“Barato de Iacanga” vence o Festival In-Edit
Por Maria do Rosário Caetano
O júri oficial do 11º In-Edit Brasil – Festival Internacional de Documentário Musical, encerrado na noite do último domingo, 23 de junho, escolheu “O Barato de Iacanga”, de Thiago Mattar, como o melhor filme entre os sete concorrentes de sua competição. E destinou Prêmio Especial a “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, de Daniela Broitman. Este fascinante documentário sobre o autor de “Suíte dos Pescadores” foi o escolhido do Júri Popular.
“O Barato de Iacanga”, por ter sido o eleito do júri oficial, será o representante do Brasil no In-Edit Barcelona, matriz de festivais que, a cada ano, se multiplicam mundo a fora ao apostar na mobilizadora relação entre cinema e música.
O que mais chama atenção no filme vencedor é a incansável pesquisa de imagens empreendida pela equipe de Thiago Mattar. Equipe que se desdobrou até conseguir autorização (cessão de direitos autorais) de centenas de cantores, instrumentistas e gravadoras. O que levou o documentário a consumir anos e anos em sua manufatura.
Outro fator de sedução de “O Barato de Iacanga”, eleito por unanimidade do júri, é raridade das imagens de João Gilberto, historicamente arredio a shows de massa. Pois ele foi ao Festival de Águas Claras, primo pobre do poderoso Festival de Woodstock. O cantor, que consagrou “Desafinado” e “Chega de Saudade”, participou da segunda edição da festa musical do interior paulista. Cantou e encantou a todos com seu alto astral (sim, João aparece bem feliz nas imagens). Da segunda vez, enfrentou chuva, lama (o vemos ao volante de um carro atolado) e todos os contratempos possíveis e imagináveis.
A narrativa de “O Barato de Iacanga” situa-se em tempo histórico bem demarcado: os anos da ditadura militar. Em 1975, o jovem Leivinha (Antonio Cecchin Jr) resolveu organizar um festival de rock na fazenda de sua família, no município de Iacanga.
A primeira edição mobilizou Mutantes, O Som Nosso de Cada Dia, Jorge Mautner, entre outros. Seis anos depois, portanto com longo hiato, houve outra edição do festival rural. O sucesso foi total e mobilizou dezenas de artistas (João, como atração máxima, mais Luiz Gonzaga, Gilberto Gil, Raul Seixas, Alceu Valença, Sandra de Sá, Zé Geraldo, o zen Walter Franco, entre outros). As gravadoras, poderosíssimas (como a MPB dos anos 1970 e 1980), se entusiasmaram com a imensa plateia mobilizada pelo festival na Fazenda de Iacanga. Jovens de muitos cantos e recantos somavam-se em busca de música, baseados e amor livre. E comiam e bebiam o que aparecesse pela frente. Já a terceira, e última edição, foi um cataclismo de dimensões bíblicas. Só vendo o filme para crer.
“Dorival Caymmi – Um Homem de Afeto”, o escolhido do público, é um filme muito especial. Daniela Broitman, para realizar este documentário, tomou como ponto de partida fascinante a longa entrevista de Caymmi, realizada nos anos 1980, na casa de casal que desfrutava da amizade do artista baiano. A entrevista nasceu para ser um filme. Só que foram necessárias quase três décadas para que as imagens, feitas filme, se tornassem realidade. E em outras mãos (de Daniela e equipe).
Caymmi imanta a todos com seu carisma único, sua fala doce e suas canções que beiram o sublime. Sedutor nato, orgulha-se de ter ensinado Carmen Miranda a revirar os olhos (prática que ele mesmo preserva). Ajudou, também, a criar o gestual da baiana estilizada que a consagrou no Brasil e nos EUA. Observador atento da natureza (o mar e os ventos, em especial), o grande compositor vai enredando, afetuosamente, a todos como uma “Sherazade tropical”. Mas o filme, felizmente, não esconde as zonas de sombra deste “homem de afetos”.
Os próprios filhos (Dori, Danilo e, especialmente, Nana Caymmi) revelam outras facetas do pai. Nana relembra a moral dracoaniana do patriarca do clã, que passou sete anos sem trocar palavra com a “filha desquitada”. Os filhos não escondem que o pai era um inveterado mulherengo, o que causava grande desgosto a Stella Maris, cantora que abandonara seu ofício para tornar-se mãe e dona de casa. O próprio Caymmi rememora, com graça sedutora, um ou outro caso extraconjugal. Há, no filme, também, espaço para o “ator rústico” (assim o definiu o amigo e compadre Jorge Amado), que atuou em filmes como “Estrela da Manhã”, de Jonald, e “Capitães da Areia” (em sua versão norte-americana, de Hal Bartley).
A décima-primeira edição do In-Edit Brasil mobilizou público dos mais significativos e mostrou que, a cada novo ano, firma-se com força no calendário de festivais brasileiros. Até porque sua matéria-prima – o documentário musical – tem mobilizado emissoras de TV por assinatura (Canal Brasil, Arte 1, Curta!, Prime Box Brazil) e significativas plateias brasileiras (vide o sucesso de “Vinícius” e “Chico Buarque”, ambos de Miguel Faria Jr, “Raul, o Início, o Fim e o Meio”, de Walter Carvalho, “Uma Noite em 67”, de Ricardo Calil e Renato Terra, e “Tropicália”, de Marcelo Machado).