Alberto Cavalcanti sai do esquecimento

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Alberto Cavalcanti, brasileiro de nascimento e cidadão do mundo, morreu há quase 40 anos, longe de seu país e praticamente desconhecido entre seus conterrâneos. Enterrado em Paris, sua memória seria, lentamente, reavivada no Brasil. Pelo menos, entre cinéfilos e estudiosos de seus escritos e mais de 100 filmes, nos quais desempenhou funções de diretor, produtor ou cenógrafo.

O documentarista e professor de cinema Evaldo Mocarzel prepara duas “lives” para seu canal no Youtube, dedicadas ao mestre carioca, de origem pernambucana. Seu propósito é reunir seis especialistas na obra do diretor, ligado visceralmente à vanguarda francesa e ao documentário social britânico, para divulgar “este que é um de nossos maiores cineastas, um dos grandes nomes do cinema mundial, infelizmente pouco conhecido pelas novas gerações”.

Duas teses de doutorado sobre a trajetória artística de Cavalcanti, iniciada na avant-garde parisiense, sequenciada no documentário social inglês e sedimentada em ficções realizadas mundo afora, estão para transformar-se em livros. A primeira, da jornalista e pesquisadora Norma Couri, intitula-se “O Estrangeiro Alberto Cavalcanti e a Ficção do Brasil” e foi defendida na USP, em 2004. A segunda – “Alberto Cavalcanti – Homem Cinema” –, da pesquisadora Roberta Canuto, foi apresentada à PUC-Rio, em 2018.

As duas autoras contam que, desde o momento em que iniciaram seus estudos sobre a obra de Alberto Cavalcanti (1897-1982), o fizeram com o desejo de ver suas teses de doutoramento transformadas em livro.

“Eu pretendi, esse tempo todo” – pontua Norma Couri –, transformar minha tese em livro e agora, mais do que nunca, estou me preparando para isso”. E por que? “Porque falta uma biografia completa sobre ele, uma não, várias, pois Alberto Cavalcanti, o Cav, era múltiplo”. Sem travas, a pesquisadora lembra que “ele foi tripudiado por sua homossexualidade, pelo que soava como esnobismo europeu e por seu vanguardismo”. Daí que “foi expulso, muito amargurado, desta terra, depois de um ano tumultuado como principal nome da Companhia Cinematográfica Vera Cruz”.

As agruras (e sofrimentos) de Cavalcanti naquele início da década de 1950, em solo paulista, funcionaram como principal foco dos estudos de Norma. “Escolhi caminho que procurava redimir o Brasil da injustiça cometida contra o Cav, mesmo sabendo que ele não foi o único a ser alvejado”.

Roberta Canuto, depois de apresentar sua tese à PUC, prepara seus estudos de pós-doutorado, que seguirão com o foco na obra de Cavalcanti. “O interesse pelos filmes dele no exterior é enorme”. Tanto que, “na época do meu doutorado, fui aceita pela Universidade de Reading, na Inglaterra, para ‘pesquisa-sanduíche’, sob orientação dos professores Lúcia Nagib e John Gibbs. Só não fui porque houve corte nas bolsas do CNPQ e minha ida acabou invibializada”.

A pesquisa de pós-doc de Roberta deve ser feita na Universidade da Beira Interior, em Portugal, sob a supervisão da professora Manuela Penafria. “Ela” – conta a brasileira – “tem vários textos sobre a obra de Cav. O interesse internacional pelo cineasta brasileiro é muito significativo”.

Alberto Cavalcanti esboçou, em diversas ocasiões, os rascunhos de sua autobiografia. O dramaturgo e escritor pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976) chegou a trabalhar sobre tais rascunhos, a ele entregues pelo próprio Cavalcanti. Além de ser filho de mãe pernambucana, o cineasta realizou, no Recife, um de seus filmes mais famosos, “O Canto do Mar” (1953). Mas a biografia escrita por Hermilo não foi concluída.

