Gramado estreia com a força da cultura negra e grande desempenho de Glória Pires
Por Maria do Rosário Caetano
Gramado, cidade cuja população se orgulha de sua origem ítalo-germânica, fez da primeira noite de seu festival de cinema poderosa vitrine da cultura negra. Os dois curtas que abriram a competição — “Quanto Pesa” e “O que Há em Ti” — mergulharam em universos de pele preta. Mesmo caso de “Cavalo de Santo”, longa gaúcho que fechou a noite, transportando os espectadores (a maratona terminou de madrugada) aos espaços de práticas religiosas como a dos Batuqueiros, Umbadistas e Quimbandistas.
Até o carioca “A Suspeita”, um thriller policial protagonizado por Glória Pires, fez questão de colocar personagens negros em papéis de positivos. Caso do brasileiro, de origem congolesa, Bukassa Kabenguele, que interpreta um jornalista e escritor (de nome Miguel Yan), Kizi Vaz, a Inspetora Maranhão, e Alexandre Moreno, o Paulão.
No campo da linguagem, os curtas ousaram e os longas optaram por narrativas mais convencionais.
O maranhense “Quanto Pesa”, dirigido pelo ator Breno Nina (detentor de um Kikito em Gramado ao protagonizar, com Othon Bastos, o longa “O Último Cine Drive-In”) vem fazendo boa carreira nos festivais brasileiros e é um dos 13 selecionados para a competição do Curta Kinoforum, meca do formato.
Ao estabelecer franco diálogo com o cinema documental, o ator-diretor constrói narrativa híbrida, sedimentada na performance da jovem Tieta Macau e na paisagem física de São Luís do Maranhão. A cidade é vista em elaborados planos de seu mercado municipal, feira e casarios cobertos por azulejos em decomposição.
O realizador faz questão de apostar na imagem, deixando a palavra em último plano. A não ser quando ela se apresenta como, por exemplo, um cartaz-manifesto – “Se você está cansado de trabalhar, pense em quem está cansado de procurar emprego” – ou num provocativo provérbio impresso em parede qualquer.
O cuidado com a imagem de “Quanto Pesa” implica na busca da poesia dos corpos (de grande beleza o casal nu, que vaga em barco de nome evocativo – Recompensa Divina) e na composição de “paisagens mortas”. Se o filme causa desconforto em alguns de seus registros animais (baratas, ratos, peixes e, principalmente, uma galinha depenada e ainda viva), nem por isso deixa de crescer quando visto em sua plena adesão ao poder na imagem.
“O que Há em Ti”, do paulistano Carlos Adriano, constitui-se como poderosa e politizada incursão de seu inquieto autor pelo Brasil (e pelo Haiti) contemporâneo. Como é de seu feitio, o obstinado (e sofisticado) caçador de imagens busca em arquivos a matéria-prima de sua invenções.
Dessa vez, o ponto de partida de Carlos Adriano é a performance de haitiano anônimo, que, em solo brasiliense, se imiscuiu no “chiqueirinho” dos devotos visitantes de Messias Bolsonaro, num dia de março de 2020. Só que ao invés de gritar “mito!, mito!”, ele bradou, em português, com suave acento francês: “Bolsonoro, você não é presidente mais!”.
De posse dessa imagem-voz, o cineasta realizou mais um filmensaio, de fortes visualidade e sonoridade, garimpando registros de massacres de corpos negros no Haiti e evocando o líder da primeira revolução (1791) de escravizados da América, Toussaint L’Ouverture.
Para compor seu poema visual e sonoro, Adriano recorreu, também, a poderosos versos do maranhense Souzândrade, do cubano Nicolas Guillen (“o Haiti é uma esponja encharcada de sangue”) e de Caetano Veloso (“O Haiti é aqui”, composição lítero-musical em parceria com Gilberto Gil).
Cinéfilo de carteirinha, Adriano recorre, ainda, a imagens do teatro novaiorquino – atores negros em histórico “MacBeth” encenado por Orson Welles – e a projeto engendrado (mas não realizado) por Sergei Eisenstein e Paul Robeson (“O Cônsul Negro”). Chega a evocar, até, uma de suas recentes paixões e motivo de estudos – a poesia de Ho Chi Min. Afinal, seu filme registra que o libertador do Vietnã foi “o Toussaint da Indochina”.
O curta de Carlos Adriano é erudito, sem ser pedante, ensaístico e comunicativo. Um feliz amálgama de invenção e dorça narrativa. Ou seja, tem muito o que dizer.
O artista, que já construira obrigatória ode ao cantor-adolescente Vassourinha (talento afro-brasileiro, que morreu muito cedo, deixando legado incontornável), volta ao universo negro. E o faz em um filme politizadíssimo, uma peça de intervenção no trágico momento vivido pelo país (o Brasil) que mais tropas enviou ao Haiti. Tropas que, de 2004 a 2017, a serviço da ONU, usou armas para tentar salvar um povo que necessitava, para valer, de trabalho, moradia, saúde e educação.
O letreiro final de “O que Há em Ti” lista os nomes dos militares brasileiros participantes da Minustah (Missão das Nações Unidas), hoje aboletados em cargos-chave no Governo Bolsonaro.
Os negros são a razão de ser e os protagonistas absolutos do longa “Cavalo de Santo”. Afinal, esse documentário dos estreantes Mirian Fichtner e Carlos Caramey mergulha no universo das religiões afro-brasileiras. Em especial nos Batuques, na Umbanda e na Quimbanda praticados no Rio Grande do Sul.
