Cine Ceará abre competição com promissora estreia de Eduardo Morotó

Por Maria do Rosário Caetano

“A Morte Habita à Noite”, longa que abriu, na noite do último sábado, 5 de dezembro, a competição ibero-americana do Cine Ceará, é bem melhor do que sinalizava a sinopse de sua nada modesta proposta – realizar mais um filme inspirado pelas narrativas etílicas e delirantes de Charles Bukowski.

O longa brasileiro, de origem pernambucana, se passa em nossos dias, numa Recife do lumpen-proletarido (ou do “precariado”, termo mais condizente com nosso tempo). Raul, um escritor decadente (Roney Vilella), vive encharcado em álcool e envolvido em relacionamento afetivos (carnais ou paternais) com três mulheres. Primeiro, com Lígia (Mariana Nunes). Depois, com uma jovem de rosto angelical e ar de ninfeta, Cássia (Endi Vasconcelos). E, por fim, com uma misteriosa Inês (Rita Carelli).

O que se vê na tela (no caso, na telinha dos Canais Globo), em 94 minutos, é uma narrativa pulsante, em diálogo com o cinema documental, que valoriza seus personagens, sem esquecer a geografia dessa Recife antiga, de gente que sobrevive de trabalhos esparsos e mergulha na noite ávida por álcool, lazer e, principalmente, sexo.

O elenco rende bem. As três mulheres, vistas em cenas de nudez banhadas em poesia, nunca são objetificadas. Mariana Nunes empresta à descolada Lígia sua exuberância física, ri muito e entabula conversas amalucadas com o parceiro. Ao reunir duas amigas e embriagar-se com elas no modesto apartamento que divide com Raul, o terceto (depois quarteto) comunica-se em diálogos que levam ao riso.

Quem mais ri, aliás, são as três moças, calibradas em vodka forte. Quando Raul perde sua moradia (não pagava aluguel havia cinco meses), vai sobreviver em quarto modestíssimo. E, abandonado por Lígia, verá um “anjo” entrar em sua vida. Uma garota de cabelos louros e cacheados, que faz programas pelas ruas e inferninhos, projeta nele a figura paterna ausente.

Raul vive de pequenos “bicos” no Mercado Central (limpando peixes) ou fazendo faxina nos enferrujados armários de uma loja de autopeças. É aí que entra o personagem do ator paraibano Everaldo Pontes. Na pele do dono da loja, cujos depósitos estão recheados de posters de mulheres nuas, Pontes faz de seu minuto em cena mais uma vitrine para seu talento. Conta ao “empregado” que a esposa, crente religiosa, quer ver o mundo livre daquelas podridões. Mas, com malícia, pede que o “faxineiro” poupe o poster de Betty Faria, de 1984, pois ele é muito especial.

Pedro Gracindo entra para pequena, mas significativa, participação. Em busca de sexo, depara-se com Inês. Ao vê-la desacordada, entra em desespero. O corpo da mulher vai parar no quarto de Raul. E Rita Carelli, como Everaldo Pontes, nos brindará com interpretação de imensa beleza. Ao cantar, bem baixinho, “Manhã de Carnaval” (de Luiz Bonfá, 1959), nos possibilitará um breve momento de epifania.

Embora “A Morte Habita à Noite” dialogue com a comédia erótica (ou pornochanchada), a ponto de exibir, em tela de cinema-poeira, trecho de “Giselle” (Victor di Mello, 1980), há um abismo entre o filme pernambucano e os longas que tiveram na Boca do Lixo paulistana o seu centro de produção e difusão. Nestes, o corpo feminino era objetificado e exposto a olhares voyeurs. No filme de Eduardo Morotó, os corpos de Lígia, Cássia e Inês são vistos com naturalidade. Sem fetichismo.

Roney Villela, coadjuvante em tantos filmes, tem em “A Morte Habita à Noite” (quem entendeu a função dessa crase? Por que o uso de advérbio temporal?) seu maior desafio. Interpretar um homem que engole doses industriais de álcool, devolvidas em golfadas de sangue, não é, convenhamos, fácil. E o ator dá conta do recado, em trabalho marcado pela sutileza, mesmo que o sotaque (dele e de Mariana Nunes) se faça notar mais do que deveria. O mesmo não acontece com Endi Vasconcelos, Rita Carelli e Everaldo Pontes, nordestinos de quatro costados.

A parceria de Eduardo Morotó com a dupla de produtores Leonardo Mecchi e Mannu Costa resultou em um filme de baixo orçamento, com elenco compacto e marcante, bom roteiro (sem gorduras, nem retórica vazia) e fotografia arrebatadora (de Marcelo Martins Santiago). A iluminação da cidade (principalmente nas cenas noturnas) e dos atores dentro de ambientes modestos, quase sórdidos, cria atmosfera visual das mais envolventes. O pernambucano Morotó, autor de vários curtas-metragens, estreou bem no filme de longa duração.

O filme, que passou por Roterdã, Miami, Viña del Mar e está na seleção de Havana, escolheu o Cine Ceará como sua primeira vitrine brasileira. Está, pois, bem posicionado na lista de candidatos a alguns troféus Mucuripe, a láurea principal do festival nordestino. Que festeja sua trigésima edição.

FILMOGRAFIA de Eduardo Morotó

2006 – “Agreste Dentro” (curta/Revelando os Brasis)
2010 – “Mar Exílio” (curta-metragem)
2011 – “Quando Morremos à Noite” (curta)
2011 – “Eu Nunca Deveria Ter Voltado” (curta)
2013 – “Todos Esses Dias em que Sou Estrangeiro” (curta)
2017 – “Repulsa” (curta)
2020 – “A Morte Habita à Noite” (longa-metragem)
2021 – “Irmãos Karaíba” (longa, em preparação)

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