O primeiro livro brasileiro sobre Alberto Cavalcanti foi publicado em 1995. Seus autores, os italianos Claudio Valentinetti e Lorenzo Pellizzari, viram seus originais saírem, primeiro, em francês, no Festival de Locarno (Suíça). Depois, em português e com belo projeto gráfico assinado pelo Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, responsável pela publicação.

Dez anos depois de Valentinetti e Pellizzari, outro livro chegou ao mercado brasileiro – “Alberto Cavalcanti – O Cineasta do Mundo”, de Sergio Caldieri. O jornalista e pesquisador paranaense-carioca conviveu por curto, mas intenso, período com o cineasta de três pátrias (Brasil, França e Inglaterra) e armazenou rico material sobre ele. Seu livro, de enxutas 172 páginas, traz perfil panorâmico do cineasta, filmografia completa, bibliografia e rico acervo de fotos. E, o que é valioso, reúne textos de Cavalcanti sobre pessoas que ele conheceu em seus muitos anos vividos na Europa (destaque para Bertolt Brecht e Sergei Eisenstein).

“Alberto Cavalcanti” – conta Caldieri em seu livro – “nasceu em 6 de fevereiro de 1897, em um casarão na Rua Dona Marciana, em Botafogo, filho de Manuel de Almeida Cavalcanti, professor de Matemática e Arquitetura Militar, na Escola Militar da Praia Vermelha, um positivista, aluno de Benjamin Constant”. Por parte de mãe, Ana Olinda, descendia de senhores do Engenho Gaipió, na Zona da Mata pernambucana. Teve como tio o ex-secretário de Governo da Amazônia, Alberto Rangel, autor de ‘O Inferno Verde’. Entre os amigos que frequentavam o casarão dos Cavalcanti, estava Euclides da Cunha.

Expulso de colégio brasileiro, o jovem Alberto foi estudar na Suíça. Passou por Friburgo, depois Genebra. Quando terminou o curso de Arquitetura, mudou-se para Paris. Conheceu a vanguarda francesa e iniciou-se no cinema como cenógrafo. Depois, tornou-se diretor. Seu filme mais famoso desse período é “Rien que les Heures” (1926). Foi para a Inglaterra e mergulhou no documentário social. Roberta Canuto aponta “Coalface” (1936) como momento máximo dessa fase de sua trajetória artística.

Com a Segunda Guerra, a Europa se transformara num canteiro de morte e ruínas. Findo o conflito, muitos cidadãos europeus buscavam emprego. O Brasil resolveu, então, importar técnicos e artistas do velho continente (em especial italianos) para erguer o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e a Vera Cruz. O cidadão do mundo Alberto Cavalcanti foi convocado para dirigir, em São Bernardo do Campo, a companhia cinematográfica veracruziana.

Na melhor parte de seu livro, Caldieri conta que o cineasta comeu o pão que o diabo amassou no circuito São Paulo-ABC Paulista. Sua gestão foi breve (apenas um ano, o primeiro de quatro ou cinco dos mais ativos da empresa, símbolo da burguesia paulista). A amiga quatrocentona Yolanda Penteado bem que o aconselhou a não aceitar o convite para gerir a Vera Cruz. Na página 67, o pesquisador transcreve frase da mecenas paulistana: “Essa gente quer apenas espremer você como um limão, usando-o para treinar o pessoal e para dar reputação aos estúdios e, em seguida, vai jogá-lo fora”.

