Escolas em foco
A produção cinematográfica brasileira mostrou, ao longo de mais de um século de história, desinteresse pela Educação, tema de inegável relevância. Dá para contar nos dedos os filmes, ficcionais ou documentais, dedicados a assunto tão importante e urgente. Mas, depois das recentes ocupações de escolas por jovens secundaristas, em 2015 e 2016, o tema entrou com força na pauta do dia. Está sob foco privilegiado.
Neste momento, dois filmes, ambos longas documentais, chegam ao circuito exibidor. O baiano “Diários de Classe”, de Maria Carolina da Silva e Igor Souza, estreou na quinta-feira, 7 de março. Na próxima semana, dia 14, estreia “Eleições”, de Alice Riff.
“Diários de Classe” ajusta o foco em três personagens – duas mulheres maduras, a presidiária Vânia Costa e a doméstica Maria José Santana, e uma jovem, a transsexual Tifany Moura. As três são negras e originárias das periferias de Salvador.
A escola vai mudar a vida destas três mulheres? O filme não idealiza a educação formal, mas nos fornece importantes subsídios para que compreendamos a complexidade do assunto. E o faz partindo de ótimo título, que dialoga com o obrigatório “Retrato de Classe” (Gregório Bacic, 1977).
“Diários de Classe” nos mostra como cada uma destas três mulheres (Vânia, Maria e Tifany) se relacionará com a educação formal, lembrando que fazem parte de negligenciado, historicamente, contingente de 13 milhões de analfabetos ou semi-alfabetizados brasileiros.
Vânia estuda, na medida do possível, o Código Penal em busca de redução para sua pena. Ela não pode pagar um bom advogado e a Defensoria Pública tem que atender a milhares de pessoas como ela. A detenta conta com o afeto da filha adolescente, que a visita com a frequência possível, mas o desafio é grande demais para as duas.
A situação da doméstica Maria José Santana é igualmente complicada. Embora esteja livre e empregada (em casa de família), ela se vê obrigada a perder muitas aulas, pois a patroa a convoca para serviços noturnos. Num dos melhores momentos do filme, Maria discute com suas colegas de classe as razões de suas frequentes ausências. Algumas argumentam que, instruída, ela poderá buscar trabalho melhor e deixar de ser tão explorada pela patroa. A doméstica não abaixa a cabeça. Com voz calma, mas incisiva, lembra que está perto da aposentadoria e não vai correr o risco de perder o emprego, no qual está há longo tempo, justo nesta etapa derradeira.
A professora da classe, na qual Maria José estuda, participa da conversa com olhar generoso e compreensivo. Aliás, durante o filme inteiro – narrado em estilo direto e sintéticos 72 minutos – os professores (muitos deles negros como os alunos) se apresentam como educadores, sim, mas também desinteressados conselheiros, capazes de compreender as agruras de seus alunos.
Tifany, de apenas 17 anos, tem relação complicada com as escolas periféricas que frequenta. Já passou por várias salas de aula, por vários centros educacionais e até por casas de atendimento a menores problemáticos. Foi vítima de bullying em todos eles. Abandonou escolas e até fugiu de um centro de menores. Em breve, fará 18 anos. Sua instrução segue precária. A jovem sonha em trabalhar num salão de cabeleireiro. Não sonha, jamais, com uma escola. Desta, não guarda boas lembranças.
“Diários de Classe”, nome tão familiar ao dia a dia de alunos e professores – afinal neles são registradas as frequências do corpo discente –, cabe como luva na complexa trama urdida por Carolina e Igor. O filme transforma Vânia, Maria e Tifany em seres singulares, sujeitos de suas pequenas (e difíceis) trajetórias. Pela frente, têm grandes desafios a equacionar. Nós, os espectadores, nos deparamos com um rico registro de vidas marcadas pela discriminação e por oportunidades rarefeitas. Vidas que “Diários de Classe” tira da invisibilidade.
O paulistano “Eleições” se passa em um só ambiente: a Escola Estadual Doutor Alarico Silveira, na Barra Funda, bairro da maior cidade brasileira. Alice Riff, autora de “Meu Corpo É Político”, outro longa documental lançado recentemente, acompanha secundaristas empenhados em eleger a diretoria do Grêmio Estudantil.
Os alunos organizam-se para a corrida eleitoral, agrupados em quatro chapas. Mulheres, jovens, negros e a comunidade LGBT estão bem representadas nestes grupos estudantis.
Cada uma das chapas se propõe a apresentar propostas que assegurem melhorias para a escola. Não fogem dos debates, criam identidade visual para seus coletivos, traçam estratégias de campanha e partem para a luta. Mais uma vez um professor atuará, de forma generosa e franca, como paciente orientador/conselheiro dos grupos, zelando pelo cumprimento de regras democráticas, sem, no entanto, querer impor a vitória deste ou daquele grupo concorrente.
Conflitos e tensões (inclusive a base religiosa de uma das chapas) se instalarão no ambiente da escola e revelarão, além de diferenças políticas, as dificuldades cotidianas, empecilhos para a realização de sonhos, tão presentes na adolescência e juventude.
Alice Riff foca sua narrativa nos grupos de alunos que ela vê como “subrepresentados nas instâncias de decisão política – as mulheres, os negros e a comunidade LGBT”. Estes grupos, afinal, são pouco representados em instâncias formais, como o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores. E também em cargos executivos e judiciários.
A documentarista entende que “vivemos momento em que o jovem apresenta desconexão com o nosso sistema democrático”. Por isto, ela buscou uma escola pública do centro de São Paulo e acompanhou o processo eleitoral, capaz de ajudar na formação de jovens cidadãos. Ao aproximar-se dos estudantes da Barra Funda e com eles construir um filme, ela acredita estar contribuindo com “a construção democrática, o ato de questionar e argumentar, de dizer não e de, coletivamente, construir a identidade de cada um”.
“O desejo do filme” – arremata – “é fortalecer o espaço de construção política do jovem dentro da escola, de forma que esta instituição possa ser cada vez mais um espaço de reflexão crítica”. Em tempos em que os defensores da Escola sem Partido tudo fazem para impor-se nos espaços educacionais, a missão de “Eleições” é mais que pertinente, necessária.
Diários de Classe
Bahia, 75 minutos, 2019
Direção: Maria Carolina da Silva e Igor Souza
Longa documental que acompanha a trajetória de três mulheres em suas relações com a instrução escolar pública
Distribuição: Elo Company
Eleições
São Paulo, 100 minutos, 2019
Direção: Alice Riff
Registro das eleições para o comando do Grêmio Estudantil da Escola Estadual Doutor Alarico Silveira, na Barra Funda, em São Paulo
Distribuição: Olhar Distribuidora
Por Maria do Rosário Caetano