Festival de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
“Bacurau”, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, filme inaugural da 47ª edição do Festival de Gramado, lotou o Palácio dos Festivais, na noite desta sexta-feira, 16 de agosto, para sua première brasileira. Foi recebido com aplausos moderados. A plateia de Gramado tem fama de ser comedida.
Já, na manhã seguinte, este sábado, 17 de agosto, jornalistas, estudantes e turistas abarrotaram o salão de debates. Houve lotação como nunca se viu por aqui. Havia gente sentada no chão e de pé ao fundo do salão, três vezes maior que o que abrigou as coletivas de imprensa ao longo dos últimos anos. À mesa, com os diretores, sentaram-se as atrizes Sonia Braga e Bárbara Colen, os atores Wilson Rabelo e Thomas Aquino, o fotógrafo Pedro Sotero e a produtora Emilie Lescaux.
Os dois cineastas pernambucanos responderam a dezenas de perguntas. Sonia Braga e os atores também falaram dos personagens que lhes coube interpretar. Sonia, a protagonista absoluta de “Aquarius”, filme anterior de Kleber, disse não ter enfrentado nenhum problema por, desta vez, atuar em papel menor (“Bacurau” é um filme coral). Ao invés de acompanharmos a trajetória de uma mulher (Clara) que luta para defender seu apartamento em prédio já entregue à especulação imobiliária, teremos, no novo filme, que acompanhar dezenas de moradores de um povoado, a pequena Bacurau, enfrentando a agressão armada de forasteiros.
“Sou uma atriz”— respondeu Sonia — “que trabalha mais com a equipe que com o individual, gosto de participar junto, de captar a energia de todos”. Para interpretar Domingas, uma médica que bebe muito e acha que “ninguém pode morrer”, Sonia entrou no clima coletivo de um pequeno povoado potiguar, onde o filme foi realizado. “Só peço, quando faço um filme”— assegurou — “que me dirijam, pois sou uma atriz que gosta e quer ser dirigida”. No sertão do Nordeste e na energia da equipe, ela encontrou a força de Domingas, “esta mulher que carrega suas imensas dores e não quer que seus amigos morram”. E finalizou: “quero saber quem matou Marielle”. Para reiterar com “Marielle vive”.
O debate abordou a poderosa e orgânica mistura de gêneros feita pelo filme (western, ficção científica, drama social), as influências estrangeiras (Sam Peckimpah, John Carpenter etc.) e brasileiras (“inclusive Glauber”) assumidas pelos realizadores, a presença do cangaço, os momentos de humor, a forte presença da MPB na trilha sonora, o uso de alegorias, as perspectivas de diálogo com o público. E, claro, o elenco vindo dos muitos Brasis, formado com atores negros, mestiços e brancos (e oito atores estrangeiros, todos de pele alva).
Esgotado por maratona de entrevistas e debates em várias cidades brasileiras, e premido pelo tempo (já que havia excesso de perguntas), Kleber deu respostas curtas e deixou algumas questões sem resposta (caso do papel do cangaço e das cabeças cortadas que aparecem no filme).
Juliano Dornelles, que dirige seu primeiro longa, parecia mais atento e disposto a responder às muitas indagações. Sobre o elenco, contou que a ideia era mesmo ter pessoas de várias origens geográficas e que o filme desfrutou da enorme colaboração de Marcelo Caetano, grande conhecedor de seu ofício e, por isto mesmo, presença essencial à formação do casting. Com papéis garantidos, desde o roteiro, só Sonia Braga, Udo Kier e Bárbara Colen.
Sobre a arrebatadora trilha sonora do filme, breves revelações: Dornelles foi o responsável pela escolha de “Réquiem para Matraga”, que Geraldo Vandré compôs para a trilha sonora de “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (Roberto Santos, 1965); Kleber escolheu “Objeto Não Indetificado”, de Caetano Veloso, porque “o compositor e a canção são geniais”. O trabalho de som do filme é, além de impecável, fonte permanente de informações sensoriais para o espectador.
