Tendler apresenta “versão proibida” dos quadrinhos eróticos de Zéfiro no Recine
Por Maria do Rosário Caetano
Para celebrar o centenário de nascimento do pacato cidadão Alcides Caminha (1921-1992), o cineasta Silvio Tendler deu mais um passo em seu filme-processo “Em Busca de Carlos Zéfiro ou Por Tanto Leite Derramado”. Se não fosse por seu nome “artístico” (Carlos Zéfiro) e sua atividade clandestina – a confecção de catecismos eróticos –, o carioca suburbano teria morrido no mais completo anonimato.
Duas razões colocaram Zéfiro na memória de gerações de brasileiros. Primeiro, ele foi parceiro de Nélson Cavaquinho em três sambas (um deles, “A Rosa e o Espinho”, aquele do “tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor”). E, principalmente, pela segunda razão. Escondido sob nome que evocava ventos e brisas, Alcides Caminha criou histórias eróticas (ou “pornográficas”), que funcionaram como estímulo à iniciação sexual de milhões de adolescentes, ao longo das décadas de 1950 e 1960. Naquele tempo, nunca é demais lembrar, não havia pornochanchada, nem filme de sexo explícito. Não havia, ao sul do Equador, revistas como a Playboy, nem canais de TV especializados em “safadezas”.
A versão final de “Em Busca de Carlos Zéfiro” é definida por Cavi Borges, diretor do festival Recine – cenário da única exibição do filme –, a “proibidona”, “sem cortes”. Portanto, os privilegiados que estiverem presentes à pré-estreia do novo longa documental de Silvio Tendler, no Espaço Estação Net Rio, dia 12 de outubro, vão deliciar-se com abundantes doses de malícia zeferiana. Malícia erótica que encantou garotos espinhentos e muitos marmanjos. E até – prova o filme – algumas garotas.
“Em Busca de Carlos Zéfiro ou Por Tanto Leite Derramado” começa com uma apresentação do próprio Silvio Tendler, já septuagenário. Em discurso libertário, ele prega a “revolução do prazer”, relembra “os tempos obscuros e moralistas que estamos vivendo” e paga tributo a Carlos Zéfiro, seu “professor de Educação Sexual”, num tempo em que o assunto era tabu nas escolas e lares.
O cineasta carioca faz-se personagem de seu filme-processo e lembra que, pré-adolescente e adolescente, membro de família judia, gordinho e desajeitado, comprava seu “catecismo” na banca, camuflado dentro de revista de circulação permitida. Alojava-se no banheiro e, depois de manuseá-lo, o armazenava sob o colchão de crina.
“Comprei tantos exemplares” (calcula-se que Zéfiro tenha escrito entre 500 e 800 “catecismos”) – recorda Tendler – “que formou-se um corcova no meu colchão”. O menino pensava que ninguém, entre os familiares, desconfiava do conteúdo de seu tesouro clandestino.
“Todos sabiam” – admite hoje. “Sabiam do que se tratava, mas me deixavam em paz com meus livrinhos em forma de corcova no colchão”. Graças a esse “consentimento (ou tolerância) familiar”, Tendler pode orgulhar-se, nos tempos presentes, de ter uma das maiores coleções brasileiras dos catecismos de Zéfiro.
Dispondo de tão rico acervo, o cineasta necessitava saber como faria seu longa documental censura 14 (ou 18?) anos. Primeiro resolveu colocar-se na própria narrativa. Depois, recorrer a amigas e amigos. Entre elas estão a jornalista Tânia Fusco, que foi sua mulher, a historiadora Simone Rodrigues e a psicanalista Glória Georgina Seddon. As duas primeiras garantem ter lido (e se excitado) com muitos dos catecismos eróticos do desenhista. E que os liam em grupos formados de meninas e meninos.
O time masculino, como não poderia deixar de ser, é bem maior. Três nomes desempenharão papel especial na narrativa: o pesquisador Gonçalo Júnior, biógrafo de Zéfiro (“O Deus da Sacanagem: A Vida e o Tempo de Carlos Zéfiro”), o cartunista Ota (1954-2021), que assinou – com seu nome civil (Otacílio d’Assunção) – o livro “O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro”, e o jornalista Juca Kfouri. Coube ao colunista esportivo da Folha de S. Paulo, quando editava a revista Playboy, revelar o cidadão que, escondido sob pseudônimo, escrevera (e ilustrara) centenas de histórias eróticas.
Alcides Aguiar Caminha – registrava sua carteira de identidade – vivia no subúrbio carioca de Anchieta, com a mulher e filhos. Juca contará, com detalhes e sedutora narração, cada passo empreendido para convencer o pacto cidadão a revelar que era o verdadeiro autor dos “catecismos eróticos”.
A revelação só se concretizaria quando Juca – com ajuda da irmã, pesquisadora de MPB – decifrasse enigma proposto por Gordo, dono de banca de jornal e principal distribuidor dos catecismos. Depois de muita insistência do jornalista, Gordo deu a pista: o verdadeiro Zéfiro é autor de música famosa composta com um grande compositor brasileiro e seu nome começa com A.
