Documentários registram trajetórias de Cardin e Aznavour
Por Maria do Rosário Caetano
Os dois são representantes legítimos da alma francesa. Um no terreno da moda, o outro na canção. Um nasceu no seio de uma família italiana. O outro numa família armênia com origens fincadas na Geórgia e na Turquia.
O italiano Pietro Costante Cardin, sob o nome afrancesado de Pierre Cardin, tornou-se um dos símbolos da moda parisiense, estilista reconhecido no mundo inteiro. Charles Aznavour, nascido Aznavourian, recorreu à cirurgia no nariz longilíneo para amenizar origens étnicas, passou por privações materiais até tornar-se um dos mais famosos chansonniers do país adotado por sua família. Como Cardin, seria reconhecido em Paris, Nova York, Brasil, Canadá, URSS, na África Ocidental e no Magreb.
Filmes que narram a trajetória dos dois astros franceses chegam aos cinemas brasileiros. “O Império Cardin”, de David Abersole & Todd Hughes, estreia nessa quinta-feira, 14 de janeiro. O longa documental “Aznavour por Charles”, dirigido por Marc di Domenico, estreia dia 4 de fevereiro. Ambos são lançamentos da Imovision, distribuidora comandada por Jean-Thomas Bernardini, um francês que foi jogador de futebol (titular na equipe do Marseille) e escolheu o Brasil como nova pátria.
Cardin e Aznavour estarão, claro, nos cinemas da Reserva Cultural, complexo de quatro salas, plantado na Avenida Paulista, número 900. Um local, que além da localização privilegiada, conta com charmosos restaurante, cafeteria e livraria.
O cinema marcou a vida de Cardin e de Aznavour. De forma episódica no caso do estilista e de forma orgânica no do chansonnier. O filme de Abersole & Hughes deixa a arte cinematográfica em segundo plano, concentrado que está em mostrar “a grandeza industrial-artística do império Cardin” e sua capilaridade pelo mundo. Já “Aznavour por Charles” é um tributo ao cinema. Até porque o cantor-compositor era apaixonado por imagens. Tanto que documentou, em Super-8 e 16 milímetros, suas viagens pelo mundo, do Senegal à Bolívia, da Tunísia aos EUA, do Canadá à China, da União Soviética ao Marrocos. E o fez como um documentarista apaixonado.
Pierre Cardin (1922-2020) desempenhou alguns papeis no cinema, inclusive em “Joana Francesa”, do brasileiro Cacá Diegues, e cuidou dos figurinos de muitos filmes. Vestiu personagens de Jean Marais, Jean-Paul Belmondo, Jeanne Moreau, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve e outras divas francesas. Entre os nomes internacionais, criou modelos para a cantora Dione Warwick, a bailarina soviética Maya Plisetskaia, a atriz Sharon Stone e a bela Naomi Campbell. E –não se pode esquecer – vestiu os quatro Beatles, com ternos sem colarinho. Que, aliás, viraram marca registrada do visual dos meninos de Liverpool, naquele momento em que se transformavam em febre planetária.
Voltando ao “Império Cardin” e ao cinema, somos obrigados a perguntar: por que um filme sobre o estilista que atuou ao lado de Jeanne Moreau, a “Joana Francesa” de Diegues, embalada por música de Chico Buarque, escanteia a arte cinematográfica? Por que não há, no documentário, uso consistente de imagens de “A Bela e a Fera” (Cocteau, 1946)? Por que não há única imagem de “Joana Francesa”? Por que não são mostrados atores vestidos com trajes criados por ele? Só Jeanne Moreau vestiu Cardin em “A Baía dos Anjos” (Demys, 1963), “Mata Hari, Agente H21” (J.L. Richard, 1964), “O Amor Através dos Séculos” (Bolognini, Lara, Brocca, Indovina e Plefgar, 1967) e, claro, em “Joana Francesa (1973).
O cinema, quando aparece como tema de “Império Cardin”, o faz como matéria de rápidas fofocas amorosas. No primeiro momento, Pierre Cardin conta que era um jovem cobiçado por grandes nomes do cinema. Cita o quarteto Jean Cocteau (1889-1963), Luchino Visconti (1906-1976), Jean Marais (1913-1998) e Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Como o diretor de “Teorema” nasceu no mesmo ano de Cardin (1922), nos anos da juventude de ambos, o cineasta não devia integrar as rodas cinematográficas de Paris. Devia, isto sim, estar se preparando para escrever roteiros neo-realistas.
