Cine Ceará aplaude de pé Camerata e Morricone, Camila Pitanga e “A Filha do Palhaço”

Foto: Camila Pitanga com o secretário Fabiano Piuba

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza

A noite inaugural do Cine Ceará, o Festival Ibero-Americano de Cinema de Fortaleza, foi das mais animadas. Primeiro, porque a Camerata da UFC (Universidade Federal do Ceará) escolheu três números musicais arrasadores para conquistar o público. Dois do maestro italiano Ennio Morricone (o western spaghetti “Três Homens em Conflito” e o melodrama “Cinema Paradiso”) e o “chiclete romântico” de Fernando Mendes “Você Não me Ensinou a te Esquecer”, da trilha sonora do blockbuster “Lisbela e o Prisioneiro”. Quando os violinos comandados pela maestrina Liu Man Ying pararam de soar, o público estava de pé, em estado de êxtase, explodindo em aplausos. Só faltou a voz de Caetano Veloso, que fez renascer o hit que embasou o filme de Guel Arraes no começo dos anos 2000.

O público, que lotou o Cine-Theatro São Luiz, apesar do momento político tenso e noite sem autoridades do primeiro escalão governamental, ainda se levantaria duas vezes. Na segunda, para aplaudir Camila Pitanga, que recebeu, aos 45 anos (30 de carreira), o Troféu Eusélio de Oliveira, por sua contribuição ao audiovisual brasileiro.

A atriz subiu ao palco com um vestido curto, plissado, vermelho e de sandálias arrematadas em contas miúdas. Mal começou a falar e a plateia já pedia que fizesse o “L”.

— Precisa?, brincou, não basta o vestido vermelho? E fez o “L” diversas vezes. Em seguida, contou sua história profissional, iniciada ainda adolescente, na série “Sex Appeal”, da Globo, e sequenciada com muitos filmes, peças de teatro e telenovelas. Relembrou o primeiro filme, “Quilombo”, de Cacá Diegues.

— “Eu era uma criança, duas perninhas que corriam numa filmagem que contava com,  entre outros, Zezé Motta, Toni Tornado, Antônio Pompeu, Antonio Pitanga, meu pai. Então foi uma alegria conviver com atores tão importantes. Depois, fui, ainda muito jovem, convidada por Rogério Sganzerla, que eu nem sabia quem era, para dizer três frases num filme, descendo uma escadaria no Morro do Chapéu Mangueira, onde morava com meu pai e sua companheira, Benedita da Silva. Era para eu dizer as três frases de várias formas. Eu disse. O filme (“O Signo do Caos”, 2005) teve um produção demorada. Quando ficou pronto, Rogério já estava com a cabeça raspada (ele morreria aos 57 anos, em 2004, vítima de câncer). A exibição do filme no Festival do Rio foi emocionante. Naquela altura (quase oito anos depois), eu já sabia quem era o maravilhoso Sganzerla, a importância dele e de seu cinema. Tivera o prazer de ser dirigida por ele.

Depois de justificar porque vota em Lula, Camila contou que permanecerá em Fortaleza, ao lado do “novo amor” (o professor de Filosofia Patrick Pessoa), durante todo o festival e que está muito feliz com seu novo desafio profissional: a função de produtora executiva da HBO Max. À tarde, em conversa com jornalistas, ela havia explicado que está desenvolvendo três projetos para a emissora. Um deles, “Iemanjá”, a ser dirigido por Carlos Saldanha, encontra-se em fase de roteirização, com autores brasileiros e africanos. Deve ser exibido em 2023.

Camila pode exercer, além da função de produtora executiva, a de atriz nos novos trabalhos da HBO Max. E de outras emissoras. Inclusive a Globo, da qual não é mais contratada fixa. “Nada impede” — explicou — “que participe de uma novela na Globo ou em outra emissora, pois meu contrato com a HBO não exige exclusividade”. Depois de atuar no filme “Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios”, de Beto Brant, Camila estabeleceu parceria com o cineasta paulista e juntos dirigiram o longa documental “Pitanga”, cinebiografia de seu pai, o ator baiano-carioca Antônio Pitanga.

A atriz pretende seguir carreira como diretora? Quem sabe realizar um filme sobre a mãe, a atriz e bailarina Vera Manhães, que atuou em novelas (como “Bandeira 2”) e filmes (como “A Moreninha”) e hoje vive internada em casa de repouso?

Na conversa com os jornalistas, Camila contou que durante a pandemia, escreveu, montou e filmou (com duas câmeras), junto com seu coletivo de teatro, “Matriarquia”, trabalho híbrido inspirado nas vivências artísticas e existenciais de sua mãe. E deixou em aberto a possibilidade de voltar ao tema.

Por fim, a atriz lembrou seu trabalho de maior repercussão popular: a garota de programa Bebel, da novela “Paraíso Tropical” (Gilberto Braga, 2007). “Foi realmente uma experiência única. Me dei como missão interpretar uma prostituta, de forma que pudesse honrar a profissão, sem romantizá-la. Ela existe e dá sustento a muitas pessoas. Procurei a Gabriela Leite, da Daspu, e ela me ajudou muito. O diretor Wolf Maya também. E claro, dois parceiros incríveis, os atores Wagner Moura e Chico Diaz. O resultado foi mágico. E não posso esquecer de forma alguma minha mestra, minha querida Camila Amado, que me ajudou demais. O humor veio muito do jogo com Chico Diaz, que inventou a história da ‘catiguria’. Aí vieram outras nuances, outras cores, outros desafios, os personagens caíram na boca do povo, ganhei o Prêmio APCA”.

