MAM festeja os 90 anos de “Limite”

Por Maria do Rosário Caetano

Num dia 17 de maio, exatos noventa anos atrás, o Chaplin Club promovia no Cine Capitólio, no Rio de Janeiro, a primeira sessão pública de “Limite”, o filme-mito de Mário Peixoto.

Para festejar a data desse que é considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro, foi montado calendário de atividades composto com o lançamento do livro “Mário Peixoto Antes e Depois de Limite”, de Denilson Lopes, “lives” e exibições on-line de filmes e série. Além do próprio “Limite”, poderão ser vistos os documentários “Onde a Terra Acaba”, de Sérgio Machado, e os curtas “O Homem e o Morcego”, de Ruy Solberg, e “Mar de Fogo”, de Joel Pizzini.

Os debates digitais começam nessa segunda-feira, 17 de maio. Às 19h, o cineasta Walter Salles conversa com Filipi Fernandes sobre a luta que mobilizou pesquisadores brasileiros, em especial o incansável Saulo Pereira de Mello (1933-2020), para salvar “Limite”. Realizado em nitrato, o filme nunca foi lançado comercialmente. Mas sua matriz foi deteriorando-se a cada novo ano.

Na segunda metade da década de 1970, graças ao empenho de Saulo, a Funarte conseguiu patrocinar uma primeira restauração de “Limite”. Só assim cineastas, cinéfilos e estudiosos, que só tinham ouvido falar no mítico “Limite”, puderam assisti-lo. Inclusive Glauber Rocha, que dedicara a ele um breve trecho de sua bíblia cinemanovista – o livro “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (Civilização Brasileira, 1964).

Na década de 1990, Walter Salles passou a cuidar do rico acervo de Mário Peixoto (1908-1992), fornecendo condições para que Saulo Pereira de Mello pudesse organizá-lo da melhor forma possível. Para enriquecer, ainda mais, a difusão do legado do criador de “Limite”, a Videofilmes, da família Moreira Salles, produziu o longa documental “Onde a Terra Acaba”, dirigido pelo baiano Sérgio Machado (2002).

Já no século 21, o diretor de “Terra Estrangeira” e “Diário de Motocicleta” serviu-se de sua condição de integrante dos quadros do Film Foundation, organismo que tem Martin Scorsese como seu operoso presidente, para – com a ajuda Cinemateca de Bolonha e seu bem-sucedido projeto Il Cinema Ritrovato – empreender o restauro definitivo de “Limite”. Um inventivo, enigmático e melancólico filme que fechou, com chave de ouro, a era muda do cinema brasileiro.

A restauração que uniu Itália-EUA-Brasil seguiu o rigor da Cinemateca de Bolonha, instituição que anualmente promove importante festival de filmes restaurados. E “Limite” ganhou dolorosa cartela explicativa: um trecho do filme desapareceu (irremediavelmente). Por sorte, as duas horas que restaram permitem fruição sensorial de narrativa rarefeita e muito com a beleza de suas imagens. Imagens – registre-se – magnificamente enquadradas pelo gênio de Edgard Brazil (1902-1954). O filme mostra duas mulheres e um homem num barco à deriva. Eles evocam suas lembranças em longos flashbacks.

Depois da “live” realizada em “Memória de Saulo Pereira de Mello”, virá um novo debate virtual – “Saulo e Limite”, com Alex Vasquez, Luciana Corrêa de Araújo e Rafael Saar.

O professor da UFRJ, Denilson Lopes ministrará, nessa quarta-feira, 19 de maio, masterclass intitulada “90 Anos Esta Noite – Uma Leitura da Exibição de ‘Limite’ em 17 de Maio de 1931”. E lançará seu livro virtual “Mário Peixoto Antes e Depois de Limite”, publicado pela e-galáxia.

Até hoje, os estudos sobre “Limite” e seu autor fixaram-se, especialmente, nos aspectos vanguardistas do filme, um “ovni” na trajetória do cinema brasileiro. E, também, nas dificuldades que Mário Peixoto teve em sequenciar sua carreira (de “Onde a Terra Acaba”, ficção produzida e protagonizada por Carmen Santos, ele só conseguiu realizar uma terça parte, e “A Alma Segundo Salustre” ficou no papel). Sem esquecer os aspectos mitômanos do cineasta. Mário dizia ter nascido na Bélgica, mas tudo indica que nasceu no estado do Rio. E fato mais comentado: escreveu um texto sobre o próprio filme e atribuiu-o a Sergei Eisenstein, diretor de “Encouraçado Potenkin”, um dos filmes-símbolo da vanguarda construtivista soviética. Estuda-se, muito e com juta razão, a luta de abnegados (como Plínio Susskeind Rocha e Saulo Pereira de Mello) pela preservação de “Limite”.