O cinema entra, também, na narrativa fragmentada de “Império Cardin”, para falar do “casamento” do estilista com a musa da Nouvelle Vague, Jeanne Moreau. Ela queria ter um filho e resolvera seduzir Cardin. Ele cedera a seus encantos e abandonara seu grande amor, o também estilista André Oliver. Uma das muitas amigas do costureiro ao dar seu testemunho ao filme, diz que André deveria se conformar por ter sido “trocado por uma mulher e não por um homem”.
O filme não se preocupa em aprofundar o perfil de seu personagem, nem explorar suas contradições (cultuava a inventividade, embora tenha massificado sua grife em centenas de produtos, de cuecas a móveis, de perfumes com embalagem fálica a jarros). Além do mais, abre espaço excessivo para assessores de Cardin (tipo “ilustre, quem?”) e não identifica ninguém. Claro que alguns dos entrevistados (Jean-Paul Gauthier, Dione Warwick, Alice Cooper e Naomi Campbell) são de fácil identificação. Mas Sharon Stone, já entrada nos anos, deixa dúvidas. Será Claudia Schiffer? Só saberemos nos acelerados e rarefeitos créditos finais. E quem são aquelas ex-modelos que tanto elogiam o estilista? Só os especialistas do mundo fashion saberão.
“Império Cardin” mostra que o grande costureiro e empresário, orgulhoso por ter sido sempre o patrão de si mesmo (portanto, nunca vendera sua griffe a terceiros), espalhou suas criações por 63 países, desfilou na Praça Vermelha da Moscou soviética e na Muralha da China (um dos melhores momentos do documentário), comprou o badalado Maxim’s e três mansões (ou castelos) de tirar o fôlego: uma em Veneza, outra em Cannes e a terceira em Houdan, a 40 minutos de Paris. Nesta construção, imensa, criou o Centro Cultural Cardin, equipado com um cinema de 400 lugares e um teatro, no qual atuaram atores e cantores de fama internacional.
Se, como cinema, “Império Cardin” deixa a desejar, o mesmo não se dá com “Aznavour por Charles”. Este filme é uma pequena joia. Sintético, amoroso, irônico na medida certa, bem-humorado, encantador. E tem a sustentá-lo dois pilares: um texto de altíssima qualidade (dito com a voz aliciante do ator Roman “El Gadjo Loco” Duris) e imagens poderosas. Nunca narcisistas, embora tenham sido feitas, em grande parte, pelo próprio Aznavour, ou por seus amigos, quando ele queria estar em quadro.
O cineasta Marc di Domenico tirou a sorte grande. Depois de documentar shows e trechos da vida do cantor, ele foi levado pelo próprio Aznavour a um recanto de sua mansão, onde estavam depositados rolos de filmes em Super-8 e 16 milímetros.
Em 1948, na condição de secretário (e tudo indica, também namorado) de Edith Piaf, Aznavour ganhou uma câmera de presente da “patroa”. Começou, então, a documentar os lugares que visitava. Não só cartões postais (estes pouco aparecem no filme), mas gente do povo, lugares marcados pelo subdesenvolvimento, costumes, rituais e vestimentas diferenciados.
A primeira parte do filme mostra o filho de imigrantes armênios crescendo com dinheiro curto, o sonho de ser cantor, o breve primeiro casamento (com a francesa Micheline Rugel), o primeiro filho e a separação. O cantor, afinal, fora cantar no Quebec, inicialmente para curta temporada em casa noturna. Acabou ficando em solo canadense por quase sete anos.
Depois, chega a fase em que foi secretário de Piaff e apaixonou-se por uma bela e libertária jovem francesa, Evelyne Plessis. Ele queria casar com ela. Evelyne queria curtir a vida. Mesmo assim, ficaram juntos por quase quatro anos.
O amor da vida inteira de Aznavour chegaria da Suécia, na figura de uma loura estonteante (tipo “Mônica e o Desejo” bergmaniano) chamada Ulla Thorsell. Ficaram casados de 1967 até a morte dele, aos 94 anos (em 2018). Teriam filhos, correriam mundos e preservariam os filmes registrados pelo cineasta amador.
