Festival dedicado ao cinema e à música mostra 60 filmes on-line
Por Maria do Rosário Caetano
A Bahia vai dar régua e compasso à mostra competitiva brasileira do In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical, que realiza, on-line, sua décima-segunda edição, a partir dessa quarta-feira, 9 de setembro. Até o dia 20, com acesso em todo o território brasileiro, serão exibidos mais de 60 filmes.
A competição nacional tem quatro longas baianos, um paulista e um brasileiro-estadunidense. A terra de Jorge Amado chega botando banca com documentário inesperado, de nome provocador, “Porfírio do Amaral: a Verdade Sobre o Samba”, de Caio Rubens. E prossegue com um de seus maiores artistas, “Dorivando Saravá, o Preto que Virou Mar”, ou seja, Dorival Caymmi, em belo e inquieto filme de Henrique Dantas. Outra força da música afro-baiana, o cachoeirense Mateus Aleluia, mostra “O Canto Infinito do Tincoã”, de Tenille Bezerra. Para completar a potência musical-cinematográfica do estado nordestino, Sérgio Machado e George Walker Torres, mandam ver com “Neojibá – Música que Transforma”.
Completam a lista de concorrentes ao direito de representar o Brasil no In-Edit Espanha, matriz desse festival cada vez mais mobilizador de nossas plateias, o paulista “Garoto – Vivo Sonhando”, de Rafael Veríssimo, e o internacional (e brasileiríssimo) “Dom Salvador & The Abolition”, de Artur Ratton e Lilka Hara.
O que é que os baianos têm a mostrar no campo do cinema alimentado pela música? A comissão de seleção do In-Edit Brasil pisou na bola ao selecionar quatro filmes (em reduzida lista de seis) oriundos todos da terra de Gil e Caetano?
A Revista de CINEMA assistiu aos seis filmes para tirar a teima. E dobrou-se às opções da curadoria. Os baianos têm compositores-cantores de muito valor e souberam, com criatividade e paixão, narrar cinebiografias (reais ou inventadas) de seus artistas. E acompanhar uma orquestra juvenil em tour europeu.
Caio Rubens fez de “Porfírio do Amaral: a Verdade sobre o Samba”, o mais inesperado dos filmes da competição. Tudo que se disser sobre ele acabará em spoiler. Por isso, pouco falaremos. Mas fica um alerta aos que amavam o programa “Ensaio”, de Fernando Faro (1927-2016), apresentado por décadas na TV Cultura: vocês vão divertir-se (e muito) com “Porfírio”. Afinal, o “Baixo” sergipano tem forte presença na química porfiriana. Hão de divertir-se, também – pasmem – com um Chico Buarque bem-humorado, cúmplice e caindo de cabeça nas trapaças da arte cinematográfica.
“Dorivando Saravá, o Preto que Virou Mar” tem um nome tão lindo, que, se o ouvisse, Dorival Caymmi haveria de, marotamente, revirar os olhos e suspirar. O inquieto Henrique Dantas, autor de saborosa viagem ao universo dos Novos Baianos (“Os Filhos de João – Admirável Mundo Novo Baiano”), é autor dos melhores títulos do cinema brasileiro e um cineasta inquieto. Daqueles que fazem questão de buscar caminhos não trilhados-surrados.
Há muitos filmes sobre Caymmi. Por que mais um? Porque Dantas queria apresentar recorte novo, queria mostrar a força da negritude e do culto aos orixás na obra do compositor e “ator rústico” (como o definia o compadre Jorge Amado). O resultado é revelador e fascinante.
O terceiro concorrente baiano – “Aleluia, o Canto Infinito do Tincoã” – mergulha na trajetória musical e espiritual do compositor, violonista e cantor Mateus Aleluia, de 77 anos, um cachoeirense que estourou (com a trupe Os Tincoãs) na trilha sonora da novela “A Escrava Isaura” (TV Globo, 1976), com o sucesso “Cordeiro de Nanã”. Em 1982, ele foi compor, cantar, pesquisar sons, enfim, viver em Angola. Regressou 20 anos depois e hoje segue suas vivências musicais e religiosas regidas pelos orixás.
A safra hegemônica dos baianos encerra-se com um filme que, de saída, não nos anima muito. Sabe aquelas imagens que nos induzem a exclamar: “vem aí mais um filme sobre crianças pobres que buscam na arte uma saída”. Pois saibam que “Neojibá – Música que Transforma”, apesar do título de alma “ongueira”, é uma maravilha. Se, no começo, parece “mais do mesmo”, à medida que a narrativa avança, torna-se apaixonante, cosmopolita, aliciador.
