Memórias de Festivais
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue, nessa semana, série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais brasileiros (ou internacionais).
A quarta dessas lembranças tem, mais uma vez, o Festival de Gramado – que festejará seus 50 anos em agosto – como cenário. Mas outras mostras cinematográficas, de outras cidades brasileiras, hispano-americanas e europeias, serão lembradas ao longo desse ano. O personagem dessa rememoração foi projetado mundialmente pelo gênio espanhol Luis Buñuel (1900-1983) sob o nome artístico de Roberto Cobo.
Em 1998, o festival gaúcho realizava sua vigésima-sexta edição. Continuava com recorte latino, que adotara no começo daquela década, quando desmonte promovido pelo Governo Collor arremessara a produção cinematográfica brasileira à média de cinco filmes por ano (uma cinematografia que chegara a produzir 80 filmes anuais).
Numa certa noite festivaleira, os apresentadores gramadianos anunciaram o concorrente mexicano: “De Noche Vienes, Esmeralda”, de Jaime Humberto Hermosillo. O filme se faria representar por um dos integrantes de seu elenco. Chamado ao palco, o ator não pôde subir as escadas, pois convalescia de problema na perna e amparava-se numa muleta.
Ao ouvir o nome dele – Roberto Cobo – estremeci. Não pude ver bem seu rosto, pois ele permaneceu no solo, à altura da plateia, proferiu rápidas palavras e, em seguida, retornou ao seu assento.
Ao assistir ao filme não tive dúvida: em “De Noche Vienes, Esmeralda” aparecia o “Jaibo”, de Buñuel, em “Los Olividados” (1950), passados 48 anos. Terminada a maratona noturna da competição, fomos jantar, mas eu só pensava em duas palavras, aliás quatro: Roberto Cobo, Jaibo, Buñuel.
No dia seguinte, acordei cedo e fui à secretaria do festival procurar pelo hotel e número do quarto de Roberto Cobo. Queria entrevistá-lo, saber o que acontecera com sua perna, como se desdobrara sua carreira desde que “Los Olvidados” e o delinquente “Jaibo” haviam encantado o mundo (e André Bazin, em particular). Não havia, porém, nenhum convidado registrado com o nome de Roberto Cobo. Naquele tempo não havia internet. Nem eu dispunha de um dicionário que me revelasse o nome civil do ator mexicano.
Pedi às atendentes do Festival de Gramado que investigassem os nomes de quem viera do México até a Serra Gaúcha. Elas levantaram a origem das passagens aéreas e entre os nomes vindos do país da América do Norte encontraram uns três ou quatro. Copiei-os e comecei a ligar. Um a um. Em sofrível portunhol fui avisando: “Ola, que tal! Soy una periodista brasileña, me gustaria saber se eres ator de la pelicula ‘De Noche Vienes, Esmeralda”. Até que uma voz doce, de um cidadão chamado Eleuterio García Rumero respondeu: “Sí, soy yo”.
Sem conter a emoção, comemorei: “Eres Roberto Cobo, el Jaibo, de Buñuel?” Ele riu uma risada gostosa e disse “sí!”. Avisei que queria entrevistá-lo e perguntei se podia me receber dali a 15 minutos. Ele topou e, com o fotógrafo do festival, tomei o rumo do Hotel Toscana.
Estava, pois, ali, frente à frente com um de meus ídolos – García Rumero, ou melhor, Roberto Cobo. Magrinho, já quase septuagenário, manco e mesmo assim um monumento do cinema mexicano (Godard selecionara sua imagem para representar a América Latina no curta “Da Origem do Século 21”, apresentado, no ano 2000, em Cannes).
Eu deveria perguntar ao protagonista de “Los Olvidados”, um dos mais belos filmes do diretor de “Viridiana”, “O Anjo Exterminador” e “A Bela da Tarde”, por que ele estava mancando? Seria indelicado? Essa questão me tirou o sono na noite que separou a exibição do filme e a tão desejada entrevista.
Por sorte, ao me receber, ele mesmo, falante e espalhafatoso, abordou o tema por vontade própria. A motivação da bengala e outro assunto.
