Tarsilinha

Por Maria do Rosário Caetano

“Tarsilinha”, animação da dupla Célia Catunda e Kiko Mistrorigo, formatada para “toda a família”, estreia nessa quinta-feira, 17 de março, nos cinemas brasileiros, dentro do calendário comemorativo do centenário da Semana de Arte Moderna.

O longa-metragem, de beleza estonteante, é fruto de parceria entre a produtora PinGuim, de Célia e Kiko, com Tarsila do Amaral, sobrinha-neta da pintora modernista, além de curadora de seu legado artístico. O roteiro, dos mais engenhosos, conta a história de Tarsilinha (voz de Alice Barion), garota de oito anos, que se desespera quando a mãe (voz de Maíra Chasseraux) perde a capacidade de relembrar fatos e reconhecer os que a cercam. Inclusive a filha.

A menina empreende, então, jornada fantástica para recuperar a memória de sua mãe. Para que isso aconteça, necessita encontrar objetos especiais, roubados da caixa de lembranças maternas. Em sua aventura, Tarsilinha contará com a ajuda do Sapo Cururu (voz de Ando Camargo) e do Saci Pererê (Skowa). Ela necessitará de muita coragem para enfrentar seus medos. E terá que superar desafios até regressar ao lar com todas as lembranças outrora guardadas na caixa de memórias. No momento mais vibrante do filme, participará de sequência de muita ação, pilotando jipe doidão e acompanhada do Cururu e do Saci.

E onde estarão guardados tais rememoramentos? Tarsilinha e seus amigos descobrirão que eles estão contidos em imenso tótem, o “Abaporu”, a mais famosa imagem criada por Tarsila do Amaral (1886-1973), fonte inspiradora do Movimento Antropofágico, cujo manifesto foi escrito pelo então companheiro da pintora, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954). Os dois viveram breve matrimônio (menos de quatro anos), mas – registre – foram momentos muito intensos e agitados.

O filme não se ocupa da Semana de 22, nem da vida de Tarsila jovem ou adulta. O que seus dois roteiristas – Fernando Salem e Marcus Aurelius Pimenta – fazem é criar uma fábula infantil, protagonizada por uma menininha em trânsito por paisagens enfeitadas de flores de manacá, feiras de frutas e produtos variados e trens que trafegam por estradas de ferro (com direito ao “Trenzinho do Caipira”, de Villa-Lobos, na trilha). Tarsilinha convive com personagens do folclore brasileiro eternizadas na obra da artista. Além do “Abaporu” (homem que come gente, antropófago, canibal) e da Cuca (bruxa que rapta crianças teimosas), há sacis, sapos, bichos barrigudos e voadores.

Em busca dos objetos que compõem a memória afetiva da mãe, Tarsilinha, o Cururu e o Saci mergulharão nas entranhas profundas do Abaporu. Lá estão acumuladas, além das memórias da mãe da garotinha, o patrimônio simbólico de muitas outras pessoas. Afinal, a obra (e o Movimento Antropofágico Brasileiro, do qual se fez símbolo) representa a ideia de devorar diferentes culturas, degluti-las e, a partir desse processo, gerar algo novo e criativo. As intenções da Lagarta, que manda no “pedaço”, porém, não são de recriação, mas sim de mera apropriação.

Nas entranhas do “Abaporu” (obra que, hoje, tornou-se parte do acervo do Malba – Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires), Tarsilinha, o Cururu e o Saci enfentarão a ambiciosa Lagarta, que se expressa pela voz arrasadora da atriz e cantora Marisa Orth, assistida pelo Bicho Barrigudo (Rodolfo Dameglio). Nem precisa dizer que a “cantriz” vai deitar e rolar com suas “maldades”, realçadas por sua fala incomum e irônica. E por sua famosa risada. Mas ninguém espere uma vilã de folhetim. Célia e Kiko fazem filmes edificantes, para crianças pequenas (especializaram-se na faixa pré-escolar, embora “Tarsilinha” exija um pouco mais da petizada), e não querem perpetuar a luta entre o bem e o mal. A Cuca, no filme, fala pela voz de Cristina Mutarelli, e o Pássaro, pela de Marcelo Tas.

A obra de Tarsila do Amaral marcou-se por um período “naïf” e, mais tarde, pelo pós-impressionismo. E, entre suas criações mais conhecidas, estão quadros de temática social como “Operários” (1933) e “Segunda Classe” (também de 1933). Mas na trama de Fernando Salem e Marcus Aurelius Pimenta não há espaço para essas pinturas. Afinal, estamos num mundo fantástico, no momento em que uma criança precisa recuperar o diário perfumado por uma flor de manacá, brincos (iguais aos do auto-retrato da pintora) e outros objetos afetivos, reservas de memória.