O experiente Sérgio Machado (“Cidade Baixa”), em parceria com Walker Torres, pega a estrada do cinema com a Orquestra Juvenil da Bahia. Formada com adolescentes da periferia, muitos deles pretos e pretas pretinhas, a orquestra recebe convite para apresentar-se na Europa. Como o time é grande demais, o Maestro Ricardo Castro avisa que um teste selecionará os melhores. Angústia, insegurança, famílias sofrendo junto com a garotada. Com o time escolhido, a turma Neojibá chega à Itália, conhece Verona, cenário dos amores de Romeu e Julieta, Bolonha, Roma etc. Faz muitos concertos, ganha muitos aplausos.
Um dia, a meninada conhece a pianista argentina, cidadã do mundo, Martha Argerich e, juntos, ensaiam para concerto em solo italiano. Mas, no dia D, a argentina leva um trombo e fica impossibilitada de apresentar-se com a garotada. Ninguém pense, porém, que o sonho desmanchou-se no ar. Num concerto na França, Argerich senta-se ao piano e juntos a todos encantam. Ao público, ao maestro e à própria pianista (e aos meninos e meninas baianas, que fazem fotos, nos bastidores, com a artista). Para dar destaque ao charme dos “neojibás”, a câmara registra o bailado de corpo dos adolescentes. Dois integrantes do projeto Neojibá caem no samba. A Europa se dobra ao encanto baiano.
Cabe a dois filmes – “Garoto – Vivo Sonhando” e “Dom Salvador & The Abolition” – representar o restante do Brasil na competição do In-Edit. O primeiro, dirigido por Rafael Veríssimo, é excelente. Um mergulho revelador na obra de Anibal Augusto Sardinha (1915-1955), um dos maiores violonistas de nossa história musical. Paulistano, ele dedicou-se a vários instrumentos de corda, viveu nos EUA (integrou o Bando da Lua, de Carmen Miranda, e aparece com ela no filme “Serenata Tropical”), compôs o choro “Duas Contas”, sua obra-prima, e também um hit-fuleiragem, a polca-dobrado “São Paulo Quatrocentão”, que vendeu 700 mil cópias (um espanto na época). Pela primeira vez, mostra o filme, Garoto enchia o bolso de dinheiro (o dele e o do parceiro Chiquinho do Acordeon). Seus conterrâneos, eufóricos com o quarto centenário da metrópole, só queriam saber daquele dobrado de melodia singela e letra exaltação.
O trabalho sofisticado do artista, felizmente, é a razão de ser do filme, sedimentado em primoroso roteiro de Marcelo Machado e Rafael Veríssimo. Foi, afinal, uma de suas elaboradas melodias – “Gente Humilde” – que ganhou letra primorosa de Vinícius de Moraes e Chico Buarque e trouxe o Garoto – mesmo que postumamente – de volta às paradas de sucesso (inclusive na voz de Ângela Maria).
O genial Anibal Sardinha era amado pelo pessoal da Bossa Nova (em especial por Baden Powell, Carlos Lyra e Roberto Menescal), e respeitadíssimo por gente como Radamés Gnatalli. Um precursor da Bossa Nova. Daí que torna-se obrigatório destacar um dos grandes momentos do filme. Carlos Lyra, ainda hoje um “broto” de 81 anos, aparece na porta de um antigo prédio carioca. Para que esforço tão grande? Havia necessidade de deslocar o compositor e equipe de filmagem para tal ambiente? A emoção contida, mas profunda de Lyra provará que sim. O violonista Garoto morava ali e dava aulas ao apolíneo Carlinhos. Um dia, o rapazinho foi tomar a lição e soube, estupefato, que não seria possível. Enfarte fulminante matara seu professor, então com apenas 39 anos (faria 40 no mês seguinte). Um filme arrebatador. O grande rival da poderosa esquadra baiana.