A irmã, depois de muito investigar, descobriu o nome Alcides Caminha ao lado do de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Estava decifrado o enigma. Restava convencer o dono do pseudônimo. Juca dirigiu-se ao bairro de Anchieta e conversou com Alcides. Ele, depois de Juca implorar, pediu que fosse se entender com Gil, o filho que cuidava dos interesses do pai.
Questão resolvida, o jornalista-editor publicou, na Playboy, em 1991, a revelação: o parceiro de Nelson Cavaquinho era o autor dos catecismos de linguagem elegante (de um gentleman, se comparado ao que ouvimos hoje, até em reniões do presidente da República com seus ministros). E com balões recheados em bom português. Meses depois da revelação feita nas páginas da Playboy, o compositor e quadrinista morreria. Tinha 70 anos. Juca contará, no filme, que já o encontrara com a saúde abalada e bastante debilitado.
Pelo menos, com a revelação e o texto, que Juca lera para ele, em voz alta, Alcides Aguiar Caminha pôde viver aliviado e satisfeito, seus últimos meses de vida. E fruir do agradecimento de muitos leitores de seus catecismos eróticos.
Outros três nomes de peso darão corajosos e elegantes depoimentos ao filme, o sociólogo Roberto Damatta, o historiador e professor da USP José Sebe Bom Meihy e o filósofo francês Dany-Robert Dufour, da Universidade de Paris VIII.
Roberto Damatta evocará um dos símbolos sexuais de sua juventude: as pernas de Silvana Mangano, a protagonista de “Arroz Amargo” (Giuseppe De Sanctis, 1949). Ver as coxas da estrela italiana na imensa tela dos cinemas “era algo descomunal, e muito erótico”, para um menino criado em família católica e repressora. Dali para os catecismos secretos de Zéfiro foi um passo. Mesmo que o tamanho dos livrinhos correspondessem a uma diminuta folha de papel-ofício dobrada em quatro. Quase nada se comparado ao telão onde apreciara as coxas da (estelar) colhedora de arroz de De Sanctis.
Meihy, estudioso da História e da participação de brasileiros nas Brigadas Internacionais que ajudaram os Republicanos na Guerra Civil Espanhola, relembra seus tempos de adolescente e aluno de colégio interno dirigido por padres. Um amigo, o “Panquinha” (pois tinha ‘panca’, era bem apessoado) teve a audácia de levar os catecismos eróticos para o colégio religioso. Um dia foi obrigado a colocar fogo em seu conjunto de revistinhas.
Ota, que morreu semanas atrás – sem conhecer essa versão “proibidíssima” de “Em Busca de Carlos Zéfiro” – decerto ficaria muito feliz com a versão final do filme. Tendler conseguiu – como era seu desejo – “abordar a relevância dessas publicações, os catecismos, para a sexualidade de gerações que se formaram em tempos em que a comercialização de obras pornográficas era considerada crime”.
As revistinhas de Zéfiro, povoadas de homens de falos avantajados e de mulheres (colegiais, normalistas, freiras, aeromoças, professoras, enfermeiras, secretárias ou viúvas), que buscavam o próprio prazer, foram distribuídas por todo o país e “alimentaram os desejos reprimidos, sendo responsáveis por apresentar aos jovens e até aos adultos o mundo do sexo”, lembra Tendler. “Vivíamos tempos em que os mistérios da anatomia eram desvendados com bastante pudor e não havia aulas sobre sexo”. Com “um traço inconfundível e um estilo narrativo marcante, os quadrinhos de Carlos Zéfiro eram os mais pedidos pelos (discretos) clientes e também os mais imitados pela concorrência”.
“Carlos Zéfiro” – na opinião de Tendler – “conseguiu romper com os limites do erotismo e revelar as entranhas de uma sociedade moralista nas aparências, mas permissiva por debaixo dos panos”.
Cabe ao criador dos catecismos eróticos o qualificativo de machista? Quem, no filme de Tendler, dá a resposta é a historiadora Simone Rodrigues, que na pré-adolescência, depois de ler em grupo alguns catecismos eróticos, sentiu-se tão infratora/pecadora, que, pressentindo a chegada de adultos, decidiu fugir em sua bicicleta. Resultado: levou um tombo e avariou um braço. Frente às consequências de seu ato, entendeu que aquilo era “um aviso” para que parasse de ler tal tipo de publicação.
Para Simone, julgar Carlos Zéfiro, que desenhou seus catecismos nos anos 1950 e 1960 com os parâmetros de hoje – marcados pela afirmação da mulher – é abraçar o anacronismo.
Em Busca de Carlos Zéfiro ou Por Tanto Leite Derramado
Brasil, 85 minutos, 2020
Documentário de Silvio Tendler
Eduardo Tornaghi faz a voz de Zérifo e Maitê Proença e Chico Diaz, de alguns de seus personagens
Fotografia: Maycon Almeida e Tao Burity
Desenhos: Rodrigo Pádua
Produção: Caliban e Canal Curta!
Exibição única dia 12 de outubro, no Espaço Estacão Net Rio (Botafogo, Rio de Janeiro), às 19h, no Festival Recine.