Mostra SP abre sua 1ª edição digital com “Nova Ordem”, filme mexicano premiado em Veneza
Por Maria do Rosário Caetano
Em tempos de pandemia, o maior festival do país, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, inaugura sua primeira edição virtual com um filme mexicano, violento e convulsivo, de nome premonitório, “Nova Ordem”.
O cineasta Michel Franco, que viu seu sexto longa-metragem destacado com o Leão de Prata, segunda maior láurea do Festival de Veneza, não estará em São Paulo para prestigiar a abertura da quadragésima-quarta edição da Mostra.
A sessão presencial do filme acontecerá nessa quinta-feira, 22 de outubro, no Belas Artes Drive-In (às 19h30). Portanto, ao invés do badalado Auditório do Ibirapuera, os apresentadores Renata de Almeida, diretora da Mostra, e Serginho Groisman, falarão para ocupantes de 100 automóveis. Nenhum convidado internacional, ou brasileiro, virá acompanhar e debater, presencialmente, seus filmes. Muitos o farão no espaço digital, já que a Mostra preservou, em bloco, seu espaço reflexivo, composto de seminários, palestras, oficinas, fórum, debates e encontros notáveis (esse ano, com o cineasta Ruy Guerra).
O público terá acesso à cerimônia inaugural pela plataforma Mostra Playe, a partir da meia-noite, e poderá conferir, por 24 horas, a exibição da “Nova Ordem” mexicana. Renata de Almeida destacou, em coletiva da Mostra, tratar-se de “plataforma exclusiva, capaz de garantir a qualidade de transmissão das melhores e mais recentes produções cinematográficas do mundo”. Isto porque “trabalharemos com as empresas Festival Scope e Shift72, que uniram-se na pandemia e foram responsáveis por edições on-line dos festivais de Toronto e Tribeca e pelo Mercado de Cannes”. Se não tivesse buscado suporte tão qualificado, o festival paulistano não teria conseguido a liberação de 198 filmes internacionais (vindos de 70 países) e brasileiros para sua edição de número 44.
Outro feito da Mostra: os produtores queriam que seus filmes fossem vistos por, no máximo, mil espectadores virtuais. Renata lutou até conseguir, de alguns deles, a marca de duas mil visualizações. Então, brasileiros de todo país poderão adquirir ingressos ao preço módico de R$6,00 e ver filmes dos chineses Jia Zhangke e Ai Wei-Wei, da japonesa Naomi Kawase, dos iranianos Majid Majidi e Jafar Panahi, dos estadunidenses Frederick Wiseman e Abel Ferrara, do russo Sergei Loznitsa, do chileno Andrés Wood e do português João Botelho (“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, baseado em José Saramago, tendo Chico Diaz como protagonista). E, registre-se, os cinéfilos têm encontro marcado com um Lav Diaz sintético (“Gênero, Pan” ). Sim, o filipino trocou seus filmes molhados por temporais e imensos (durações de quatro a oito horas), por narrativa de “apenas” 157 minutos.
Um alerta aos que amam o cinema de outras geografias. A maior iguaria desse ano tão tumultuado deve ser servida por Jia Zhangke: o longa-metragem “Nadando Até o Mar se Tornar Azul”. O genial diretor de “Still Life – Em Busca da Vida” mostrará ainda o curta “A Visita”. E a cinefilia paulistana (e brasileira) há de deliciar-se com vinheta e material gráfico do festival, criados a partir de imagem cedida pelo chinês.
“Jia Zhanke” – explicou Renata de Almeida na coletiva de imprensa – “quis nos presentear com imagem que evocasse cura, que nos tranquilizasse nesses tempos tão difíceis, tempos de epidemia”.
Um filme – “Miss Marx” – anuncia-se imperdível. Vindo direto da seleção de Veneza, esta produção ítalo-belga, dirigida por Susanna Nicchiarelli, conta a trágica vida de Eleanor Marx, filha suicida do filósofo Karl Marx (1818-1883). Caçula da imensa prole do pai do Comunismo, Eleanor (Romola Garai) era uma combatente pelos direitos dos trabalhadores e pela emancipação das mulheres. Ao apaixonar-se por Edward Aveling (Patrick Kennedy), ator ambicioso e egoísta, ela será consumida por sentimentos muito complexos. Empenhado em dilapidar a herança deixada a Eleanor, por Friedrich Engels (1820-1895), Edward arremessará a companheira no abismo. Viciada em ópio, a moça daria cabo à própria vida em 1898. Tinha apenas 43 anos.
