Política invade o tapete vermelho e a tela do Palácio dos Festivais

Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)

O domingo, 18 de agosto, terceiro dia de atividades do 47º Festival de Gramado, foi marcado pela política. Nem a névoa e frio intensos (5 graus, à noite) inibiram cineastas, atores e técnicos, que ocuparam, com placas e palavras de ordem, o tapete vermelho, tradicional reduto de estrelas aplaudidas freneticamente pela turma do sereno.

Desde a noite inaugural, que cineastas têm marcado posição, seja no palco, seja nos debates no Hotel Serra Azul, contra “o desmonte da Ancine e de fundos de fomento ao audiovisual brasileiro”. Mas, na noite do domingo, o protesto foi coletivo. Dezenas de profissionais do cinema desfilaram pelo tapete vermelho com faixas e cartazes de filmes (o mais vistoso era o de “Cabra Marcado para Morrer”), proclamando, em uníssono, a palavra de ordem “Pela Cultura! Por uma arte sem censura!”.

Ao temor pelo desmonte de mecanismos de fomento ao audiovisual, somou-se outro: a volta da Censura, proibida pela Constituição Federal. Dois fatos serviram de combustível ao temor agora reinante no meio cinematográfico. Primeiro: recente “live” (pronunciamento em redes sociais) do presidente Jair Bolsonaro, na qual ele cita projetos de filmes e séries de temática LGBTQI, que não passarão — esta é sua vontade — pelos filtros de triagem dos editais públicos. Segundo: Edital do Banco do Brasil que passou a perguntar aos titulares de projetos audiovisuais se estes contêm “cunho político, religioso, cenas de sexo ou pedofilia”.

Depois da manifestação coletiva, o público assistiu ao curta brasiliense “O Véu de Amani”, de Renata Diniz, sobre criança paquistanesa, filha de refugiado, que vive no Brasil. Assistiu, também, ao longa argentino “La Forma de las Horas”, de Paula Luque. A realizadora subiu ao palco com seus protagonistas, a atriz Julieta Díaz e o ator Jean-Pierre Noher. Ele, um habitué de Gramado, desde 2004, quando o festival premiou filme por ele protagonizado (“Um Amor de Borges”, de Javier Torre, sobre episódio da vida do escritor Jorge Luis Borges). Como não havia prêmio para melhor ator de filme latino-americano, e mesmo assim o júri atribuíra a ele uma menção especial, Noher contou que compraria um Kikito de chocolate para levar para Buenos Aires e mostrar à mãe que seu trabalho fora reconhecido. O comando do festival comoveu-se com tal demonstração de afeto, a ponto de providenciar um Kikito de verdade para o ator. E, anos mais tarde, lhe daria um Kikito de Cristal por sua significativa trajetória no cinema latino-americano.

Paula Luque garantiu, no palco, que “o cinema argentino vive momento muito difícil, que as políticas de fomento foram muito prejudicadas e que o setor audiovisual torce por mudanças no comando do país”. Contou que seu “La Forma de las Horas” era um filme bancado integralmente por sua equipe, pois não haviam conseguido nenhum tipo de apoio oficial. “Para não ficarmos de braços cruzados, realizamos este longa com poucos recursos retirados de nosso bolso”. Noher ponderou que o pequeno e sintético (72 minutos) filme, que estavam apresentando no Palácio dos Festivais, “evocava um clima Nouvelle Vague”.

O público recebeu com simpatia a história de um colapso amoroso. Ao longo de um dia, os personagens de Julieta Díaz e Jean-Pierre Noher (além deles, só uma bailarina, Paula Robles, aparece no filme) processam sua separação física e emocional. E se despedem da casa que lhes serviu de morada. Bem ao gosto argentino, país em que a psicanálise desfruta de prestígio singular, os dois protagonizam jogo que embaralha tempo e sentimentos.

Não houve competição brasileira na politizada noite de domingo. O horário nobre foi dedicado a exibição hors concours do filme gaúcho “Legalidade”, de Zeca Brito, no qual o ator Leonardo Machado, morto em setembro de 2018, vive o protagonista, Leonel de Moura Brizola. A procura pelo filme foi tão grande, que o Palácio dos Festivais viveu início de tumulto. Quem ousasse sair da sala para tomar um café ou ir ao banheiro, era avisado: “se sair, não poderá mais voltar, pois a vaga será de quem aguarda em imensa fila de espera”.

Primeiro, Gramado homenageou a memória de Leonardo Machado, que recebeu o Kikito de melhor ator, anos atrás, pelo longa-metragem “Em teu Nome”, de Paulo Nascimento. Depois, por sete anos, atuou como mestre de cerimônia das noites festivaleiras. Apresentou, mesmo sabendo que um câncer o levaria em breve, todas as atrações da edição de 2018 (morreria um mês depois). O ator gaúcho deixou vários filmes (entre eles “Legalidade”) e séries (uma rodada nos EUA) inéditos.

O comando do Festival de Gramado o homenageou em cerimônia comovente. Um vídeo relembrou seus principais papéis no cinema e na TV (ele fez novela em horário nobre, na Globo). Seus pais, padrinhos e sua viúva subiram ao palco para receber placa com registro de sua contribuição ao festival e ao cinema brasileiro. Na tela do Palácio dos Festivais, um Leonardo Machado radiante cantava “Gracias a la Vida”, de Violeta Parra, ao agradecer o Kikito ganho com “Em teu Nome”, filmado em Porto Alegre e no Chile.