Denilson Lopes abre nova vereda e dedica-se a detalhada pesquisa sobre a homossexualidade de Mário Peixoto, muito conhecida, mas abordada, até agora, de forma velada.

Depois de lembrar o “encanto”, que o único filme do cineasta fluminense lhe causou, o professor da UFRJ registra o recorte de sua pesquisa: “a vida de Mário Peixoto vista a partir de sua homossexualidade, muitas vezes dita, mas pouco estudada”. E prossegue: “tomei, como ponto de partida, material em grande parte inédito, como cartas, os Cadernos Verdes (diário da infância até 1935), o Diário da Inglaterra (1927) e depoimentos de mais de setenta pessoas, entre amigos, parentes e contemporâneos de Mário Peixoto. Todo esse material inédito está depositado no Arquivo Mário Peixoto, sendo que os diários só foram disponibilizados em formato digital, em tempos recentes”.

“Minha proposta” – detalha Denilson – “pretende contribuir para minimizar lacuna existente em nossa bibliografia de leitura ‘gay’ da vida de artistas brasileiros, e dos modernistas, em particular”. Assim sendo, “torna-se possível atualizar o passado a partir de um olhar ‘queer’ não apenas por meio de uma história de representações de LGBTQIA+ e de dissidências sexuais, mas de sensações”.

Para escrever o livro, Denilson Lopes se colocou uma série de indagações: “a experiência homoafetiva faz o meu corpo estar mais próximo de Mário Peixoto do que de tantos outros artistas modernistas que vieram antes ou depois? Pequenos fatos rotineiros, ao invés de grandes debates intelectuais e políticos, podem (devem) nos motivar? O que tais fatos podem evocar, fazer viver? Para quem?”

Nutrido por tais indagações – conta o professor e ensaísta – ele começou “a viajar pelo passado, tomado como um continente desconhecido, uma cultura outra”. “Não estou atrás de raízes” – assume – “mas de passados inventados e conquistados pelos encontros inesperados como num dobrar de esquina, numa mesa compartilhada com estranhos, numa fila qualquer”.

No livro, os leitores encontrarão “os primeiros resultados de minha pesquisa, na qual a homossexualidade não é o centro, mas parte importante da vida de Mário Peixoto”. E mais: o ensaio “contribui para a compreensão da vida cultural do Rio de Janeiro, em especial, nos anos 1920 e 1930, tanto pelos encontros intelectuais como afetivos, redefinidores da herança do Modernismo, cujo centenário comemoraremos em 2022”.

Para Denilson Lopes, “voltar ao Modernismo não significa voltar a valores canônicos e/ou a perspectivas vitoriosas ou emergentes como a Antropofagia ou a busca de uma cultura nacional centrada no popular e mais recentemente nas tradições e marcas afro-ameríndias”. Ele conclui: “não chegaremos tão longe, mas deixaremos algumas sugestões desse Modernismo cosmopolita e local, decadente e aristocrático, da melancolia ao invés da alegria, da catástrofe ao invés da utopia”.

PROGRAMAÇÃO

Segunda-feira, 17 de maio

. “Onde a Terra Acaba”, de Sérgio Machado (Brasil, 2002)
Documentário sobre “Limite” e os projetos interrompidos de Mário Peixoto. Produção da Videofilmes. Narração de Matheus Nachtergaele. Duração: 72 minutos. Disponível no Curta Play. Exibição, nessa semana, no Festival Estação Virtual (em 80 Filmes).

. Ao longo do dia: Exibição no espaço on-line da Cinemateca do MAM-Rio do filme “Limite”, de Mário Peixoto (Brasil, 1931). Com Olga Breno, Taciana Rey, Raul Schnoor, Brutus Pedreira e Mário Peixoto. Trilha sonora compilada por Brutus Pereira. Duração: 120 minutos.

. Exibição digital (por 24 horas) de série inédita, em finalização, episódio em work-in-progress: “Saulo Pereira de Mello”, de Rafael Saar (Brasil, 2021). Com depoimentos de Saulo Pereira de Mello, Ayla Pereira de Mello, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Peixoto, Ruy Solberg e Walter Salles. Duração: 30 minutos.

. 19h: “Em Memória de Saulo Pereira de Mello”. Conversa on-line com Filipi Fernandes e Walter Salles. Mediação Hernani Heffner.

Terça-feira, 18 de maio

. 16h – “Saulo Pereira de Mello e ‘Limite’”. Debate com Alex Vasquez, Luciana Corrêa de Araújo e Rafael Saar. Mediação: José Quental.

Quarta-feira, 19 de maio

. 19h – Masterclass de Denilson Lopes: “90 Anos Esta Noite. Uma Leitura da Exibição de ‘Limite em 17 de Maio de 1931”. Mediação de Hernani Heffner. No Youtube e Facebook da Cinemateca do MAM. Lançamento virtual do livro “Mário Peixoto Antes e Depois de Limite” (e-galaxia editora).

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