“Tigre Branco” tenta repetir sucesso de “Parasita” no Oscar
Por Maria do Rosário Caetano
Ano passado, um filme 100% sul-coreano – “Parasita” – foi o grande vencedor do Oscar. Triunfou na categoria melhor filme, melhor produção internacional e melhor direção. Ou seja, derrotou a poderosa produção made in USA.
Esse ano, a Netflix espera conseguir boas indicações junto à Academia de Hollywood, para “Tigre Branco”, um filme “indiano”, que tem muito a ver com o longa de Bong Joon-Ho. Ambos tematizam a luta de classe, o cheiro nauseante de serviçais e têm o poder de revelar engrenagens estruturais do Capitalismo.
“Parasita” é muito mais elaborado e inventivo que “Tigre Branco”. Mesmo assim, o filme vindo do gigante asiático está dando o que falar. Lançado no último dia 22 de janeiro, diretamente no streaming (Netflix), vem rendendo debates e matérias nos mais diversos espaços midiáticos.
Não se pode qualificar “Tigre Branco” como um filme 100% indiano. Para muitos, o certo é tê-lo como um produto que está mais para Hollywood (norte-americano, portanto), que aparentado a Bollywood (Índia). Seu diretor, Ramin Bahrani, de 45 anos, nasceu nos EUA, no seio de família originária do Irã. Portanto, sem nenhuma ligação com a Índia. Toda sua produção tem a ver com seu país natal. Entre seus parceiros em “Tigre Branco”, está a prestigiada diretora afro-americana Ava DuVernay.
O bom senso nos leva a concluir que acaba na nacionalidade de Ramin Bahrani e no dinheiro (majoritariamente da Netflix) a alma estadunidense do filme. O essencial, convenhamos, é indiano: a história, baseada em best-seller homônimo assinado por Aravind Adiga, a totalidade do elenco, as múltiplas locações (construções colossais e muquifos apavorantes) e os coloridíssimos figurinos e objetos de cena.
“Tigre Branco” é falado no inglês ‘selvagem’ que o país de Ghandi herdou dos tempos em que foi colônia da Inglaterra. A sociedade de castas, marca tão profunda da imensa nação asiática, é a razão de existir tanto do romance quanto do filme dele derivado.
Espécie de “fábula cruel do Capitalismo à moda indiana”, sistema no qual “um pobre só ascende se imiscuir-se na política ou no crime” (quem sabe nos dois), “Tigre Branco” chega para perturbar corações e mentes. Inclusive com sua narrativa, de tom didático-pedagógico. Uma cartilha desesperançada, mas muito adequada a estes tempos, nos quais o indivíduo tem que se virar sozinho. Com o triunfo do neo-liberalismo (e agora do populismo autoritário) vai longe o tempo de crenças revolucionárias capazes de levar operários e camponeses ao poder. Estes, claro, organizados coletivamente (em sindicatos, ligas e partidos) para implantar o Socialismo-Comunismo.
O protagonista (e narrador) de “Tigre Branco” é o jovem Balram (Adarsh Gourad). Ele revê, em flahsback, sua vida, da infância paupérrima até tornar-se dono de frota de carros. Ao nascer, num povoado miserável, no seio de família numerosa, Balran conta com, pelo menos, um trunfo. Na escola, encanta o professor, pois, ao contrário dos colegas, lê, escreve e sabe responder a dezenas de perguntas. Para o mestre, ele é “um tigre branco” (aquele animal raro, que destaca-se de seu grupo pela cor diferenciada).
O menino, porém, será obrigado a largar os estudos para socorrer a família, quando o pai morre vítima de tuberculose e incúria hospitalar. Atento, esperto e inconformado, Balram prestará imensa atenção nos Senhores que exploram sua parentada, exigindo um terço de tudo que conseguem, miseravelmente, juntar.
Já rapaz, ele arma habilidoso plano: ir para Nova Deli, capital da Índia, trabalhar como motorista de Ashok (Rajkumnmer Rao), o belo filho do Senhor, jovem de hábitos ocidentalizados, com temporada de estudos nos EUA. Para conseguir seu objetivo, o “tigre branco” fará o que for necessário. Por mais baixo que seja o golpe. Consciência de classe zero (afinal, tem a sanha do self made man, na base do cada um por si e as divindades indianas por todos).
O filme, que dura eletrizantes 125 minutos, sofrerá, lá por sua metade, uma grande reviravolta. Balram perceberá que ele é querido pela família dos Senhores, apenas quando convém. O jovem patrão Ashok e a linda Pinky Madam (ex-Miss Índia e estrela de Bollywood, um verdadeiro torpedo hormonal) são gentis com o empregado. Ela, criada nos EUA e ocidentalizada até a medula, abomina o sistema de castas e até toca no ombro do motorista-servo.
Maior que a primeira reviravolta – e com consequências mais estruturantes – será aquela que acontecerá nos momentos derradeiros de “Tigre Branco”. O espectador mais exigente – induzido a pensar que Balram conheceria a riqueza no mundo dos computadores-e-da internet (no qual a Índia é poderosa) – será induzido a acreditar que a narrativa perdeu o rumo, tornando-se inverossímil. Mas isso não acontecerá. Apesar de acelerado, o final dessa fábula sobre um pária social que consegue transformar-se em empresário mostrará consistência.
