Paulo José

Por Maria do Rosário Caetano

Nuca e nariz. Essas duas inusitadas partes do corpo humano, quando pensadas como fonte expressiva, constituíram-se em desafios para Paulo José. O ator, que morreu na noite da última quarta-feira, 11 de agosto, aos 84 anos, deixou notável patrimônio artístico tanto no cinema como no teatro e na TV.

Além de intérprete, dos maiores de nossa história cultural, Paulo José – nascido no Rio Grande do Sul, em março de 1937 – era um grande (e refinado) contador de histórias.

A nuca está no centro da melhor delas. E o ligava ao diretor de dois dos maiores filmes “paulinos”: “O Padre e a Moça” (1965), baseado no poema “Negro Amor de Rendas Brancas”, de Carlos Drummond de Andrade, e “Macunaíma”, de outro Andrade, o Mário.

Paulo José estreou no cinema justo no filme dos dois Andrade de origem mineira. Portanto, mergulhado no universo poético de Drummond. Ele não era a primeira opção de Joaquim para interpretar o jovem padre que se apaixonava por moça bela (Helena Ignez). Acabou sendo aceito. Afinal, vinha do Teatro de Arena, ao qual se integrara, recém-chegado do Rio Grande do Sul.

O ilustrado Joaquim Pedro de Andrade, filho da elite intelectual brasileira, estudara em Paris e voltara apaixonado pelo cinema de Robert Bresson. Resolveu, sob influência do autor de “Mouchette”, colar a câmera no corpo dos atores. No caso de Paulo José – garantia o ator – Joaquim optara por fimá-lo, em sua pecadora fuga por caminhos de pedra, “pela nuca”. Rever o filme, em preto (a batina do jovem padre) e branco (as vestes da moça), é reencontrar a poesia em estado de graça. Epifania.

E o nariz? Essa é outra história narrada (inventada?) por Paulo José. E mais uma vez tem a ver com Joaquim Pedro. O cineasta, ao escalá-lo para protagonizar “Macunaíma”, teria sugerido que fizesse plástica no nariz batatudo. O ator refugou a “proposta” cirúrgica. Joaquim teria refletido até chegar à conclusão de que seu “heroi sem nenhum caráter”, nascido preto (Grande Otelo) e transformado, dentro da mata virgem, em príncipe branco (Paulo José) seria mais convincente com seu volumoso nariz. De perfil, apareceria de um jeito, de frente, de outro. Traria em si, caracteres africanos e lusitanos.

“O Padre e a Moça” virou cult. “Macunaíma”, um imenso sucesso popular. Ambos filmes tornar-se-iam, com o passar do tempo, em dois dos momentos mais luminosos da carreira de Paulo José. Que faria ainda, com Joaquim, “O Homem do Pau Brasil”. De outro Andrade, o Oswald.

Domingos Oliveira seria outro nome na linha de frente da trajetória do ator gaúcho. No auge de sua juventude, o carioca de alma dominical resolvera compor elegia impressa em celulóide para louvar sua companheira Leila Diniz. Afinal, a relação entre os dois encontrava-se estremecida. Nascia ali uma comédia solar e apaixonante – “Todas as Mulheres do Mundo” (1966).

Leila era pura luz. Paulo José, tão lindo quanto ela, seria o alterego de Domingos. Como bobo o cineasta nunca foi, ele conseguiu imprimir imagens e falas de Leila na tela, sem esconder o insaciável (e gentil) Paulo, aquele que amava muitas mulheres, até perder-se de amor por uma delas. O filme estourou nas bilheterias, virou tema recorrente nas conversas nas praias e prédios, capitais e interiores.

Domingos, mais que satisfeito, partiu então para novas aventuras com Paulo José. “Edu Coração de Ouro” não emplacou. “A Culpa”, metido a sério (Domingos nasceu para o riso e para a ternura, não?), foi fracasso retumbante.

