Belas Artes festeja centenário de Rohmer com onze filmes
Por Maria do Rosário Caetano
Se vivo fosse, o francês Eric Rohmer, nome artístico de Jean-Marie Maurice Schérer, nascido em março de 1920, na cidade de Tulle, estaria comemorando 100 anos. Ele morreu uma década atrás, com quase 90 anos. Seu centenário passaria em branco se o Petra Belas Artes à la Carte não tivesse selecionado onze de seus 24 longas-metragens para sua lista de ofertas online.
Rohmer era o mais velho dos integrantes do núcleo duro da Nouvelle Vague. Nascera oito anos antes de Jacques Rivette (1928) e contava dez anos a mais que Claude Chabrol e Jean-Luc Godard (ambos de 1930). E doze a mais que o caçula François Truffaut (1932-1984). Jacques Doniol-Valcroze (1920-1989) e Jean Douchet (1929-2019), também nomes fundamentais na história do movimento de renovação do cinema francês, ensaiaram carreira anfíbia como críticos e realizadores, mas acabaram mesmo dedicados à reflexão cinematográfica. A ponto de Douchet, diretor de instigante episódio que abre o formidável “Paris Vista Por…” (sobre paqueradores parisienses) ser lembrado como o “Sócrates do cinema”.
Dos cinco diretores da Nouvelle Vague, Rohmer foi o mais discreto, o menos polêmico e o de menor público. Poucos de seus filmes foram lançados em nosso circuito comercial. Triunfou em Veneza, em 1985, com “O Raio Verde”, pequena joia suavemente inspirada em Júlio Verne. Saiu de lá com o Leão de Ouro. Alguns anos depois (2001), a Bienale italiana lhe daria outro Leão dourado, por sua trajetória que soma 59 filmes (entre curtas, médias e longas-metragens).
Godard sempre foi o mais polêmico e produtivo dos realizadores da Nouvelle Vague. Perto de completar 90 anos (em dezembro), somou invenção, iconoclastia, militância e brigas infindáveis. Com o amigo Truffaut, comprou duas polêmicas colossais (que os afastaram para valer). Rivette, que assinou menos longas-metragens que seus pares, abalou a França católica com “A Religiosa”, baseado em Diderot e protagonizado por Anna Karina. O filme acabou interditado e só depois de 12 meses (e muita confusão) foi liberado pela pátria da igualdade, fraternidade e… Liberdade.
Truffaut, o que viveu menos (apenas 52 anos) conheceu a glória. E, até, significativos sucessos de bilheteria. “Os Incompreendidos”, “A Noite Americana”, que deixou Godard indignado, e “O Último Metrô”, com Deneuve e Dépardieu, venderam milhares de ingressos mundo afora. Mesmo caso de Chabrol, outro que dialogou com o cinema comercial, produziu muito (quase 70 filmes) e conheceu imensos sucessos e alguns fracassos.
Já Rohmer nunca se preocupou com o grande público. Criou seu nicho. Fez sempre filmes baratos, com um quê de artesanal, fossem contos morais, comédias proverbiais ou filmes de época. Filme de época barato? E os cenários reconstituídos? E os figurinos? Para Rohmer, isto nunca constituiu problema. Pintava cenários, como se fossem destinados a uma ópera em palco fixo. Um ator vestia um figurino e permanecia com ele. Foi assim em “Perceval, o Gaulês” (com a Idade Média recriada com pouquíssimos objetos) e no controverso “A Inglesa e o Duque”. Neste, o realizador (pre)ocupou-se com o ponto de vista da aristocracia. Ao evocar a proletária Revolução dos “sans-culotes”, tomou as dores dos nobres.
Trabalhador incansável (ele e seus personagens, a maioria com profissões bem-definidas, muitas secretárias, outros dedicados à Etnologia), Rohmer não se recolheu quando seus colegas triunfaram. Truffaut arrasou em Cannes com “Os Incompreendidos” (1959) e escreveu o roteiro de “Acossado” (1960), maior sucesso da história de Godard (até hoje seu filme mais conhecido e seminal). Chabrol emplacou quatro filmes no final dos anos 1950 (“Nas Garras do Vício”, “Os Primos”, “Quem Matou Leda?” e “Les Bonnes Femmes”). Rivette começou bem como “Paris nos Pertence”, em 1960, e cinco anos depois seria a sensação do cinema francês com “A Religiosa”.
Eric Rohmer passou praticamente batido com “O Signo do Leão” (1959). Até dirigir outro longa-metragem, o encantador “A Colecionadora” (oito anos depois), ele faria curtas, médias-metragens e o episódio de “Paris Vista Por…”. Filmava, muitas vezes, em 16 milímetros, com amigos, atores pouco conhecidos (exceção para Jean-Louis Trintgnant em “Minha Noite com Ela”, e Jean-Claude Brialy, em “O Joelho de Claire”). Por não correr atrás de astros (como Jeanne Moreau, Brigitte Bardot, Belmondo, Delon ou Dépardieu) pôde montar sua trupe com nomes que ele descobriu ou projetou, com Marie Rivière, a mais importante de suas musas, Béatrice Romand, Arielle Dombasle, Pascale Ogier, que morreu aos 25 anos, Fabrice Luchini, Pascal Gregory, Melvil Poupaud, Gérard Falconetti, Patrick Bauchau e Tchéky Karyo. E descobrir ninfetas – na França pré-Me Too, claro – de beleza hipnotizadora (Anne-Laure Meury, a estudante de “O Mulher do Aviador”, Amanda Langlet, a Pauline, Haydée Politoff, a colecionadora).