Primeiro, contou que fora vítima do terrível terremoto que sacudira a Cidade do México, em setembro de 1985, deixando 10 mil mortos e milhares de feridos. Um destes fora ele. O prédio em que residia sofrera forte abalo e ele, em consequência, quebrara a perna. Desde então, não pudera mais separar-se da bengala.
O segundo assunto era dos mais divertidos. Fazia um frio de rachar em Gramado. Roberto Cobo, homossexual assumido, viera ao Brasil para conhecer o país de Carmen Miranda, do Carnaval, das paisagens tropicais, com muito sol, praia, calor e roupas mínimas. Mas, ao contrário, o haviam colocado numa cidade que “mais parecia um burgo suíço”. Ficou desapontado. Estava gostando do festival, todos o tratavam muito bem, mas não imaginava encontrar paisagem tão europeia.
Dali em diante, nos divertimos muito e, claro, Luis Buñuel e “Los Olvidados” estiveram no centro de nossa conversa. Antes, Cobo participou de sessão de fotos, posando numa varanda com o imenso vale verdejante ao fundo. Fez poses e poses e brincou para espantar o frio. Mas me fez garantir que publicaria as fotos de “Jaibo”, com as quais me presenteou.
O intérprete de Jaibo, o delinquente que faz tudo para tirar o menino Pedro (Alfonso Mejia) do bom caminho, tinha 20 anos quando trabalhou, pela primeira vez, com Buñuel. E fez cenas surrealistas com a bela Stella Inda. Ele relembrou aquele momento que mudou sua vida:
“Não fiz testes para o papel de Jaibo. Alguém indicou meu nome para Buñuel. Ele bateu o olho em mim e decidiu-se na hora. Quase morri de felicidade. Para ser sincero, eu não sabia direito quem era aquele cineasta. Ouvira falar que ele fizera uns filmes de vanguarda na França, outro (“Las Hurdes”) na Espanha. Mesmo assim, fiquei felicíssimo por ter sido escolhido. Havia trabalhado em quatro filmes, mas sempre em papéis pequeninos. Estava nos palcos teatrais desde os oito anos. Mas nem sonhava com a mudança que aquele filme provocaria em minha vida”.
“Los Olvidados” representou o México no Festival de Cannes, em 1950. Nunca é demais lembrar que Luis Buñuel, republicano convicto, com o triunfo dos falangistas do Generalíssimo Franco, exilou-se no país latino-americano. No México, ele realizou muitos de seus filmes. Roberto Cobo relembrou, em Gramado, o impacto do festival francês na carreira do filme:
“Eu estava em Cannes com Buñuel e a equipe de “Los Olvidados”, quando ele ganhou a Palma de Ouro de melhor direção, comoveu a plateia e arrancou aplausos calorosos da crítica mundial. Aquele momento foi muito emocionante. A importância daquele prêmio em Cannes para nosso filme, uma produção mexicana, foi imensa. “Los Olvidados” havia estreado no México e fora um fracasso. Ficou uma semana em cartaz. A consagração no festival francês nos levou a dar a volta por cima. Relançado, o filme permaneceu 48 semanas em cartaz. Foi visto em todo o México e vendido para quase todos os países do mundo.”
As lembranças que Roberto Cobo guardava de Luis Buñuel, que morrera 15 anos antes, eram marcadas pelo afeto: “A imagem que guardo de Buñuel é a melhor possível. Ele me tratava com o maior carinho do mundo. Me explicava tudo com paciência e tranquilidade. Há uma sequência em que olho para as pernas de uma mulher, louco de desejo. Buñuel me disse: ‘Olhe-a com olhar que expresse desejo sim, mas também o amor de um filho pela mãe que você não tem.’ Aprendi demais com ele”.
O ator mexicano não confirmou as desavenças entre o cineasta Luis Buñuel e seu diretor de fotografia Gabriel Figueroa (1907-1997), o nome mais famoso das imagens mexicanas. Conta-se que os dois, o espanhol e o mexicano, não se entendiam no set. Figueroa queria uma fotografia deslumbrante, contrastada, com cielos en blanco y negro, e que Buñuel debochava do preciosismo do colega.