Muitos anos mais tarde, um trio de amigos, já coroas, apaixonaria cinéfilos e fãs, os poucos que conseguiram vê-lo. Paulo José, Aderbal Filho e Domingos Oliveira interpretariam – em “Juventude” (2008) – personagens que tinham muito deles mesmos. Paulo já estava doente (conviveu por 20 anos com o mal de Parkinson), Domingos tinha a voz prejudicada por outros males. Mesmo assim, os dois exalavam a fraterna felicidade da juventude, o prazer de estarem juntos (e com Aderbal), representando para a câmera.

Grande cineastas dirigiram Paulo José. Em 1968, ele era “o” cara, o mais requisitado dos atores. Walter Hugo Khouri fez dele um estudante de Filosofia em “As Amorosas”, filme dos mais singulares. Roberto Santos o colocaria pelado, correndo esbaforido pelas ruas do Rio, em “O Homem Nu”. Baseado em narrativa de Fernando Sabino, o cara, enrolado numa toalha, seria vítima de fatalidade doméstica. Ao recolher garrafa de leite, na porta de seu lar, dar-se-se-ia o inesperado. Ao fechar-se, a porta prenderia a toalha, deixando o homem completamente nu. Nu, e em fuga, obrigando o pelado a enfrentar o espaço urbano e a moral alheia (e condenatória).

Ainda em 1968, Paulo José protagonizaria o mais godardiano dos filmes brasileiros – “Vida Provisória”, do cinéfilo e crítico mineiro Maurício Gomes Leite. Faria, ainda, um dos episódios de “Os Marginais”, aquele dirigido por Carlos Alberto Prates Corrêa (“Guilherme”).

Macunaíma tomou-lhe todo o ano de 1969. Ao invés de deitar-se sobre os louros de “mais talentoso (e belo) dos atores brasileiros”, Paulo José regressou ao Sul natal para fazer o nativista “Gaudêncio, o Centauro dos Pampas” (lançado em 1971, mesmo ano do fracassado “A Culpa”).

De volta ao Rio, meteu-se, como produtor, em complexa empreitada, que quase arruinou suas finanças. Junto com Ruy Guerra e Flávio Império, escreveu o roteiro de “Os Deuses e os Mortos” (dirigido por Ruy). Não estava no elenco, mas sua mulher, Dina Sfat, a guerrilheira Cy, de “Macunaíma”, sim.

Com Othon Bastos, Ítala Nandi e grande elenco, a trupe partiu para a Zona do Cacau, na Bahia. O filme, que venceria o Festival de Brasília, era – na definição de Antônio Houaiss – um representante do Neo-Barroquismo que tomara conta de alegóricas narrativas fílmicas, desde que o AI-5 caíra como um raio e poder ditatorial sobre a criação artística (e política) brasileira. O filme resultou em fracasso de bilheteria. E Paulo se viu endividado.

Encontrou, apesar das dívidas, ânimo (alegria e humor) para interpretar “Cassy Jones, o Magnífico Sedutor” (1972), diálogo de Luiz Sérgio Person com a comédia erótica, aquela que ganhava cada vez mais força no cinema brasileiro e seria rebatizada de “pornochanchada”. Até ser soterrada pelo filme de sexo explícito (“Coisas Eróticas”, 1981).

Na TV, à qual se agregaria, Paulo José encontrou um porto seguro. Estreou, na Rede Globo, em “Véu de Noiva”, de Janete Clair (1969). Em seguida, faria um folhetim delicioso – “Meu Primeiro Amor”. Seu personagem, um consertador de bicicletas, era auxiliado por um parceiro atrapalhado, Flávio Migliaccio. A dupla fez tanto sucesso, que saiu direto da novela para o seriado Shazan & Sherife, que permaneceu no ar por dois anos e meio, encantando a criançada.