Na Vera Cruz, Cavalcanti não assinou nenhum filme como diretor. No Brasil, depois de afastar-se dos estúdios do ABC Paulista, dirigiu três longas (“Simão, o Caolho”, na Maristela/1952, “O Canto do Mar” e “Uma Mulher de Verdade”, ambos na Kino Filmes, um em 1953 e o outro em 1954). O fracasso comercial dos dois últimos o levou de volta à Europa, onde faria novos filmes em diversos países (Áustria, Suíça, Romênia, Itália e França). Em um dos filmes (“Rosa dos Ventos”, 1956), ele atuou como um dos incentivadores e produtores. Projeto da Alemanha Oriental, com Joris Ivens, Jorge Amado e Helene Weigel, companheira de Brecht, na retaguarda, o filme de episódios foi dirigido por Alex Viany (Brasil), Gillo Pontecorvo (Itália), Sergei Guerassimov (URSS), Wu Kuo-Yin (China) e a jovem Yannick Bellon (França). A fama de esquerdista acompanhou muitos momentos da carreira de Alberto Cavalcanti.

A Revista de CINEMA colheu depoimentos de três dos pesquisadores brasileiros da obra de Alberto Cavalcanti – Norma Couri, Roberta Canuto e Sergio Caldieri. Claudio Valentinetti, que também deu sua contribuição, é italiano, mas vive no Brasil há três décadas.

CLAUDIO VALENTINETTI: “Em 1988, nós, Lorenzo (Pellizzari) e eu, fizemos a curadoria de grande retrospectiva de Alberto Cavalcanti no Festival de Locarno. Nosso livro saiu, inicialmente, em francês, junto com a retrospectiva. Do grande cineasta brasileiro, qualquer período criativo é interessante, até fundamental, para quem gosta do cinema (e algumas obras ‘voltam’, influenciando outras: por exemplo, ‘En Rade’ e ‘O Canto do Mar’).

Cavalcanti, enfim – last but not least –, foi grande amigo de minha tia, Lina Bo Bardi (tanto que a fase brasileira do nosso livro se abre com o adeus dele ao Brasil, depois da Vera Cruz: quando deixou o seu pavão de estimação para ela). Desde criança, me acostumei a conhecer – por assim dizer ‘de reflexo’ – essa figura extraordinária. O livro de 1988 – graças a uma troca entre o Instituto Lina Bo e P.M. Bardi e o Festival de Locarno – saiu, traduzido em português, aqui, em 1995.

Tive ocasião de conhecer (e de fotografar) Cavalcanti no Festival de Brasília, em 1977, do qual participei como enviado da revista italiana ‘Cinema e Cinema’. Nossa pesquisa para o livro foi bastante difícil, pois foi da Alemanha aos Estados Unidos, da França ao Brasil. E teve de ser feita em tempo reduzido. Afinal, a proposta de uma retrospectiva de Alberto Cavalcanti, que eu fizera ao então diretor de Locarno, David Streiff, aconteceu em 1983 e só foi aprovada em 1987. Cosme Alves Netto (1937-1996) foi de grande ajuda na fase de pesquisa, com conselhos e materiais. Quando ele faleceu, deixou na Cinemateca para mim um envelope com materiais, roteiros e até cartões postais da italiana Anacapri, que originaram um outro livro que publiquei, em 1997, com o Instituto Lina Bo e P.M. Bardi: ‘Um Canto, um Judeu e Algumas Cartas’. Em 2002, enfim, fui curador de outra retrospectiva de Alberto Cavalcanti, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Não existe nenhum projeto nosso de publicar outra edição do livro. Hoje, temos o livro do Sergio Caldieri e uma tese de doutorado, muito boa, de Roberta Canuto (‘Alberto Cavalcanti – Homem Cinema’, 2018), que tive o prazer de acompanhar. Cavalcanti, infelizmente, ainda hoje, confirma a frase clássica “Nemo propheta in patria” (ninguém é profeta em sua terra). Poucos materiais no Brasil para um dos Mestres do cinema mundial. Pena”.

NORMA COURI: “Alberto Cavalcanti, ou Cav, é um personagem fascinante. Sempre soube das idas e vindas dele ao Brasil desde a primeira (e única) edição do Festival Internacional de Cinema, quando nossos estúdios prometiam instalar uma Hollywood aqui e estavam ávidos por técnicos e diretores europeus desempregados na Europa do pós-guerra. Numa viagem à Europa, dando uma vasculhada, para minha tese sobre indígenas, em livrarias de Paris, Londres e Berlim, procurei por curiosidade a estante de cinema e me deparei com vários estudos sobre Cav.