Sobre a orgânica soma de gêneros, Kleber brincou: “eu pensava que o filme era um western, mas depois concluí que era um filme de guerra. Pensamos na Segunda Guerra Mundial, no Gueto de Varsóvia e, principalmente, na Guerra do Vietnã. O que é a luta final entre os “estrangeiros”(invasores) e a comunidade de Bacurau, senão uma guerra de resistência?!” Quando os EUA invadiram o Vietnã, “não houve uma revanche, houve, isto sim, a resistência de um povo, que teve seu território invadido. É isto que acontece em Bacurau”.
O primeiro longa ficcional de Kleber Mendonça, “O Som ao Redor”, vendeu 100 mil ingressos, o segundo, “Aquarius”, quase 400 mil. Será que “Bacurau’, não tendo uma heroína como a Clara de Sonia Braga com quem nos identificarmos, lotará os cinemas? Kleber não fez considerações sobre o assunto. Mas sua distribuidora, Silvia Cruz, da Vitrine, fez questão de responder, ao final de debate, à Revista de CINEMA: “hoje (sábado, 17 de agosto), estamos promovendo pré-estreias em 100 salas. Os distribuidores estão entusiasmadíssimos com o filme, para eles, trata-se de um ótimo western. Temos certeza de que o público vai torcer não por um personagem individual, mas sim por um coletivo unido e disposto a enfrentar aqueles que os agridem”. A sorte está lançada.
Depois do debate de “Bacurau”, o público diminuiu. Mas os que permaneceram no salão, debateram com muito interesse o curta “A Pedra”, da gaúcha Iuli Gerbase. A jovem cineasta é filha do diretor Carlos Gerbase e da produtora Luciana Tomasi, também ex-roqueiros (Banda Replicantes). Apesar de muito jovem, Iuli não se inibiu ao propor narrativa de grande exigência estratégica. “A Pedra” se passa em um rio, onde um instrutor leva família para a perigosa prática do rafting. Graças à entrega de sua equipe técnica e artística (destaque para a menina Ester Schafer e para o inventivo fotógrafo Bruno Polidoro), ela pôde chegar a bom termo. Realizou uma envolvente aventura familiar, que soma pequenos conflitos e alguns segredos.
O público voltou em maior número para o debate de “O Homem Cordial”, do brasiliense Iberê Carvalho. Com ele à mesa, sentaram-se os atores Paulo Miklos (o titã que brilhou em “O Invasor”), os rappers Thaíde, Thamirys O’Hanna, Roberta Estrela D’Alva e a atriz Dandara de Morais, o fotógrafo Pablo Baião, a montadora Nina Galanternick e os produtores Maíra Carvalho (também diretora de arte) e Rodrigo Sarti.
Miklos, com a agenda lotada, passou por Gramado como um corisco. Além de estar em cartaz com peça teatral sobre Chet Baker, em São Paulo, ele está filmando um novo longa, em Curitiba, com Aly Muritiba (vencedor do Gramado 2018, com “Ferrugem”). Trata-se de “Jesus Kid”, baseado em texto de Lourenço Mutarelli. Depois de contar que hoje “é mais ator, que músico”, o ex-Titã confessou: “quando Iberê me procurou com o roteiro de ‘O Homem Cordial’, e vi que ia interpretar um roqueiro quase sessentão, pensei logo, mas este sou eu! Preferia um personagem que me desafiasse”. Depois de ler o roteiro, viu a complexidade e os desafios trazidos pelo personagem, aceitou e gostou muito do resultado.
Thaíde, cativante como ele só, Roberta Estrela D’Alva, que além de slammer é documentarista e ativista da causa black, e as jovens Tamirys O’Hanna e Dandara de Morais narraram o desafio, sendo gente preta, de representar papéis escritos (e dirigidos) por brancos. Iberê, que escreveu o roteiro de “O Homem Cordial” com o cineasta uruguaio Pablo Stoll (de “Whisky”), contou que ouviu muito seus atores. “Eu perguntava a cada um deles: como você falaria esse diálogo? E aceitava as sugestões deles”. Citou um exemplo: “num determinado diálogo, a personagem de Dandara de Morais deveria xingar alguém de filho da puta. Ela me interpelou: disto não xingo! E propôs: escroto do caralho, como está impresso na tela”.
“O Homem Cordial” será lançado no circuito brasileiro pela O2 Play, de Fernando Meirelles e sócios.