Jabor, o mais fiel dos dos discípulos de Nelson Rodrigues, nos lega “último desejo”
Por Maria do Rosário Caetano
Arnaldo Jabor, cineasta, dramaturgo, jornalista e polemista, foi encontrar-se com Nelson Rodrigues, seu grande e tardio amigo, onde quer que ele esteja. Complicações de um AVC causaram sua morte, aos 81 anos, nessa terça-feira, 15 de fevereiro, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Ele deixa inédito seu nono longa-metragem, “Meu Último Desejo”, baseado no conto “O Livro dos Panegíricos”, de Rubem Fonseca. À frente do elenco, o carioca Michel Melamed.
Filho de um oficial da Aeronáutica, Jabor, um judeu de origem libanesa, nasceu no Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1940. Estudou no Colégio Santo Inácio, dos jesuítas, politizou-se e foi parar no movimento estudantil. Escreveu no jornal O Metropolitano, da UME (União Metropolitana de Estudantes), passou pelo CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes) e chegou ao cinema como técnico de som de “Ganga Zumba, Rei dos Palmares”, do amigo Carlos Diegues.
Com Leon Hirszman, outro amigo cinemanovista, viveria experiência transformadora, que descreveu em crônica antológica, na Folha de S. Paulo: as filmagens do seminal curta-metragem “Maioria Absoluta”, de Leon Hirszman, no sertão nordestino, primeira metade dos anos 1960. Para Jabor, a equipe encontrou o “absurdo beckettiano” em corpos famintos e analfabetos, naquela terra flagelada.
O jovem aprendiz faria sua estreia na direção cinematográfica com o curta “O Circo” e, já no arranque, venceria o primeiro (e pauloemiliano) Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (1965). Oito anos depois, venceria a primeira edição do Festival de Gramado, com o exuberante e trágico “Toda Nudez Será Castigada”, início de sua fértil e seminal parceria (e amizade) com Nelson Rodrigues.
Em seus primeiros anos no cinema, Jabor frequentou o curso que o sueco Arne Sucksdorff, premiado com Oscar, ministrou no Rio de Janeiro, sob patrocínio do Itamaraty, para qualificar jovens documentaristas brasileiros. Naquele tempo, acreditava-se na existência do “Cinema Verdade”. E foi sob esse rótulo, hoje mais desacreditado que cédula de três dólares, que Jabor realizou seu primeiro longa, o inquieto “Opinião Pública” (1967). O mergulho na miséria da “maioria absoluta” dos camponeses sem terra, sem comida, sem escola, sem saneamento básico o marcou, mas ele não quis seguir por aquelas searas. Preferiu mirar a classe média, que permaneceria sob seu foco por toda sua longa e produtiva trajetória.
Em “Opinião Pública”, Jabor registra famílias pequeno-burguesas, com seus sonhos medíocres, o misticismo, os meios de comunicação de massa (e Chacrinha) que vão ganhando relevo, os ídolos da hora (Wanderley Cardoso, Jerry Adriani) e suas fãs histéricas. Colhe, enfim, nas ruas, depoimentos de pessoas com seus pequenos e fugazes anseios, pirações e parco conhecimento político.
No pós-AI-5 (baixado em 13 de dezembro de 1968), o cinema brasileiro passou a conviver com censura pesada. Antônio Houaiss gostava de lembrar que um “Neo-Barroquismo se impôs com complexas alegorias” para burlar os militares e seus fiscais da moral e da ação político-cultural. Jabor realizou então o alegórico “Pindorama”, um filme totalizante, que tenta entender o Brasil, imerso na lama. O longa resultou em imenso fracasso comercial.
Dois anos depois, ele surgia, luminoso com “Toda Nudez Será Castigada”. Darlene Glória em estado de possessão, interpretava a prostituta Geni, que enlouquecia de desejos o viúvo Herculano (Paulo Porto), pajeado por irmãs ultracarolas. Mas ela só faria sexo com o viúvo se ele a desposasse de papel passado em cartório. O filme estourou. Mas acabou interditado pela Censura. Foi liberado depois de muita negociação. No Festival de Berlim, ganhou o Urso de Prata. Jabor conhecia, então, o sucesso artístico e comercial. E fazia brotar verdadeira febre no cinema brasileiro: o filme baseado em Nelson Rodrigues (não que fosse novidade, mas com tanta constância, só depois do êxito jaboreano).
Ele mesmo repetiria a dose dois anos depois, com “O Casamento” (Adriana Prieto e Paulo Porto como protagonistas). O sucesso não se repetiu, mas o filme tem admiradores de grande peso. E dialoga com o cinema exasperado da primeira metade dos anos 1970.
Ao longo da década, Jabor e Nelson Rodrigues (1912-1980) se encontravam sempre que podiam. Se não podiam, falavam-se ao telefone. O cineasta foi incorporando características do mais carioca dos pernambucanos. Tornou-se exasperado e cultor de metáforas hiperbólicas. Um jornalista rodriguiano até a medula.
Antes, porém, faria sua “Trilogia entre Quatro Paredes”, cercada de Brasil por todos os lados (já contaminada, claro, por Nelson Rodrigues). Tudo começou com seu melhor e mais criativo filme – “Tudo Bem” (1978). Elvira (Fernanda Montenegro) é casada com Juarez Ramos Batista (Paulo Gracindo), funcionário aposentado do IBGE, udenista ingênuo, que vive cercado pelos fantasmas dos amigos (um castroalvino, um integralista etc). O casal de classe média resolve reformar o apartamento. Os operários, aquela gente “diferenciada”, entra no templo da classe média. Começam os conflitos de classe. Sucesso de crítica e com boa aceitação do público.