Eu sabia que ele havia feito documentários-ícones, em Paris, ainda na época do cinema mudo e, depois, se tornado um dos líderes do documentário social na Inglaterra. O que eu não sabia era a importância dele nesses países e como era reverenciado. Ele figura como um dos papas surgidos nos primórdios da escola documental.

A defasagem entre o prestígio de Cav lá fora e a desinformação aqui, a não ser em núcleos cinéfilos, me fez abandonar o doutorado na História Social, área em que iria defender a tal tese sobre indígenas, e ir dar umas voltas como ouvinte nas aulas de cinema e fotografia da ECA-USP (Escola de Comunicação e Arte). Ali, me decidi a escrever a tese sobre Cavalcanti. Minha orientadora da História Social aceitou a mudança do tema desde que eu fosse orientada por alguém da área e assim não perderia as provas e os dois anos e meio já cursados, e não precisaria recomeçar tudo na ECA. Foi uma corrida contra o tempo, porque meu prazo ficou curto. Em menos de um ano e meio, fiz a defesa com Ismail Xavier, Henri Gervaiseau e Dora Mourão, na banca examinadora, prometendo a mim mesma melhorar o estudo e publicar um livro sobre ele.

Eu foquei naquele Brasil dos anos 50, tachado de Eldorado, enquanto a Europa naufragava em desemprego e miséria. Herdamos muita gente boa nesse tempo. Mas insisti também em nossas limitações estéticas, principalmente naquele hábito de rejeitar quem vem de fora e se intromete no mercado de trabalho, mesmo que esta pessoa fosse um carioca-pernambucano como Cav. Ele foi tripudiado pelo homossexualismo, pelo que soava um esnobismo europeu, pelo seu vanguardismo e foi expulso desta terra muito amargurado.

Eu pretendi, esse tempo todo, transformar a tese em livro e, agora, mais do que nunca, estou me preparando para isso. Falta uma biografia, sim. Ele merece várias. Cav era múltiplo. Foi Otto Lara Rezende quem disse que o mineiro só é solidário no câncer. O comportamento pode se estender para todos os brasileiros só que, no caso de Cav, não fomos solidários nem na sua ruína física, financeira e moral. Biografias servem para reabilitar, restabelecer e corrigir fatos, mesmo que o personagem em questão já não aproveite muito disso”.

SERGIO CALDIERI: “Minha convivência com Alberto Cavalcanti começou no Natal de 1977 e prosseguiu até o embarque dele, em 12 de junho de 1980, para Paris. Quando recebi a notícia de sua morte, ocorrida em 23 de agosto de 1982, em Paris, liguei para toda a imprensa do Rio e de São Paulo. Eu já guardava material sobre ele, fotos e reportagens. Sempre pensei em escrever um livro sobre vida e obra dele. Trabalhei 38 anos na Secretaria Estadual de Cultura. Em encontros com o cineasta Orlando Senna, tive a oportunidade de mostrar o meu acervo a ele, que, entusiasmado, logo pensou em fazer uma homenagem ao Cavalcanti. Mas o governo estadual de então encerrou-se e nosso projeto não deu certo. Quando Orlando Senna assumiu a Secretaria do Audiovisual, na gestão de Gilberto Gil, no Ministério da Cultura, vi que chegara o momento oportuno. Com apoio da SAv-MinC, através do Orlando, consegui escrever o livro e organizar uma exposição e mostra, ao longo de 15 dias, com os melhores filmes de Cavalcanti, na Cinemateca do MAM, além de editar um catálogo. O resultado foi maravilhoso, pois saíram mais de 100 matérias em jornais do Brasil inteiro. Com a repercussão na imprensa, veio o interesse de muitos estudantes na elaborações de dissertações e teses sobre Cavalcanti, defendidas em universidades do Rio, São Paulo, Campinas, Florianópolis, Belo Horizonte, Recife, Buenos Aires, entre outras.

