente que passa mal na capital da República “é o aeroporto”.
O Dr. Pinotti chega ao paroxismo. Dá um chilique e se nega a suturar cirurgia (na barriga do presidente eleito que agoniza) se não for com o fio que costuma usar em São Paulo. Acabará levando o paciente num avião UTI para a capital bandeirante. Mas não conseguirá salvá-lo.
Tancredo, para ficar na história de Minas Gerais e do Brasil, tem sua morte anunciada no feriado de 21 de abril, dia do martírio de Tiradentes e da inauguração por JK, por outro mineiro, da nova capital, Brasília. O pátio do InCor, no dia do anúncio fúnebre, parecia a cearense Juazeiro do Norte em dia de romaria de Padim Ciço. O Brasil chorava a perda daquele que viria para “nos redimir das mazelas dos anos de ditadura”.
Algum dos médicos que protagonizam – como personagens batizados com seus próprios nomes – o filme poderá processar o filme, por sentir-se caluniado?
Mariza Leão acredita que não e diz por que: “os fatos abordados no filme são comprovados por todos os prontuários médicos, devidamente publicados no livro do Luiz Mir, dia a dia, hora a hora”. E mais: “muitos destes fatos são fruto de entrevistas dos próprios médicos feitas pelo autor do livro”. E arremata: “nosso filme revela acontecimentos que estão minuciosamente documentados, e desde a publicação de “O Paciente – O Caso Tancredo Neves”, em 2010, portanto há oito anos, nunca foram contestados”.
Filmografia de Sérgio Rezende (Rio de Janeiro, RJ, 1951)
Até a Última Gota (doc, 1980)
O Sonho Não Acabou (fic, 1981)
O Homem da Capa Preta (fic, 1985)
Doida Demais (fic, 1989)
A Child From The South (fic, 1991)
Lamarca (fic, 1994)
Guerra de Canudos (1997)
Mauá, o Imperador do Brasil (fic, 1999)
Quase Nada (fic, 2000)
Onde Anda Você (fic, 2004)
O Cinema É meu Jardim (doc, 2004)
Zuzu Angel (fic, 2006)
Salve Geral (fic, 2009)
Em Nome da Lei (2016)
O Paciente (2018)
Por Maria do Rosário Caetano