Como Marc di Domenico é, além de cineasta, escritor, ele soube retirar das memórias de Aznavour (em 1993, o cantor publicou “Enquanto meu Coração Bater”) os trechos mais significativos e com eles construir retrato íntimo do artista armênio-francês. E que retrato. Sensível, irreverente, delicado, informativo, com um quê de neo-realista e outro de contido deslumbramento.
Quando Aznavour estoura no showbiz, ele recebe um telefonema. François Truffaut o quer como protagonista de “Atirem no Pianista” (1960). No ano seguinte, atuará em “Um Taxi para Tobruk”, ao lado de Lino Ventura. Encantado, o dublê de ator volta sua câmera ao grande ator francês, nascido na Itália. Está, com destaque, em “Aznavour por Charles”, o trecho do making of feito pelo armênio, premiado pela sorte ao ser dirigido por Truffaut e, um ano depois, atuar ao lado do astro Ventura. Que ele referencia como ator louco por macarronada, e não por acaso, parmesão como o famoso queijo.
Se “Império Cardin” é avarento ao mostrar trechos de filmes em que o estilista figurou nos créditos, Marc di Domenico é pura generosidade. Só em nome da síntese, o filme não se dispersa pela imensa filmografia de Aznavour (60 filmes), nem em por seu imenso cancioneiro (850 composições, criadas em francês e vertidas para vários idiomas).
Três de seus mais famosos hits ganham a ênfase merecida: “La Bohéme”, “Hier Encore” e “Elle” (“She”, já que transformou-se em seu cartão de visita nos EUA e Grã-Bretanha – a canção está, inclusive, na trilha sonora de “Um Lugar Chamado Nothing Hill”, com Julia Roberts e Hugh Grant).
Ao material filmado por Aznavour e aos trechos dos filmes em que atuou, o documentarista Domenico soma imagens encontradas nos ricos acervos do INA (Instituto Nacional de Audiovisual da França) e na Orthof (Rádio e Televisão Francesa). Em especial, o registro das visitas de Aznavour à Armênia de seus pais (em 1962, quando o país integrava a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e, anos depois, a Moscou (1984). É de cortar o coração um dos trechos de “Aznavour e os Seus” (1969). Nele, vemos um dos filhos do compositor, Patrick (nascido de affair do cantor com uma bailarina) falando com aguda inteligência e poder de articulação, sobre o pai, sua origem armênia, o que gostava de estudar etc. Para depois sabermos que o jovem morreria aos 25 anos, mergulhado no consumo de drogas.
O filme se constrói como cinema e não como peça de louvação institucional de um astro rico e famoso, interessado em higienizar sua biografia para a posteridade. Num dos momentos mais deliciosos do documentário, Roman Duris, a voz póstuma de Aznavour, compara as filmagens de outrora (de periferias pobres de países africanos, gente do povo na Bolívia, chineses-trabalhadores incansáveis em Hong Kong e Macau) com registros da fase em que o astro se aburguesara. Neste momento, o outrora narigudo e portador de vistosas costeletas, se misturava, em belos iates, com astros do jet-set e enchia de mimos sua bela esposa sueca. Com fina ironia, ele dá a entender que deixara de filmar os povos do mundo, para concentrar-se nos verões dos abastados, em sua própria e fina entourage.
Detalhe que merece registro: “Aznavour por Charles”, belo título brasileiro para um igualmente belo título em francês (“Le Régard de Charles”), fica ainda melhor quando visto pela segunda vez. O cidadão Charles teve a sorte de poder contar a história do astro Aznavour pelo próprio olhar, valorizado pela atenta (e milagrosamente sintética) mirada Marc di Domenico.
IMPÉRIO CARDIN | House of Cardin
França, 110 minutos, 2018
Diretor: David Abersole e Todd Hughes
Com entrevista do próprio Cardin, aos 96 anos (ele morreu em dezembro passado, aos 98), e depoimentos de Sharon Stone, Jean-Paul Gauthier, Dione Warwick, Alice Cooper, Naomi Campbell. E locações em Paris, Lacoste, Cannes, Théoule-Sur-Mer, Houdan, Veneza, Pequim, Tóquio, Atlanta, Los Angeles, Las Vegas, Palm Springs e NY.
Estreia nessa quinta-feira, 14
AZNAVOUR POR CHARLES | Le Régard de Charles
França, 83 minutos, 2019
Diretor: Marc di Domenico
A vida do chansonnier Charles Aznavour contada com imagens documentadas por ele, ao longo de várias décadas e por dezenas de países
Estreia dia 4 de fevereiro