O número de longas-metragens programados pela Mostra, que já beirou a espantosa marca de 400 títulos, caiu pela metade. Esse ano, por causa da pandemia, elemento de desorganização do mercado audiovisual, os cinéfilos não terão como seguir, por exemplo, a lista de filmes pré-indicados ao Oscar. A própria Academia de Hollywood adiou suas inscrições para o final do ano e marcou sua badalada cerimônia para o dia 25 de abril (ao invés de fevereiro). Mas estão garantidas as seções Perspectiva Internacional, Competição Novos Diretores (com 17 jovens realizadores brasileiros habilitados a concorrer), Mostra Brasil e Apresentação Especial.
A Mostra SP emplacou em sua programação o vencedor do Urso de Ouro, em Berlim, “Não Há Mal Algum”, do iraniano Mohammad Rasoulof. Os laureados de Cannes não ganharam materialidade, já que o festival não aconteceu (maio assistiu ao auge da epidemia na Europa). O comando francês divulgou, porém, títulos que integrariam suas competições. Alguns deles serão apresentados pelo festival paulistano.
O vencedor de Veneza (“Nomadland”, da sino-estadunidense Chloe Zhao) não será exibido pela Mostra, porque seus produtores estão montando estratégia para conquistar o maior número possível de indicações ao Oscar. Vencedor, também, do júri popular em Toronto, o filme estrelado por Frances McDormand credenciou-se como o primeiro grande favorito às estatuetas de Hollywood.
O Brasil marca presença na Mostra SP com 31 títulos novos e três filmes antigos. Estes servem de tributo ao cineasta baiano Fernando Coni Campos (1933-1988), homenageado por sua obra original e realizada com muita imaginação e poucos recursos.
O longa mais famoso de Coni (lê-se Côni) é “Ladrões de Cinema”, realizado em 1977. Um dos roteiros mais inventivos de nossa história cinematográfica, teve remake planejado (mas não executado) por Arnaldo Jabor. Desmedido, às vezes histérico, “Ladrões de Cinema” conta história saborosa: um grupo de favelados, vestidos de índio em pleno carnaval, furta equipamentos de cinema de equipe norte-americana (que documentava a imagem deles).
Os ladrões se encantam com a câmara e resolvem fazer um filme. Só um deles fica contrariado, pois preferia vender o material. O colegiado decide contar a história de Tiradentes e da Inconfidência Mineira. Eles mesmos seriam os protagonistas. Concluída a última cena, Silvério, um dos ladrões, resolve delatar seus pares. O filme chega às mãos da polícia brasileira e aos cinemas dos EUA, onde será exibido com o nome de “Sweet Thieves”. Na pré-estreia carioca, os “cineastas” comparecem, mas saem de lá algemados pelos tiras.
Jean-Claude Bernardet, que interpreta um estrangeiro na trama, relembra o clima das filmagens, “muito livres”, pois Coni queria que os atores (Wilson Grey, Lutero Luiz, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Grande Otelo, Procópio Mariano, Antônio Pitanga, Léa Garcia, Josephine Hélène, Ruy Polanah, Vera Regina) improvisassem. Ele mesmo resolveu levar a improvisação ao paroxismo com sua partner, filha de um embaixador. Agarrou a moça e beijou-a. Causou estranhamento, pois aquilo não estava previsto no roteiro.
Antônio Pitanga e Bernardet vão participar de “live” sobre “Ladrões de Cinema” (127 minutos). Aliás, nesse festival, o professor da USP, ensaísta e, agora, cada vez mais ator, terá participação notável. Ele exibirá sua estreia como diretor de longa-metragem – “#Eagoraoque” – filme experimental e politizado, que engendrou em parceria com Rubens Rewald. Os dois diretores aparecem no filme ao lado de Vladimir Safatle, Valmir do Côco (ou Catita de Pernambuco, do filme “Azougue Nazaré”) e Palomaris Mathias.