Os dados do Censo arremessam os espectadores e um mundo de descobertas. A principal delas: Porto Alegre, metrópole de nosso “Sul europeu” – de tantos imigrantes italianos, alemães, poloneses e ucranianos — é a “capital brasileira das religiões afro-brasileiras”. E mais: o Rio Grande do Sul é o estado da Federação que mais mobiliza praticantes de cultos de matriz africana.
E Salvador e a Bahia?
Para decifrar esse enigma, Mirian e Carlos recorrem à autoridade de nomes como Zulu Araújo, ex-presidente da Fundação Palmares, Marcelo Néri, ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados), ao antropólogo e fotógrafo Milton Gurán e a um qualificado time de estudiosos de universidades gaúchas.
Todos repetirão o espantoso dado de que – proporcionalmente – há mais templos religiosos de matriz africana no Rio Grande do Sul, do que na Bahia. A população gaúcha soma 11,5 milhões de habitantes. Os baianos são mais de 15 milhões. Só que – descobriremos ao longo do filme (e das fortes e respeitosas imagens colhidas por Mirian Fichtner) – na Bahia os afro-brasileiros são visíveis, muito visíveis. No Rio Grande do Sul, seguem “invisíveis”, “ocultos”, “ignorados”.
A escravidão foi essencial à construção da economia do estado sulista. Principalmente nas charqueadas. Mas a imigração europeia chegou para embranquecer a população. Os negros foram escondidos pela história e pela iconografia institucional. Só agora, começam a aparecer. Eles estão em longas e curtas de Jorge Furtado, no documentário “O Caso do Homem Errado” (Camila Moraes, 2018) e, de forma reveladora, em “Cavalo de Santo”.
O filme conta com excelente fotografia de Mirian Fichtner (que assina, além da direção, pesquisa à qual se dedicou por dez anos). E registra rios e mares do Rio Grande, onde praticantes da Umbanda fazem festa para Iemanjá. Vai aos terreiros e matas de Porto Alegre, Gravataí, entre outros municípios. Abre espaço a uma pluralidade – uma sinfonia – de vozes. E, o que é notável, não folcloriza, nem estigmatiza os praticantes da Umbanda, da Quimbanda e do Batuque (que, lembra um depoente, alguns vêem como uma “umbanda metida a chic”). Note-se que o termo Macumba, que parecia trazer carga pejorativa, é recuperado positivamente pelo filme.
O que não faz de “Cavalo de Santo” um grande filme é sua proposta estética, por demais convencional. Os depoimentos trazem tom professoral-declaratório. Portanto, distantes das fascinantes “conversas coutinianas”. Basta relembrar o depoimento da cozinheira negra de “Santo Forte”, Dona Thereza, aquela que pergunta a Eduardo Coutinho se acredita que ela já foi uma rainha do Egito? “Pois fui”, garante, trilhando por narrativa reveladora, subjetiva e mágica.
“A Suspeita”, longa de estreia de Pedro Peregrino, oriundo de trabalhos na Rede Globo, não pode ser reduzido à condição de filme comercial e televisivo. O resultado o coloca entre o cinema de arte e o filme em busca diálogo com o grande público.
O elenco – Gloria Pires imprime nuances e refinamento à policial Lúcia – jamais se constitui como um desfile de astros de novela. Genézio de Barros, Gustavo Machado (premiado em Gramado por “Olho de Boi”, de Hermano Penna), Charles Fricks, Bukassa Kabenguele, Alexandre Moreno, Kizi Vaz, Paulo Vespúcio, todos estão dedicados a seus papeis e trabalham com ambiguidades, fugindo da caricatura. A fotografia (e câmara) de Fabrício Tadeu elabora bem os planos noturnos.
No debate do filme, Pedro Peregrino mostrou-se contido em suas colocações, mas feliz com sua equipe artística e técnica. E muito agradecido pela colaboração do especialista em Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, autor do instigante argumento (uma policial exemplar que, vítima de Alzheimer, torna-se suspeita de ter cometido um crime), desenvolvido por Thiago Dottori, com a colaboração de Newton Cannito e Fernanda De Capua.
A trama é original se comparada a nossos filmes policiais. E o realizador consegue bom resultado ao registrar a angústia trazida à sua protagonista pelos primeiros sinais do Alzheimer. É nesse momento que a policial Lúcia Carvalho verá sua carreira, dedicação e sonhos serem postos em questão. “A Suspeita”, porém, promete mais do que cumpre.
Daniela Busoli, que produziu o filme junto com a atriz Glória Pires, lembrou – no debate comandado por Roger Lerina – título que tem alguma proximidade com “A Suspeita” – o longa estadunidense “Para Sempre Alice” (de Glatzer e Westmoreland, 2015, com Julianne Moore). O público poderá lembrar, ainda, de “Meu Pai” (2021), produção britânica protagonizada por Anthony Hopkins que concorreu ao Oscar.
Os três filmes têm em comum um único dado: o Mal de Alzheimer, doença do esquecimento, que traz imensos transtornos e dor a seus portadores. Afinal, tanto o personagem de Glória, quanto o de Hopkins e o de Julianne estão naquele momento em que ainda se lembram de um tanto de coisas, mas vão esquecendo-se de muitas outras.