Artur Ratton e Lilka Hara fazem de “Dom Salvador & The Abolition” um simpático e eficiente retrato do músico paulista (de Rio Claro), de 82 anos, que vive nos EUA. Negro de rosto quadrado, beleza de rei e porte talhado para modelo de estátua, Dom Salvador é um personagem fascinante. Além de pianista de imenso valor, ele fala com desenvoltura e é dono de senso de humor econômico, mas eficaz. A sequência em que procura, em loja de Nova York, um disco seu, raríssimo, é fantástica. O vendedor encontra a raridade e dá o preço: 300 dólares (algo como R$1.500,00). O pianista sorri e avisa que está além de suas posses pagar tanto por tal aquisição.
São, também, contagiantes os trechos dedicados ao músico quando ele integrou a onda da Black Music que varreu os subúrbios do Brasil (do Rio, em especial), no final dos anos 1960 e na fervilhante década de 70. E, notável, um único momento em que o racismo estrutural ganha, em sua voz, contundente pontuação. Ao escolher foto para encapar CD gravado no Carnegie Hall, ele opta por imagem em que sua negritude e cabelos brancos transformam-se em poderosos e respeitáveis símbolos.
Alguns momentos do filme mereciam maior aprofundamento. Em especial, sequência em que um familiar conta que o menino pobre e preto, batizado Salvador da Silva Filho, escolhera instrumento não muito usual nas casas afro-brasileiras: o piano. Comprar um violão, um cavaquinho ou uma tumbadora seria bem mais simples. Mesmo assim, a família economizou aqui, ali, onde desse, e conseguiu dar o instrumento ao rapaz. História tão exemplar mereceria uns bons minutos, não momento tão fugaz. Mesmo assim, um filme obrigatório.
Fora de competição, na Mostra Brasil, estão dez longas documentais realizados em diversas regiões do país. Um deles, “Sambalanço – A Bossa que Dança”, de Fabiano Maciel, tem roteiro e narração de Tárik de Souza. Um filme delicioso, que cometeu um “grave pecado”: utilizou narração off. O recurso, hoje, consta do índex do cinema documental. Ou seja, está posto na cartilha informal que condena ao inferno quem recorre à autoridade da “voz do dono”. O mesmo se passa com os adeptos da entrevista. Os “cabeça-falante” estão em baixa total.
“Sambalanço” nasceu de delicioso livro de Tárik de Souza sobre a geração musical de Orlan “Sambaflex” Divo, Durval Ferreira, Ed Lincoln, Jadir de Castro, entre outros (incluindo Eumir Deodato, que, em tom sério, indaga: “o que é sambalanço?”). Essa moçada achava a Bossa Nova muito legal, mas pouco dançante. Resolveu, então, botar para derreter nos bailes de subúrbio, colocando balanço no samba. Sem nome ou conceito, nascia o que Tárik uniu, estudou e chamou Sambalanço e que Fabiano Maciel transformou em filme.
O compositor Elton Medeiros (1930-2019), autor de grandes sambas e de, pelo menos, duas obras-primas (“O Sol Nascerá”, com Cartola, e “Pressentimento”, com Hermínio Bello de Carvalho) é tema de “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”, de Pedro Murad.
A atriz e cineasta Ana Maria Magalhães marca presença com “Mangueira em 2 Tempos”, sobre o projeto Mangueira do Amanhã, fonte de importantes componentes para os quadros das grandes Escola de Samba do carnaval carioca.
Completam a Mostra, “Afro-Sampas”, de Jasper Chalcraft e Rose Hijiki, “Arto Lindsay 4D”, de André Lavaquial, “Liberta”, de Ivan 13P, “Ventos que Sopram – Pará”, de Renato Barbieri, “Matriz.Doc” (Pitty a Olho Nu), de Otávio Souza, “Memórias Afro-Atlânticas”, de Gabriela Barreto, e “Tempo Zawose”, de Lwiza Gannibal.
Como a produção brasileira segue muito abundante no terreno do documentário musical, o In-Edit montou mais uma mostra informativa – a Brasil.Doc, composta com seis longas e médias-metragens: “Faça Você Mesma”, de Letícia Marques, “Mestre Cupijó e seu Ritmo”, de Jorane Castro, “Encantadeiras – O Canto e o Encanto das Quebradeiras de Coco Babaçu”, de Betse de Paula, “Na Dança”, de Roberto Gervitz, “Bernardo na Vida, BMO na Batalha”, de Danilo Belchior, e “Hip Hop e Mercado: O Rap”, de Leo Pappel e Rodrigo Furlani.