“Para ser sincero, nunca testemunhei nenhum desentendimento entre eles. Buñuel tinha enorme respeito por Figueroa, o mestre do blanco y negro, o manipulador de filtros que geravam imagens arrebatadoras. Às vezes, em tom de brincadeira, Buñuel reclamava da demora de um ou outro plano, pois Figueroa estava sempre atrás do céu ideal. Era louco por nuvens. Se não pudesse contar com elas, era capaz de mandar fazer fumaça artificial para simulá-las. Sem nuvens, Figueroa ficava arrasado” (risos).
As lendas que cercam Buñuel contam, também, que ele, “ateu graças a Deus”, era cruel com cegos, aleijados e mendigos. Que não cultivava a piedade, sentimento por demais cristão. Preferia o distanciamento crítico. Roberto Cobo abordou o tema, em Gramado:
“Conheço a fama de Buñuel no trato com os deserdados da sorte. Em ‘Los Olvidados’, meu personagem agride um cego e um mendigo. Buñuel (risos) era mesmo um sádico, um homem terrível, um assexuado. Levava as pessoas à loucura. Brincadeira!! Ele era um gênio, um dos maiores nomes da história do cinema. Imagens de espancamento de cegos ou mendigos em seus filmes existem porque fazem parte da cruel poesia de suas criações. E ‘Los Olvidados’ é um dos momentos máximos de sua criação. Já perdi a conta de quantas vezes vi e revi este filme. Foram dezenas de vezes nos cinemas, em muitos e muitos festivais e cinematecas, sem contar as reprises na TV. A última vez que o vi (aliás, deixei de vê-lo) foi em Portugal. A Embaixada do México e a Cinemateca de Lisboa me convidaram a prestigiar a sessão do filme numa mostra em homenagem a Buñuel. Fui e… dormi. Então, costumo brincar com meus amigos que essa foi a última vez em que não vi ‘Los Olvidados’.”
Cobo contou, em sua passagem por Gramado, que pesquisadores haviam descoberto negativos do filme, nos quais estava registrado outro final preparado por Buñuel. “Encontraram um final menos trágico que aquele montado sob supervisão do cineasta. Para mim, aquilo foi um truque publicitário. Quem é que está interessado em um final que não foi o escolhido? Há final mais belo que o de ‘Los Olvidados’? Quem alteraria uma imagem que fosse do filme? O pesquisador que descobriu o ‘outro final’ me jurou que o roteiro de origem acabou na gaveta. A hipótese não me convence. Buñuel nunca fez concessões ao público, nunca defendeu finais felizes. Sempre foi um sádico com a plateia (risos)”.
Como “Os Esquecidos” já soma mais de “70 anos de miséria e orfandade” – slogan utilizado para os festejos de seu relançamento em DVD – rememora-se aqui sua trama (contém spoiler – aviso aos que não gostam de saber o que acontece nem a “Romeu e Julieta”), ambientada nas ruas da cidade do México e em um reformatório.
O interno Pedro (Alfonso Mejia) se envolve em briga e, num ataque de fúria, mata as galinhas do abrigo de menores. Há quem defenda que ele seja severamente punido. O diretor pedagógico do reformatório decide dar uma chance ao garoto. Oferece a ele cédula de valiosos 50 pesos e pede que vá comprar cigarros. Se o menino regressar, estará provada sua boa índole. Só que, no caminho, Pedro se encontra com Jaibo (Roberto Cobo), delinquente já calejado pela vida. Jaibo, que fugiu de um reformatório, vai mergulhando cada vez mais fundo no mundo do crime. Agride um cego, depois um aleijado, mata alguém que atravessa em seu caminho. Esse crime é presenciado por Pedro. Daí resulta a cumplicidade entre os dois. Depois de cenas que somam sonhos e a crueza buñueliana, herdada da grande novelística espanhola (Cervantes, Quevedo, Galdós), chega-se ao terrível desfecho. Jaibo mata Pedro e, depois, é caçado e abatido pela polícia. O cadáver do menino é levado, num burrico, e jogado num monte de lixo. Este fato, real, motivou o ponto de partida do filme.
Roberto Cobo morreu na Cidade do México, em 2002, aos 72 anos, deixando sua imagem impressa em dezenas de filmes, alguns deles dirigidos por Arturo Ripstein (“Um Lugar sem Limites”, de 1978, e “Cadena Perpetua”, 1977, Nicolas Echevarria em “Cabeza de Vaca” (1991) e, claro, “Subida al Cielo”, seu outro filme com Luis Buñuel (1952).