O filme pretende responder a algumas indagações-provocações: “Como agir politicamente nos dias de hoje? É possível mudar as coisas, as pessoas, a sociedade? E agora o que fazer?”
Bernardet contou, em “live” do Festival Aruanda, que o filósofo e músico Vladimir Safatle, professor da USP e figura fundamental em “#Eagoraoque”, estava “muito travado durante as filmagens”. Foi aí que “resolvemos trazer o Catita, direto de Pernambuco, que causara furor em ‘Azougue Nazaré’, um filme maravilhoso (Tiago Melo, 2019)”.
Os dois diretores colocaram Catita em contato com Safatle: “pedimos a ele que nos ajudasse a quebrar a contenção, o travamento corporal, do intelectual paulistano”. Bernardet e Rewald entendiam que “a força de um homem negro, de 130 quilos, corporalidade solta e incontida”, atuando ao lado de “um intelectual branco, magrinho e travado” resultaria em energia transgressora e revitalizadora.
O filme, que custou apenas R$14 mil ficará em cartaz durante boa parte da Mostra. “Sugiro a todos que o assistam” – propõe Bernardet – “pois nada garante que #Eagoraoque chegará aos cinemas”. E por que? “Porque usamos materiais de arquivo dos quais não temos liberação de uso (direito autoral)”. Para arrematar: “um sobrinho meu vive angustiado. Ele escreve roteiros e mais roteiros, mas não consegue recursos para filmá-los. Meu conselho é filmar com o que der, só não pode ficar parado, aguardando resultado de editais. Como é que pode um cineasta com o talento de Chico Teixeira (1958-2019) realizar apenas dois longas-metragens ao longo de seus 60 anos?”
No debate on-line sobre “Ladrões de Cinema”, Bernardet promete colocar fogo no circo. Uma das provocações que ele deve fazer a este filme, que o teve no elenco, relaciona-se com uma de suas maiores preocupações: a representação do povo.
“O filme do Coni” – adianta o professor-ator – “coloca os meios de produção nas mãos de pessoas das classes populares, só que estas, ao realizarem um longa-metragem, vão buscar seu protagonista na história oficial, ou seja, em Tiradentes, uma criação das elites brasileiras. Por que não filmaram suas próprias vidas?”
Além de “Ladrões de Cinema”, Fernando Coni Campos será relembrado pela Mostra com exibição de mais dois filmes: “Viagem ao Fim do Mundo” (1966), inspirado em dois capítulos (“O Delírio” e “O Senão do Livro”) de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Machado de Assis, 1881), e “O Mágico e O Delegado”, vencedor do Festival de Brasília de 1983 (nesse filme, Nélson Xavier e Lutero Luiz dão um show).
A representação brasileira na Mostra SP chama atenção pela significativa presença de jovens realizadores (em seus primeiro ou segundo longa-metragem). O mais aguardado dos filmes é “Casa de Antiguidades”, estreia de João Paulo Miranda Maria no longa-metragem, selecionado para a edição de Cannes (a que foi cancelada pela epidemia).
Outros títulos verde-amarelos estarão pleiteando vaga – caso consigam votos do público – na disputa pelo Troféu Bandeira Paulista (do júri oficial) e Prêmio da Crítica (atribuído pela Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema). No primeiro caso, a disputa se dará com diretores de primeiro ou segundo filme vindos de alguns dos 71 países representados no festival. No segundo caso, o Júri Abraccine só avaliará os 17 longas brasileiros (de estreantes ou segundo filme). Entre eles, estão “Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos, “Filho de Boi”, de Haroldo Borges, “O Livro dos Prazeres”, de Marcela Lordy, “Um Dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira, “Mar de Dentro”, de Dainara Toffoli, e “Êxtase”, de Moara Passoni.