Pouco depois do falecimento de Cavalcanti, pedi ao meu amigo Maurício Azêdo, que era vereador pelo PDT, que uma rua e uma escola ganhassem o nome do cineasta.

Hoje, temos uma rua no Recreio dos Bandeirantes e um CIEP (Centro Integrado de Ensino Público), em Vilar Carioca, no bairro de Campo Grande. Cavalcanti me dizia preferir uma escola com seu nome, que ser nome de rua. Ele entendia que o nome de uma rua não despertaria interesse nos moradores, eles não iriam se preocupar em saber quem foi. Já o nome numa escola seria diferente. Na primeira redação, o aluno se motivaria a pesquisar o nome de sua escola. E o nome em um CIEP, numa região pobre, motivou mais de 1.500 crianças a fazer pesquisas nos últimos 27 anos sobre o grande cineasta, tão injustiçado em sua terra natal e mais reconhecido na Europa. Isto me deixa muito orgulhoso. Foi uma grande vitória! No final do ano passado, fiz palestra em comemoração aos 27 anos do CIEP. Em São Paulo, há, também, uma Rua Cineasta Alberto Cavalcanti.

As pesquisas para o meu livro foram realizadas em periódicos (centenas de reportagens) e livros. As fotografias, ganhei de vários amigos dele aqui no Rio. Depois que ele faleceu, o cineasta Gilvan Pereira pediu a um amigo do Cavalcanti, de Paris, que enviasse seu acervo, pois ele, Gilvan, queria escrever um livro. Mas acabou falecendo antes de concretizar seu projeto e a irmã dele, que morava no Recife, ficou com tudo. Pedi a ela para me enviar o material, pois eu estava escrevendo um livro sobre Cavalcanti. Quando ela mandou, o livro já estava pronto.

Tinha prazo para o lançamento, junto com a exposição. Mas tenho muitas coisas pessoais do Cav guardadas. A Roberta Canuto fez uma tese na PUC sobre o meu acervo. Tenho, inclusive, o original da biografia escrita por Hermilo Borba Filho.

Gostaria muito de ampliar o meu livro, pois o Cavalcanti acabou, nos últimos anos, sendo reconhecido um pouco mais na sua terra natal. As teses nas universidades brasileiras, a carta de Alain Renoir (filho de Jean Renoir), contando do cartaz do filme de Cavalcanti na sala da casa do Martin Scorsese e Liza Minelli, em Los Angeles, tudo me motiva. A honrosa carta enviada pelo genial Costa-Gavras, contando que leu o meu livro e gostou. Ele mandou traduzir. Que honra receber uma carta do mais politizado cineasta do mundo e presidente da Cinemateca Francesa. O meu livro foi para Angola, Cuba, Praga, Buenos Aires, Montevidéu e chegou até à Universidade Harvard”.

ROBERTA CANUTO: “‘Descobri’, assim, com aspas, Alberto Cavalcanti em uma grande exposição que o Sesc Rio promoveu em meados de 2009, aqui no Rio. Antes disso, havia lido sobre ele em um dos livros do Alex Vianny, quando preparava meu livro sobre a história do audiovisual brasileiro. Me impressionou o fato de eu ter trabalhado e pesquisado cinema por tanto tempo e desconhecer a dimensão e grandeza do Cavalcanti. A minha predileção por temas e autores “marginais” também influenciou na escolha do Cavalcanti como meu tema de pesquisa, no intento de restituir minimamente a memória sobre a sua obra e compartilhar academicamente as descobertas que poderiam vir desta pesquisa.