Os curtas brasileiros, num total de 14 títulos, ganham mostra panorâmica. Um deles, “Quando Elas Cantam”, de Maria Fanchin, causou sensação no Festival de Vitória (imperdível). Outro, “Viva Alfredinho!”, de Roberto Berliner, embora tecnicamente precário, emana amor e fraternidade por figuraça do Rio boêmio, o dono do minúsculo boteco Bip Bip, o Alfredinho do título. Militante de esquerda e boca-suja, ele era adorado por seus clientes. Que o homenageiam, com muito samba, alegria e lágrimas, em hora derradeira (seu funeral).
Completam a mostra de filmes de curta duração: “Amaro Freitas – O Piano Como Extensão da Alma”, de Suzanna Borba, “Naticorda”, de Taciano Valério, “Jazsmetak”, de Bruno Rico e Diego Arvate, “Cidade São Mateus”, de Gabriel César, “UN”, de Sergio Mekler, “13 Horas”, de Marco Chagas, “Nas Quebradas do Boi”, de Igor Machado, “Dub Magnificente”, de Mario Cezar Rabello, “Eu Vejo Névoas Coloridas”, de Pedro Jorge, “Free Seat”, de Ardalan Aram, “Cantos de Origem”, do Matuta Coletivo, e “Nada Pode Parar Os Autoramas”, de Bruno Vouzella e Manoel Magalhães.
Há que se lembrar que o In-Edit é um festival internacional e que traz parte do que se faz, no mundo inteiro, no terreno do documentário musical. A curadoria selecionou “Aznavour by Charles”, de Marc di Domenico, sobre o astro francês de origem armênia, paixão de muitos saudosistas (ou não). Detalhe importante: as imagens que compõem o filme foram feitas pelo próprio Charles Aznavour (1924-2018), com câmera que ganhara de presente de sua namorada e protetora Edith Piaf (1915-1963).
São 22 filmes internacionais, entre os quais destacam-se “The Quiet One”, com Bill Wyman, baixista original dos Rolling Stones, e “My Darling Vivian”. Neste, as filhas do primeiro casamento de Johnny Cash decidem fornecer sua versão sobre a trama do longa ficcional “Johnny e June”, que fascinou a muitos pelo visceral desempenho de Joaquin Phoenix e Reese Witherspoon.
Um país, Portugal, será homenageado pelo In-Edit com mostra de filmes apoiada pelo Instituto Camões. Foram selecionados seis títulos, e a curadoria destaca “a biopic sensação” do ano “Variações”, em pré-estreia brasileira. Mais cinco filmes foram convocados para a mostra lusitana: “Silêncio – Vozes de Lisboa”, de Judit Kamár e Céline Carlisle, “Vadio – I Am Not a Poet”, de Stefan Lechner, “Batida de Lisboa”, de Rita Maia e Vasco Viana , “Zé Pedro Rock’n’Roll”, de Diogo Varela Silva, e “7 Évoras em Kepa”, de José Coimbra e Tiago Guimarães. Em pauta, o fado, o rock português e a música alentejana.
Toda a receita arrecadada pela décima-segunda edição do In-Edit Brasil será revertida em prol de trabalhadores da música e do cinema afetados pela pandemia. 50% da receita irá para o Conexão Música, fundo criado e gerido por músicos e produtores independentes sediados em São Paulo. Os outros 50% irão para o Fapan (Fundo de Amparo aos Profissionais do Audiovisual Negro), gerido pela APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro).
XII In-Edit Brasil – Festival Internacional do Documentário Musical
Exibição on-line de 60 filmes, masterclass de Julien Temple, shows exclusivos com Autoramas, Felipe Cordeiro e banda Flicts
Programação disponível no site do festival (www.in-edit-brasil.com)
Há filmes gratuitos e filmes pagos (acesso a R$ 3,00). O espectador pode escolher filme isolado, ou comprar Pack de 5 ou 10 títulos. É possível assistir aos filmes pela TV através do Chrome Cast (basta conectar o computador ou notebook à sua TV através de cabo HDMI)
Inscrições no site a partir dessa quarta-feira, 9 de setembro
Parte da programação estará disponível na plataforma do Sesc Digital (www.sescsp.org.br/cinemaemcasa) com acesso gratuito, e, a partir de 21 de setembro, na Spcine Play (www.spcineplay.com.br), também com acesso gratuito. Acesso aos filmes, via ingresso de R$3,00, dará ao espectador prazo de 72 horas para o visionamento (com algumas exceções).
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