Pais de Leonardo Machado recebem homenagem © Edison Vara

Na plateia lotada, muitas lágrimas. Os pais, padrinhos e viúva também choravam. Mas a alegria voltou quando foi lembrada a frase que servia de mantra ao ator, morto no auge de sua carreira, aos 47 anos: “Que essa fonte nunca seque”. Finda a homenagem póstuma, subiram, então, ao palco o cineasta Zeca Brito e mais de trinta integrantes da equipe de “Legalidade”, entre eles a atriz Cleo (que retirou o Pires do nome), envolta em volumosas plumas, num vestido de causar inveja a estrelas de Hollywood em noite de Oscar. Em registro mais discreto e de acordo com a noite gelada de Gramado, subiram, também, ao palco, Letícia Sabatella, Fernando Alves Pinto (que interpreta um antropólogo inspirado em Darcy Ribeiro) e uma dezena de atores gaúchos que completam o numeroso elenco.

Políticos ligados ao PDT (como Ciro Gomes e Juliana Brizola) lotavam a sala. No palco, Zeca Brito agradeceu aos jornalistas Flávio Tavares e Juremir Machado e ao escritor e cineasta Tabajara Ruas, autor de longa documental sobre Brizola, que o ajudaram em longas pesquisas, fundamentais ao filme.

Luciana Tomasi, produtora de “Legalidade”, agradeceu a todos que colaboraram com a realização do filme (um épico de mais de duas horas, que registra a campanha liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, nos tumultuados dias de agosto de 1961, para que o vice, João Goulart, assumisse a presidência da República, pois Jânio Quadros renunciara. Os militares não queriam empossar o vice, que encontrava-se, em viagem oficial, à China de Mao Tse-Tung.

O governador armou parte da população gaúcha e resistiu. Jango, que fora eleito para vice-presidente com mais votos que Jânio (naquele tempo, votava-se também no vice) voltou ao Brasil e assumiu o cargo, mas em regime parlamentarista. Brizola, que o recepcionou em Porto Alegre, antes que ele fosse para Brasília, ficou revoltado. Não admitia que Jango abrisse mão do presidencialismo, forma de governo para a qual fora eleito. Conciliador, o irmão de Neusa Goulart, esposa de Brizola, ponderou que fizera acordo com o Congresso Nacional e que, depois, tentariam, pelo voto popular (plebiscito), retornar ao Presidencialismo (o que foi feito, mas Jango não concluiria seu mandato, pois foi derrubado pelo golpe militar de 1964).

No palco, Zeca Pires cantou “Se entrega, Corisco/eu não me entrego não” e fez longo discurso em defesa da legalidade e da liberdade de expressão, com vivas ao cinema brasileiro. O filme, que soma imagens documentais à sua trama ficcional (com momentos folhetinescos) tem muitas qualidades e muitos defeitos. E erros graves de escalação. Se Leonel Brizola encontra em Leonardo Machado um bom intérprete (nas sequências finais, o político, já octogenário, é interpretado por Sapiram Brito, pai do cineasta) e Fernando Alves Pinto está muito bem na pele de um intelectual humanista, o ator escolhido para interpretar Jango não tem nenhuma semelhança com o ex-presidente e, o que é pior, zero de carisma. Num filme que recorre a imagens documentais, o espectador idoso (e jovem) é obrigado a buscar semelhanças entre personagem real e seu intérprete. Outro ator que não se parece nada com o retratado (Ernesto Che Guevara) pelo menos defendeu com brilho seus diálogos em perfeito espanhol, com acento argentino. Aliás, o filme fala português, espanhol ou inglês, dependendo da nacionalidade do emissor.

A presença de Che Guevara em “Legalidade” não é gratuita. O filme evoca o argentino-cubano, em flashback, como participante de Cúpula da OEA (Organização dos Estados Americanos), que reuniu, em Punta del Este, no Uruguai, líderes das três Américas, um mês antes da crise que se seguiu à renúncia de Jânio. E o filme dedica grande espaço ao evento, no qual Leonel Brizola manteve intenso diálogo com Guevara, então ministro de Fidel Castro.

A trilha de “Legalidade” é saborosa (com muito Lupicínio Rodrigues, Elvis Presley e música hispano-americana), a reconstituição de época, eficiente, os valores de produção, evidentes, e a junção de ficção e documentários (boa pesquisa de imagens), muito bem engendrada. Pena que a parte ficcional peque com momentos frágeis e triângulo amoroso que emula “Casablanca”, mas parece saído de uma telenovela do SBT. Mesmo assim, o filme pode comover parte do público (em especial, os brizolistas) por mergulhar em episódio esquecido de nossa história e por trazer à tona — em momento crispado como o que o Brasil está vivendo — debate sobre questões essenciais. As principais delas: a presença de militares no comando político do país e o (des)respeito à Constituição.

Por fim, há que se lembrar que, no palco, Zeca Brito entregou aos pais de Leonardo Machado, o Trofeu Guarnicê de melhor ator (póstumo), que ele conquistou no Festival de Cinema de São Luiz do Maranhão, em junho último. O pai do ator contou, então, que o filho lhe reafirmara, nos meses em que enfrentou o câncer, seu imenso orgulho de ter interpretado, num épico brasileiro, o governador gaúcho (que também exerceu, por duas vezes, o cargo de governador do Rio de Janeiro). Morreu sem ver o filme na tela do Palácio dos Festivais, que tanto amava.

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