Houve ótima química na parceria entre os roteiristas Fernando Salem e Marcus Aurelius Pimenta, este, parceiro em muitos projetos do cineasta, dramaturgo e ficcionista José Roberto Torero. Salem, de 61 anos, é músico, produtor e tem seu nome vinculado a criações infanto-juvenis (e adultas) ligadas à TV Cultura, a Cao Hamburger, Marisa Orth, André Abujamra, Paulo Miklos e à própria PinGuin. Alguns deles merecem destaque: “Castelo Rá-Tim-Bum”, “Peixonauta”, “Escola prá Cachorro”, “TV Cruj”, “Cocoricó”, “Rugas na Pele do Samba” (este, um CD), “Creme na Pele do Samba” (show) etc.

Já Aurelius, também de 61 anos, paulistano do Brás, jornalista de formação, assina uma dezena de livros com Torero, muitos deles infantis – “As Belas Adormecidas (e Algumas Acordadas)”, “As Roupas Novas dos Reis”, “Branco, Belo e Cinderelo”, ou adultos (“Terra Papagalli”). Vem, também, dedicando-se ao cinema, com significativo empenho.

Célia Catunda e Kiko Mistrorigo são profissionais da animação que não querem ver seus nomes em todos os créditos do filme. Tanto que entregaram o roteiro, integralmente, a Salém e Pimenta e a produção a Ricardo Rozzino. Zezinho Mutarelli e Zeca Baleiro assinam a trilha sonora.

Célia, formada pela ECA-USP, fundou a TV PinGuim – hoje Pinguim Content – com Kiko Mistrorigo. Juntos criaram séries de animação e personagens como Peixonauta, Luna e Tarsilinha. Conceberam e dirigiram “De Onde Vem?”, “Charlie, o Entrevistador de Coisas”, “O Show da Luna!” (atualmente em sua sétima temporada) e o argumento original de “Tarsilinha”.

Kiko Mistrorigo formou-se em Arquitetura, na FAU-USP, em 1987. Dois anos depois, viu nascer, com a amiga Celia Catunda, a produtora PinGuim, projeto voltado “à criação e produção de programação divertida, educativa e ousada para crianças, principalmente para pré-escolares”. Sempre quisemos – lembra ele – “criar histórias que não subestimassem a capacidade das crianças, como a série ambiental e o longa-metragem ‘Peixonauta’, a série pré-escolar científica ‘O Show da Luna!’, e a série  ‘Charlie, o Entrevistador de Coisas’. As produções da Pinguim Content estão disponibilizadas em mais de 120 países nas mais diversas plataformas.

Antes que “Tarsilinha” chegasse ao público (o filme teve sessão especial na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2021), sua equipe realizou extensa pesquisa no universo pictórico de Tarsila do Amaral. Célia e Kiko contam que “um dos quadros determinantes na construção da narrativa foi ‘A Cuca’, fonte da incorporação de personagens como o Saci, o Sapo Cururu, o Bicho Barrigudo e o Bicho Pássaro”. Outro elemento importante na história – os brincos da mãe de Tarsilinha – “estão no auto-retrato da pintora”.

Outras obras da artista – como “A Feira”, “EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil)” e “São Paulo (Gazo)” – inspiraram “a criação de paisagens que evocam o mundo urbano no filme, resultando em sequência em que a personagem desloca-se por vários lugares da cidade e até dirige um carro, em sua fantástica aventura”. Os traços e desenhos da animação seguem os traços da pintura da própria Tarsila.

 

Tarsilinha
Brasil, 93 minutos, 2021
Direção: Célia Catunda e Kiko Mistrorigo
Roteiro: Fernando Salem e Marcus Aurelius Pimenta
Trilha Sonora: Zezinho Mutarelli e Zeca Baleiro
Produção: Pinguim Content
Produtora Associada: Tarsila do Amaral
Distribuição: H2O Films

One thought on “Tarsilinha

  • 1 de maio de 2022 em 09:27
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    Bom dia!
    Tenho uma escola de música, teatro e artes. Trabalhamos desde 1 ano de idade, com Musicalização, até perder de vista…..
    Estou trabalhando, semestre, o tema Tarsila do Amaral, com alunos de 4 a 11anos.
    Estávamos esperando ansiosamente o lançamento de Tarsilinha nos cinemas para podermos levar os alunos.
    Infelizmente ficou muito pouco tempo em cartaz e não conseguimos nos organizar.
    Seria possível assistir em alguma plataforma da internet?
    Gostaríamos de fazer uma exibição privada somente para os alunos.
    Agradeço desde já e caso queiram conhecer nosso trabalho acessem nosso site, Instagram e canal no YouTube.
    http://www.tacatum.com.br
    Denise

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