Na sulista Bangalore, no “Vale do Silício indiano”, Balrom se estabelecerá dentro das regras selvagens do Capitalismo, mas dando às relações de trabalho terceirizado uma fachada “humana”. Bem vestido e ostentando vistoso bigode, ele concluirá longuíssimo texto escrito como testemunho exemplar a ser apresentado ao primeiro-ministro da China, o gigantesco vizinho, cada dia mais embrenhado num Socialismo que muitos preferem definir como “Capitalismo de Estado”.
O roteiro, que parecia ter desandado, ganha clareza cristalina. A Índia, afinal, é um imenso país de mais de um bilhão de habitantes. Carrega, milenarmente, problemas sociais gravíssimos. Carrega, também, riqueza e desenvolvimento científico-tecnológico notáveis, embora concentrados nas mãos de poucos. Por isso, uma criança atropelada na rua ou assassinato cometido em noite escura (e sem testemunhas) pode tornar-se crime insolúvel. Quando a escala está na casa do bilhão de seres de cor “marrom” e imensas semelhanças físicas, tudo parece possível.
Com cortante ironia, Balrom assegurará em sua carta ao premier chinês (e ao público) que o futuro será “asiático”, portanto, capitaneado por povos “amarelos e marrons”. Ou seja, chineses e indianos. Que anglo-saxões, força hegemônica planetária há bom tempo, coloquem as barbas de molho.
O filme de Ramin Bahrani (e do escritor Aravind Adiga) constrói metáforas que parecem por demais óbvias. Mesmo assim, poderosas. O tigre branco (majestoso e raro), que Balram mostra para o irmão pequeno em passeio ao Zoológico, constitui metáfora perfeita da fúria necessária ao pária nascido na miserável aldeia de Laxmangarh.
O uso do “galinheiro” como símbolo da existência dos servos também impressiona. Afinal, o que faz a ave doméstica, trancada em grande número, em improvisados galinheiros? Espera, cocoricando, seu momento de ser abatida. Balron não quer ser um mero servo (uma galinha). Quer ser um “tigre branco”, qualificação que lhe dera o professor.
Curioso notar, na adrenalinada narrativa indiana, que o filho mais velho do Senhor, homem ambicioso e malvado (seu personagem não tem nenhuma nuance) é conhecido como The Mongoose (ou Mangusto, mamífero carnívoro da família Herpestidae). Cabe a ele levar suborno a partidos políticos indianos, para que estes não aprovem aumentos de impostos.
O chefe da rica família (e patrono da miserável aldeia de Laxmangarh) é chamado de The Stork (A Cegonha), por seu porte esguio envolto em tecidos leves e de cores claras.
E, num recurso que lembra algumas apelações de “Quem Quer Ser um Milionário” (Danny Boyle, Oscar 2008), há baratas, muitas baratas, no cubículo que serve de moradia a Balrom Halwai, antes dele tornar-se um empresário. São, porém, muito diferentes os caminhos romântico-edificantes do personagem de Dev Patel (no filme de 12 anos atrás), se comparados com os pesadelos dessa obra ultrarrealista de Ramin Bahrani.
Além de “Tigre Branco”, a Netflix busca vagas no Oscar (adiado para 25 de abril, por causa da pandemia) com dois filmes igualmente badalados: “Mank”, de David Fincher (sobre o corroteirista de “Cidadão Kane”) e “A Voz Suprema do Blues”, de George C. Wolfe (sobre a cantora afro-americana Ma Rainey, interpretada por Viola Davis, e seu músico Levee, último trabalho de Chadwick “Pantera Negra” Boseman). Dois títulos, registre-se, 100% estadunidenses. Há quem cite, também, “Piece of a Woman”, de Kormél Mundruizó, com Vanessa Kirby. Este, porém, não parece tão “palatável” quanto “Mank” e “Tigre Branco”, já que mostra sequência de quase 20 minutos sobre um parto mal-sucedido. A Academia terá mudado a tal ponto? A sorte está lançada.
Tigre Branco | The White Tiger
EUA-Índia, 125 minutos, 2021
Baseado em romance homônimo, do indo-australiano Aravind Adiga (Prêmio Man Booker)
Direção: Ramin Barahni (roteirista e montador-chefe)
Produção executiva: Ava DuVernay
Fotografia: Paolo Carnera
Produção: Smuggler Films e Netflix
Elenco: Adarsh Gourav, Priyanka Chopra, Rajkummar Rao, Mahesh Majrekar, Swaroop Sampat , Vijay Maurya, Nalneesh Neel, Kamlesh Gill
Disponível no streaming (Netflix)
FILMOGRAFIA
Ramin Bahrani (Winston-Salem/EUA, 20-março-1975)
2007 – Desmanche – Perigo nas Ruas
2008 – Good Bye Solo
2012 – A Qualquer Preço
2015 – 99 Casas (Netflix)
2018 – Fahrenheit 451
2021 – Tigre Branco (Netflix)
* 2019 – “Sócrates”, de Alex Moratto (Brasil/EUA) – coprodutor
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