Católico (e tido como conservador no campo político), Rohmer nunca foi carola. Seus filmes são de espantosa ousadia moral. São capazes de dar um nó na cabeça de qualquer cidadão mediano. Moralistas de plantão (como os filhos da ministra Damares), se estes assistissem a seus filmes, o considerariam um devasso, um libertino. Basta ver “A Colecionadora”, “O Joelho de Claire” ou “As Noites de Lua Cheia”.
O autor dos Contos Morais, das Comédias e Provérbios e das Quatro Estações nunca agradou a todos. Há quem veja seus filmes como “falados demais”, retóricos até, povoados de personagens voltados ao próprio umbigo e – o que parece pecado em nosso tempo presente – com poucos acontecimentos (tramas rarefeitas). Eis aí uma verdade parcial. Quem mergulhar nos filmes do longevo realizador francês, sem prejulgamentos, encontrará beleza, sensibilidade e momentos sublimes. No pouco conhecido “A Mulher do Aviador”, um jovem (Philippe Marlaud), apaixonado e metido a detetive, e uma estudante adolescente (Anne-Laure Meury) travam, num parque vazio e ao acaso, um dos mais surpreendentes e fascinantes diálogos da história do cinema. Impossível não se encantar com este filme que tem um quê de “Beijos Roubados”, a mais saborosa das narrativas de Truffaut.
Em “Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle”, trama sequenciada em quatro episódios (todos de Rohmer e protagonizados pelas mesmas atrizes), duas moças se conhecem na zona rural. Elas pretendem ouvir o silêncio absoluto, algo que só é possível durante uma fugaz “hora azul”. Algo fascinante, que se repetirá em “O Raio Verde”, mas aí com a busca de outro fenômeno da natureza: aquele instante em que, no crepúsculo, pode-se fruir de fugaz risco muito verde no céu. Como estes, há muitos outros instantes sublimes nos filmes rohmerianos.
Em “O Joelho de Claire”, os momentos de aliciante beleza se somam a cada novo instante, sempre nos surpreendendo. Nos ótimos filmes das quatro estações, quem há de resistir às sequências finais de “Conto de Outono”, quando a personagem de Béatrice Romand reencontra seu desajeitado “príncipe encantado”? Ela impregna o ar com sua ingênua e inesquecível felicidade. Uma pequena epifania.
Quem resistirá ao velho aposentado (de “O Raio Verde”), que ama sem limites sua Paris? Mas a cidade não tem mar (“temos La Seine”, ou seja, o rio Senna, quem há de querer mais?).
Aqueles que quiserem mergulhar na vida e obra de Jean-Marie Maurice Schérer poderá assistir ao “Cinema de Nosso Tempo – Eric Rohmer – Provas Irrefutáveis”, em duas partes (1994), que André S. Labarthe (1931-2018) dedicou ao realizador. Ou ler a tese de doutorado do cineasta brasileiro Daniel Augusto (“Eric Rohmer: Os Contos Morais e seus Equívocos”, defendida ano passado na USP e disponível na internet). Ou torcer para que a biografia do diretor de “O Raio Verde”, escrita por Antoine De Baecque (coautor com Serge Toubiana da biografia de Truffaut), seja traduzida e publicada no Brasil. E, claro, deve assistir aos onze filmes do acervo Petra Belas Artes à la Carte. E torcer pela breve aquisição dos outros títulos (todos) rohmerianos.
FILMES DISPONÍVEIS NO BELAS ARTES À LA CARTE:
1965 – “Paris Vista Por…” (episódio “Place de l’Étoile”)
1980 – “A Mulher do Aviador”
1982 – “Um Casamento Perfeito”
1983 – “Pauline à la Plage”
1984 – “As Noites de Lua Cheia”
1985 – “O Raio Verde”
1986 – “O Amigo da Minha Amiga”
1990 – “Conto da Primavera”
1991 – “Conto de Inverno”
1996 – “Conto de Verão”
1998 – “Conto de Outono”
FILMOGRAFIA (DESTAQUES)
Eric Rohmer (1920-2010)
CONTOS MORAIS:
1962 – A Padeira do Bairro (curta-metragem, 26′)
1963 – A Carreira de Suzanne (média-metragem, 52′)
1967 – “A Colecionadora” (longa)
1969 – “Minha Noite Com Ela” (longa)
1970 – “O Joelho de Claire” (longa)
1972 – “Amor à Tarde” (longa)
COMÉDIAS E PROVÉRBIOS:
(Seis longas-metragens)
1980 – “A Mulher do Aviador”
1982 – “Um Casamento Perfeito”
1983 – “Pauline à la Plage”
1984 – “As Noites de Lua Cheia”
1985 – “Raio Verde”
1986 – “O Amigo da Minha Amiga”
CONTOS DAS QUATRO ESTAÇÕES:
1990 – “Conto da Primavera”
1991 – “Conto de Inverno”
1996 – “Conto de Verão”
1998 – “Conto de Outono”
LONGAS HISTÓRICOS:
1976 – “A Marquesa d’O”
1978 – “Perceval, o Gaulês”
2001 – “A Inglesa e o Duque”
2003 – “O Agente Triplo” (longa, década de 1930)
2006 – “Os Amores de Astrée e Céladon”
FILMES “SOLTOS”:
1959 – “Sob o Signo do Leão” (longa)
1965 – “Carl Th. Dreyer” (média-metragem doc)
1965 – “Paris Vista Por…” (episódio “Place de l’Étoile)
1988 – “Le Pyramides Bleues” (longa)
1987 – “Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle” (longa)
1993 – “A Árvore, o Prefeito e a Mediateca” (longa)
1994 – “Le Rendez-Vous de Paris” (longa)
2005 – “Le Canapé Rouge” (longa)