No filme seguinte – “Eu te Amo” – com o quarteto Sonia Braga e Pereio, Vera Fischer e Tarcísio Meira – Jabor arrebentou a boca do balão: quatro milhões de espectadores. Os labirintos iluminados pelo fotógrafo Murilo Salles, então no auge de suas potencialidades, serviram de bandeja finos biscoitos eróticos às massas. As curvas de Sonia Braga (com seu vestido de lamê prateado) faziam homens e mulheres suspirarem.
No fecho da trilogia – “Eu Sei que Vou te Amar” (1984) – Fernandinha Torres e Thales Pan Chacon faziam uma DR daquelas, em sofisticado e luxuoso apartamento. Um filme fascinante, psicanalítico. Jabor exorcizava a separação da mulher, chegava a Cannes e via Fernandinha conquistar a Palma de Ouro de melhor atriz. O filme deu origem a peça teatral de grande sucesso e cativou imenso número de espectadores.
O nome do cineasta rompia fronteiras, a ponto dele ser convidado para realizar “Love at First Sight (“Amor à Primeira Vista – Carnaval”), em 1990. Uma bela estrangeira (Grace de Capitani), em crise existencial, encantada com os festejos carnavalescos brasileiros, resolve extravasar suas pulsões. O casamento, porém, limita seus desejos. Um brasileiro (Marcos Palmeira) a ajudará na realização de seus sonhos?
No momento em que Jabor vivia sua glória como cineasta, veio o Governo Collor, que destruiu, a canetadas, a Embrafilme, o Concine (Conselho Nacional de Cinema) e outras instituições e mecanismos de fomento à cultura brasileira. Desemprego e desespero no setor audiovisual. Muitos profissionais sem postos de trabalho.
Jabor adotou o ofício de jornalista e foi trampar na Folha de S. Paulo. Em março de 1993, de camisa branca e gravata, foi a Paracutu, em Minas Gerais, cobrir as filmagens de “A Terceira Margem”, filme de Nelson Pereira dos Santos, realizado a partir da soma de contos de João Guimarães Rosa. No elenco, a francesa Sonja Saurin, a menina Bárbara Brant, Ilya São Paulo, Maria Ribeiro (a Sinhá Vitória de “Vidas Secas”), Jofre Soares, Chico Diaz e grande elenco brasiliense (o filme era uma produção apoiada pelo Polo de Cinema Grande Otelo, do Distrito Federal).
Alto (quase 1m90), bonito (um cariocárabe de olhos azulados), Jabor encontrou espaço também na televisão. Tornou-se comentarista do Jornal da Globo. Encontrou nos dois Governos FHC o que esperava em termos políticos. Um presidente culto, refinado, social-democrata. Quando o sociólogo foi substituído por Luiz Inácio Lula da Silva, Jabor não gostou. Tornou-se crítico ácido das gestões petistas (Dilma, inclusive). Mas quando o bolsonarismo se desenhou no horizonte, ele assinou manifesto em favor da candidatura Fernando Haddad.
Muitos brasileiros, em especial os mais jovens, conhecem Arnaldo Jabor apenas como jornalista (principalmente da poderosa Rede Globo) e autor de best-sellers como “Os Canibais Estão na Sala de Jantar”, “Amor é Prosa Sexo é Poesia” e “Brasil na Cabeça”. Mas ele foi, a vida inteira, um cineasta e um louco (desvairado até!) pelo país onde nasceu, desigual, injusto, que lhe parecia, muitas vezes, inviável. Mas, mesmo em sua exasperação cotidiana, acabava acreditando que, sim, haveríamos de encontrar jeito de consertar esse gigante sem rumo. Nem que fosse à moda de Augusto Matraga, “a pau, a porrete”.
Em 2010, depois de duas décadas dedicadas (só) ao jornalismo de papel e à TV, ele voltou a filmar. Realizou “A Suprema Felicidade”, lindo nome para um filme frustrante. Contou algo de sua própria história, ao evocar memórias de um adolescente, cujo avô o iniciava em orgias noturnas. No elenco, Marco Nanini, João Miguel, Mariana Lima, Jayme Matarazzo, Dan Stulbach e Elke Maravilha.
Deixou na gaveta um belíssimo roteiro, que ele escreveu com Fernando Coni Campos (1933-1988). Ao assistir ao inventivo, instigante, barulhento e destrambelhado “Ladrões de Cinema” (1977), do próprio Coni, Jabor intuiu que encontrava-se ali a matriz de um filme novo e soberbo. Uma metáfora do cinema do Terceiro Mundo, aquele que canibaliza o poderoso irmão do Norte, o cinema de Hollywood.
Na trama original, um grupo de favelados cariocas furta equipamentos cinematográficos de equipe estrangeira para filmar, em pleno Carnaval, desfile sobre a Inconfidência Mineira. Essa repórter acompanhou, ao longo de um dia (nos anos 1980), em escritório carioca, reunião de trabalho da dupla. Uma usina criativa em pleno funcionamento, pois fruto da troca de ideias de dois dos mais brilhantes roteiristas do cinema brasileiro.
Filmografia
Arnaldo Jabor (Rio de Janeiro, 12/12/1940 – São Paulo, 15/02/2022)
1965 – “O Circo” – curta-metragem
1967 – “Opinião Pública” – documentário (longa)
1970 – “Pindorama” (longa, ficção)
1972 – “Toda Nudez Será Castigada” (ficção)
1975 – “O Casamento” (ficção)
1978 – “Tudo Bem” (ficção)
1980 – “Eu Te Amo” (ficção)
1984 – “Eu Sei Que Vou te Amar” (ficção)
1990 – “Love at First Sight”(“Amor à Primeira Vista – Carnaval”) – episódio de ficção
2010 – “A Suprema Felicidade” (ficção)
2022 – “Meu Último Desejo” (ficção – inédito)