Na base dos meus estudos, existe precioso e amplo acervo pessoal do Cavalcanti sob a guarda de Sergio Caldieri. São textos, cartas, esboços de suas memórias, entre outras preciosidades. Trabalhei sobre esse material, cruzando estes dados com a bibliografia que existe na Europa, EUA e Brasil (existem pouquíssimas fontes bibliográficas aqui… a maioria das fontes que usei foram publicadas em outros países). Foi razoavelmente fácil acessar os arquivos internacionais, pois a maioria está disponível na web. Contei também com a ajuda de amigos que moram fora do Brasil que me enviaram livros e filmes da França e da Inglaterra (o maior acervo fílmico e de documentos existente sobre o Cavalcanti está sob guarda do BFI – Instituto Britânico de Filmes) e pretendo acessá-lo agora no pós-doutorado.

Minha tese intitula-se ‘Alberto Cavalcanti – Homem Cinema’, justamente porque proponho o cruzamento de dados entre a vida pessoal e a obra dele. Meu foco é especialmente o documentário e sua relação com o Neorrealismo. Proponho que Cavalcanti antecipou algumas premissas atribuídas ao movimento italiano. Essa analogia abrange também a fase francesa, com “Rien que les Heures”. Na tese, construo linha cronológica que vai do avant-garde até a fase pós-Vera Cruz, com sua adaptação de ‘Senhor Puntilla e seu Criado Matti’, do Bertoldt Brecht.

Creio que a revelação do acervo mencionado e a analogia com o Neorrealismo italiano e suas reverberações em movimentos como o Cinema Novo são a essência de meu estudo. Abordo, também e bastante, a relação do Cav com o Jean Renoir (1894-1979). Creio que o aprofundamento deste tema é bastante raro do ponto de vista acadêmico.

Cavalcanti tinha um projeto de autobiografia. Trabalhei sobre três esboços dessas memórias, e falo delas na tese. Infelizmente, só trechos desses escritos foram publicados no livro do Valentinetti e Pelizzari. A primeira das versões está em primeira pessoa e em inglês, acessei este documento na Cinemateca Brasileira. A segunda foi publicada em trechos por Valentinetti e Pelizzari no livro deles, e a terceira é um rascunho assinado pelo Hermilo Borba Filho, que está entre os documentos sob guarda do Caldieri. Essa é a versão mais recente (1972, salvo engano). Na verdade, são todas um desenvolvimento da que encontrei na Cinemateca.

Há, sim, vozes dissonantes na avaliação da obra de Alberto Cavalcanti. Cito o Glauber Rocha, por exemplo. Cito, também e bastante, toda a controversa relação entre ele e o britânico John Grierson (1898-1972). O Cav era genial, mas não era fácil” (risos).

2 thoughts on “Alberto Cavalcanti sai do esquecimento

  • 16 de setembro de 2020 em 12:23
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    Excelente! Boa matéria.
    Finalmente Alberto Cavalcanti está sendo tratado com carinho, atenção e seriedade que merece.
    Meu pós doutorado (Alberto Cavalcanti e as bases para um desenho sonoro) é sobre um período de sua vida (avant-garde e GPO), com foco no trabalho do som. Espero poder publicar no ano que vem.
    Parabéns.
    Virginia

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  • 19 de junho de 2023 em 22:07
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    Maria do Rosário Prezada doutora. Maravilhoso trabalho você fez sobre meu primo, Alberto.
    Eu era garoto de 14/17 anos, quando o conheci no casamento de meu primo, em Olinda, PE. Sentamos e ele me contou da vida fora do Brasil. Eu na época era louco para morar fora.
    Se interessar a seus “alfarrábios”, ele ficou hospedado na casa de minha tia e prima dele, Celia Campello Marroquim. Como presente de casamento ele fez uma reforma completa no casarão, em Olinda, que hoje é um museu da família, aberto a visitação dos hospedes do Hotel.
    Tenho algumas fotos do Hotel e do casarão anexo à casa, onde hoje é o Museu, e em cuja varanda o via escrevendo e na tranquilidade do local, se não me engano ele pintou um quadro. Faz muito tempo.

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