Sem abandonar o cinema – nem o teatro, sua primeira escola – Paulo José faria de tudo na TV. Dezenas de novelas, séries, casos especiais (como ator ou diretor). Manoel Carlos o escalou para interpretar um portador de mal de Parkinson na novela “Em Família” (2004). Havia quem assistisse aos infindáveis capítulos só para vê-lo, com seu talento imenso, interpretando um portador de mal que ele realmente portava. Seu olhar doce e profundo comoveu o país.

Na década de 1970, Paulo José fez mais TV que cinema. Depois de “Cassy Jones”, viria o protagonista de “O Rei da Noite”, primeira ficção de Hector Babenco. E só. Em compensação, nos anos 1980, retomaria o pique cinematográfico. Protagonizaria “A Difícil Viagem”, de Geraldo Moraes, filmado no Rio Araguaia, e “Faca de Dois Gumes” (abaixo, depoimento de Murilo Salles). Desempenharia, ainda, papeis menores em outros filmes, como o gaúcho “O Mentiroso”, de Werner Schunneman, e manteria fértil parceria com Jorge Furtado e a turma da Casa de Cinema de Porto Alegre. É dele a voz aliciante (e irônica) de “Ilha das Flores” (ver depoimento de Jorge Furtado abaixo).

Nos anos 1990, Paulo José interpretaria personagem do qual se orgulharia muito: Policarpo Quaresma, o cultor de nacionalismo extremado, criação de Afonso Henriques Lima Barreto.

Paulo Thiago, diretor do filme, viu no Macunaíma de Joaquim Pedro, heroi sem nenhum ‘carácter’ (sem características definidas), o ator ideal para dar vida ao ser policarpiano, marcado pelo excesso de certezas, convições, ideias fixas, enfim. Para o gaúcho da fronteira, interpretar Macunaíma e Policarpo Quaresma era, realmente, um privilégio, um presente dos deuses do cinema.

Os mesmos deuses que o presentearam com “Quincas Berro D’Agua”, adaptação que o baiano Sérgio Machado faria da obra de seu padrinho artístico, Jorge Amado. Coube a Paulo interpretar um morto. Quincas, chegado à farra e ao álcool, morria em noite de gandaia. Enquanto a família planejava enterro digno e solene, os amigos resolviam viver, com o defunto, a última aventura.

Paulo, já doente, negou-se a ser representado por um boneco em cenas que permitissem tal recurso. Preferiu estar sempre de corpo presente. Interpretar um morto, afinal, era tarefa das mais difíceis e desafiadoras.

Com os amigos da Casa de Cinema, Paulo José atuaria em “O Homem que Copiava” (em pequeno papel) e no metalinguístico “Saneamento Básico, o Filme”, aí em papel mais significativo. Filme que merece ser visto e revisto. O mesmo deve acontecer com “Benjamin”, recriação de Monique Gardenberg para romance de Chico Buarque.

Dois títulos da filmografia “paulina” não podem ser esquecidos, pois são obrigatórios. O primeiro – “O Palhaço”, de Selton Mello, em função dupla (de ator e diretor) – mergulha, com muitas cores e tom banhado em melancolia, no universo do circo. Fã assumido do grande Paulo José, Selton deu a ele o papel de um velho palhaço.

O outro – o documentário “Todos os Paulos do Mundo”, de Gustavo Ribeiro e Rodrigo Oliveira – nos leva a revisitar a magnífica carreira cinematográfica do grande ator. Por traz desses projetos, nos bastidores, está a produtora Vânia Cattani, da Bananeira Filmes, que amou Paulo José com fervor servil.

A vida do imenso e generoso ator gaúcho está narrada em livro da Coleção Aplauso, escrito por Tânia Carvalho.