Renata de Almeida faz questão de registrar que “25% dos filmes programados trazem nomes femininos na direção”. E que “a edição do Fórum da Mostra, esse ano, dará prosseguimento aos debates do ano passado, cuja temática centrou-se na produção audiovisual das mulheres”. O Fórum Nacional de Lideranças Femininas no Audiovisual é fruto de parceria do festival paulistano com a ONU Mulheres Brasil, Spcine e +Mulheres Lideranças do Audiovisual Brasileiro.
Esse ano, a Mostra entregará o Prêmio Humanidade ao documentarista estadunidense Frederick Wiseman. Dele será exibido o filme “City Hall”, que Renata define como “obra obrigatória em ano de eleições municipais”. O Prêmio Humanidade será atribuído, também, aos funcionários da Cinemateca Brasileira, instituição que vive grave crise, desde a posse do Governo Bolsonaro.
A produtora Sara Silveira, que integra o júri da Mostra (ao lado da montadora Cristina Amaral e do cineasta Felipe Hirsch), receberá o Prêmio Leon Cakoff. Renata de Almeida lembrou que a láurea, tributo à memória do criador da Mostra, tem sido entregue a realizadores. Sara, dedicada integralmente à produção, é a terceira desse ramo a empalmar o Prêmio Leon Cakoff. Os anteriores foram os franceses Marin Karmitz e Anatole Dauman. Para a diretora da Mostra, “Sara Silveira é uma produtora que sempre apostou em novos talentos”.
Um dos filmes de jovens realizadores que Sara produziu será mostrado no Dia dos Mortos, dois de novembro. Trata-se de “Todos os Mortos”, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, integrantes do fértil coletivo Filmes do Caixote. Coproduzido com parceiros franceses, o longa, de potente inventividade, representou o Brasil na disputa pelo Urso de Ouro, no Festival de Berlim.
44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Data: 22 de outubro a 4 de novembro
Com exibições em streaming e sessões presenciais no Belas Artes Drive-in (Memorial da América Latina) e no Cinesesc Drive-in (unidade Sesc Parque Dom Pedro II)
As plataformas Spcine Play e Sesc Digital fornecerão acesso gratuito a 30 títulos. Para ver os filmes da seleção da 44ª Mostra, o espectador deve entrar no site www.mostra.org
Ingressos a R$6,00. Loja digital permitirá a compra, além de ingressos, de camisetas, canecas, bolsas, catálogo e outros itens ilustrados pelo material criado por Jia Zhangke
MOSTRA BRASIL
. “#eagoraoque”, de Bernardet & Rewald
. “Ana – Sem Título”, de Lúcia Murat
. “Glauber: Claro”, de Cesar Meneghetti
. “O Lodo”, de Helvécio Ratton
. “Nas Asas da Pan-An”, de Silvio Tendler
. “Candango: Memórias de Um Festival”, de Lino Meireles
. “Casa de Antiguidades”, de João Paulo Miranda
. “Mar de Dentro”, de Dainara Toffoli
. “Êxtase”, de Moara Passoni
. “Tenthear – Arquitetura do Possível”, de Paloma Rocha
. “As Órbitas da Água”, de Frederico Machado
. “Chico Rey Entre Nós”, de Joyce Prado
. “La Planta”, de Beto Brant
. “Luz Acesa”, de Guilherme Coelho
. “Nheengatu”, de José Barahona
. “Irmã”, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes
. “O Livro dos Prazeres”, de Marcela Lordy
. “Um Dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira
. “Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos
. “Filho de Boi”, de Haroldo Borges
. “Mulher Oceano”, de Djin Sganzerla
. “Cracolândia”, Edu Felistoque
. “Curral”, de Marcelo Brennand
. “Verlust”, de Esmir Filho
. “Todas as Melodias”, de Marco Abujamra
. “Cidade-Pássaro”, de Matias Mariani
. “Dente por Dente”, de Júlio Taubkin e Pedro Arantes
. “Samba do Santo – Resistência Afro-Baiana”, de Betão Aguiar
. “Sobradinho”, de Marília Hughes e Cláudio Marques
. “O Pergaminho Vermelho”, de Nelson Botter
. “Xeque-Mate”, de Bruna Pianti
. “Lamaçal”, de Franco Verdoia
. “Chico Ventana Queria Ter um Submarino”, de Alex Piperno