O terceiro momento de aplausos de pé aconteceu ao final da exibição de “A Filha do Palhaço”, um dos dois longas-metragens brasileiros que participam da competição ibero-americana do festival (o outro é a ficção gaúcha “O Acidente”, de Bruno Carboni).

O público adorou o longa da trupe de Pedro Diógenes, que pela primeira vez abriu a guarda e fez um filme popular, sem concessões e sem abastardamentos.

Depois de sete longas-metragens mais experimentais e sob os “dogmas” conceituais do Coletivo Alumbramento, Diógenes dialogou sem pejo com o cinema narrativo, com o “filme de roteiro”, com o melodrama, com a música popular e aquela desbragadamente romântica. E com o humor. Em especial com o humor cearense, o mais fértil do país, aquele que brota nas ruas, esquinas, bares, churrascarias, pizzarias e muquifos.

O prazer do público já se manifestava em projeção aberta. Quando uma placa de bar avisou que havia “caroço na azeitona do pastel”, a gargalhada foi geral. Quando a voz da cantora Joanna (no hit romântico “Tô Fazendo Falta”, 1999) encheu a sala, muitos cantaram junto. Claro que havia 35 integrantes da equipe (atores e técnicos) presentes no imenso Cine São Luiz (mais de mil lugares) e o filme jogava em casa. Mas outros filmes cearenses exibidos no Cine Ceará não causaram tamanho frisson.

Durante o debate com a imprensa, o cineasta Pedro Diógenes, seu ator-protagonista, Démick Lopes, e sua corroteirista e coprodutora Amanda Pontes ouviram muitos elogios e responderam com calma e serenidade às perguntas dos jornalistas.

A coprotagonista Lis Sutter, que interpreta a filha adolescente do “palhaço” Renato (papel de Démick Lopes), não compareceu ao debate. Mas esteve na sessão do Cine São Luiz e estava eufórica, inclusive com os elogios que recebeu de Camila Pitanga por sua estreia no cinema (e nas artes). Diógenes contou que a escolheu entre 18 candidatas, com a preocupação de que ela viesse de uma família de cabeça aberta. De forma a aceitar bem que a jovem vivesse as difíceis experiências que caberiam à personagem Joana. Ou seja, ir em busca de um pai que a deixara pequena, com a mãe, pois se apaixonara por um rapaz, e desaparecera da vida dela.

O filme mostra a curta, mas intensa, convivência de Joana com Renato, que ganha a vida como “Silvanelly”, atriz transformista, contadora de piadas em shows na noite de Fortaleza. E o faz montada com roupas e maquiagem das mais extravagantes e chamativas. Na vida dos dois entrará, entre outros personagens, o ator de teatro Marlon, interpretado por Jesuíta Barbosa. Auxiliado por Amanda e Michelline Helena, Diógenes desenvolveu argumento inspirado em vivências de seu primo Paulo Diógenes, intérprete há 30 anos de “Raimundinha”, a matriz de “Silvanelly”.

O filme abraça a questão da homoafetividade de forma orgânica e sensível, não simplifica as questões afetivas, mostra as contradições de um pai ausente, que se apega, tardiamente, à filha. E comprova o talento de Démick Lopes, um ator de grandes recursos, com 25 anos de teatro nas costas. Com sutileza em cada cena, ele envolve o público. E a todos comove ao cantar “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. E ao dançar o hit meloso de Joanna, com a filha (também Joana), e colocar a capa de um vinil da cantora sobre seu rosto. E, mais, ele tem o timming perfeito para contar as piadas de “Silvanelly”.

Aos 44 anos, casado com a atriz Sâmia de Lavor (de “Pacarrete”), uma das preparadoras de elenco de “A Filha do Palhaço”, Démick atuou em dezenas de peças de teatro, fez muitos filmes cearenses (foi par de Marco Nanini em “Greta”), atuou em “Redemoinho”, de José Luiz Villamarim, fez novela na Globo e brilhou na série “Como Nascem os Fortes”. Ele está emocionado com a recepção de “A Filha do Palhaço”. Não é para menos. Não é todo dia que um ator ganha um papel de tal dimensão.

Desde já, Démick é forte candidato ao Troféu Mucuripe de melhor intérprete do Cine Ceará. Mesmo que seja temerário dizer isso, quando os concorrentes são oito e vimos apenas um filme, o primeiro. Mas queremos apenas dar ênfase ao seu grande desempenho. E anotar, também, que a estreia de Lis Sutter é das mais promissoras.

 

FILMOGRAFIA
Pedro Diógenes
Cineasta cearense, integrante do Coletivo, depois produtora, Alumbramento, hoje na produtora

. 2022 – “A Filha do Palhaço” (solo)
. 2020 – “Pajeú” (solo)
. 2018 – “Inferninho”, com Guto Parente
. 2016 – “O Último Trago”, com Luiz Pretti e Guto Parente
. 2014 – “Com os Punhos Cerrados”, com Luiz Pretti e Guto Parente
. 2011 – “ No Lugar Errado”, com Guto Parente e Luiz Pretti
. 2011 – “Os Monstros”, com Luiz Pretti e Guto Parente
. 2010 – “Estrada para Ithaca”, com os irmãos Pretti e Guto Parente

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