Abaixo, os cineastas Murilo Salles e Jorge Furtado relembram Paulo José:

Murilo Salles, cineasta e diretor de fotografia, autor de “Faca de Dois Gumes”, baseado em narrativa de Fernando Sabino: “É difícil encontrar palavras para definir Paulo José. Ele será sempre superior. Tive a sorte e o privilégio de tê-lo como protagonista de “Faca de Dois Gumes”, meu segundo longa de ficção. É inenarrável o que foi essa experiência. Sua energia pulsante, furiosa. Sua integridade ética. Seu carisma. Sua inteligência. Sua parceria. Um Ator, sim, com maiúscula, sem precedentes, e que deixa um legado lindíssimo, sua carreira é uma narrativa de excelências. Era o que perseguia obstinadamente, seu dever, sua tarefa como ator. Tenho um fato que ilustra bem isso. O “Faca de Dois Gumes” foi uma produção pequena, independente. Por isso, não conseguimos filmar todo o roteiro no tempo previsto. Decidimos montar o que tínhamos, para depois filmar o estritamente necessário. Paramos por três meses. Na retomada, a equipe era mínima. Eu me tornara responsável, além de dirigir, a desempenhar outras tarefas. Ajudar a fechar o campo de ação, por exemplo, pois faríamos cenas externas. Voltamos ao set em ponto dramaticamente crucial para o personagem do Paulo, Jorge Bragança. Numa praça em frente à sua casa ele tem que decidir se mata a mulher ou não”! Enfim, “só isso!”… E “isso” ficou para três meses depois, por causa da interrupção e porquê era uma externa… Claro que retomamos as conversas, Paulo assistiu ao filme parcialmente montado, deu importantes sugestões. Mas , no dia da filmagem mesmo, caramba… eu estava possuído por enormes tarefas de produção, fotografia, platô enfim, concentrado com muitas coisas e “esqueci o principal: do Paulo!!!” Marcamos a cena. Câmera, ação! Paulo entra em quadro, o travelling começa a se aproximar dele. Enquanto operava a câmera, pensei: Caramba!!! O Paulo… Meu Deus!!!! Quase corto para poder falar com ele, enfim, trocar, motivar, buscar intenções. Mas não cortei. Quanto mais a câmera se aproximava e o plano seguia, fui me emocionando em nível que poucas vezes tinha acontecido comigo: o Paulo estava ‘Jorge Bragança’ como nunca, num nível de intensidade expressa em algo que saía de dentro dele e aparecia em seu jeito de olhar. Caramba, fui às lágrimas fazendo a câmera! Estava diante de uma manifestação inequívoca da expressão máxima de um Grande Ator. Obrigado, Paulo José. Você foi meu mestre!

Jorge Furtado, diretor e roteirista gaúcho, que trabalhou com Paulo José no cinema e na TV: “Tudo que tem em Paris tem em Lavras”, costumava dizer Paulo José (Lavras do Sul, 20.03.1937 – Rio de Janeiro, 11.08.2021). Aprendi muito com ele, em tantos trabalhos e mais de 30 anos de convivência, e guardo esta sua frase como uma boa síntese do seu humor, da sua sabedoria e da sua grandeza. De fato, sua amada Lavras do Sul tem tudo que é preciso para formar um cidadão e um artista: praça, rio, casas, igreja, biblioteca, restaurante, pessoas. “Para ser grande, sê inteiro”. Paulo foi um grande artista e um enorme ser humano, inteiro, em tudo que fez. E todos que o conheceram e trabalharam com ele lembram de sua generosidade. Como eu, ele amava a poesia, me apresentou muitos poemas. Lembro especialmente deste, de Carlos Pena Filho, que ele sabia de cor (e eu também acabei decorando), e que agora me ajuda a seguir trabalhando num momento de dor e saudade:

“A solidão e sua porta”

Quando mais nada resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
Nem o torpor do sono que se espalha
Quando, pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida
Do mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório”.

One thought on “Paulo José

  • 16 de agosto de 2021 em 13:02
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    jJamais esquecerei a atuação de Paulo José , em Faca de dois gumes. Amei o filme.

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