Walter e Vladimir Carvalho unidos em prosa cinematográfica

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Márcio de Andrade e a produtora Anna Karina de Carvalho foram tomados de tamanha paixão pelo tema do longa documental que lançam, nesta quinta-feira, 26 de maio, no streaming, que perderam a objetividade.

E que tema é esse? A trajetória dos irmãos paraibanos Vladimir, de 87 anos, e Walter Carvalho, de 75, dedicados, ambos, ao cinema. Eles são os personagens centrais e a razão de ser de “Quando a Coisa Vira Outra”. Ou seja, “O Cinema da Desigualdade de Vladimir Carvalho”.

Pois o título, mesmo acompanhado de subtítulo, mostra-se incapaz de definir este documentário, fruto de fértil e amorosa conversa de dois irmãos, um nascido no sertão, em Itabaiana, terra do sanfoneiro Sivuca, e o outro, no litoral, em João Pessoa.

Vladimir, quase 13 anos mais velho que Walter, conheceu a orfandade cedo. Com a morte precoce do pai, Seu Luís, entendeu que devia ajudar a mãe, Dona Mazé, a criar o menino Waltinho. Ser um pai-irmão. E foi o que fez.

O documentarista Márcio de Andrade, no belo cartaz que divulga o filme, somou imagens dos paraibanos na labuta cinematográfica, um dirigindo, e o outro com a câmera na mão. E, finalmente, chegou à essência de seu projeto: “uma conversa sobre cinema com Vladimir Carvalho e Walter Carvalho”.

Vladimir caminha para os 90 anos, que completará em fevereiro de 2025, cheio de energia e projetos cinematográficos. Tamanha vitalidade só pode ser fruto de DNA especial, comentam os que se inteiram de sua idade verdadeira. Afinal, causa mesmo espanto vê-lo pelos festivais, salas de cinema, debates e agitações político-culturais. Magro, esguio, tomado por energia vital e entusiasmo desmedido. Filho de artesão fascinado pelo socialismo, o menino ganhou o prenome de Vladimir Ilich Lênin, o líder da Revolução Bolchevique. Estudaria Filosofia na Bahia, seria colega de Caetano Veloso na universidade, tornar-se-ia jornalista, cobriria as Ligas Camponesas e colaboraria com Eduardo Coutinho no primeiro “Cabra Marcado para Morrer”, o ficcional.

No futuro, introduziria o estudante de Desenho Industrial, Walter Carvalho, no ofício de diretor de fotografia (no documentário “Incelença para um Trem de Ferro”, 1972). Tudo está contado no filme de Márcio de Andrade, carioca de 49 anos, brasiliense adotivo. Hoje, além de diretor de fotografia, Walter é diretor de documentários (“Janela da Alma”, com João Jardim, “Raul – O Início, o Fim e o Meio”, “Brincante”, “Um Filme de Cinema”, “Manter a Linha da Cordilheira sem o Desmaio da Planície”) e ficções (“Cazuza, o Tempo Não Para”, com Sandra Werneck, e “Budapeste”) .

O diretor de “Quando a Coisa Vira Outra” (gente, que título esquisito!, por que Márcio não consultou Vladimir, craque da titulagem???) e sua produtora Anna Karina não mediram esforços na realização do novo filme: conseguiram trechos de dezenas de produções. De “Aruanda”, de Linduarte Noronha (1960), a “Cabra Marcado para Morrer” (1964-1984), passando pela quase totalidade da produção de Vladimir (assistimos a trechos de 19 de seus filmes) e alguns de Walter Carvalho. O que dá grande dinamismo à narrativa. A conversa do irmão-pai com o irmão-filho corre solta, paternal e fraterna, amiga e generosa.

Vladimir lembra que acabou envolvido com o cinema no finalzinho dos anos 1950, integrando a pequena equipe de Linduarte Noronha no seminal “Aruanda”. Depois, viriam “Romeiros da Guia”, com João Ramiro Melo, e “Cabra Marcado para Morrer”, projeto cujas filmagens acabariam interditadas pelo golpe militar de 1964. Concebido como obra ficcional, o longa seria protagonizado por atores “naturais”. Vladimir era, então, um impetuoso jornalista que tentava firmar-se como cineasta. Caberia a Coutinho integrá-lo à sua equipe, tão logo chegasse à Paraíba. O que foi feito. Vladimir tornou-se assistente de direção do “Cabra”. Com a queda do Governo Jango, coube ao jovem de Itabaiana missão nada cinematográfica – esconder, para impedir que fosse presa, a protagonista feminina do filme, Elizabeth Teixeira, hoje com 97 anos, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado por latifundiários. O diretor de “Pedra da Riqueza” não rememora tal história no documentário de Márcio. Mas vale saber o que ele fez: “Arrumamos roupas, batom, rouge e outros itens de vistosa maquiagem para transformar Dona Elizabeth numa ‘mulher da vida’. Ou seja, em uma prostituta. Foi assim que ela chegou a uma cidadezinha do Rio Grande do Norte, onde, com nome falso, viveu de lavar roupa e dar aulas particulares para meninos da vizinhança. Só voltaria a assumir seu nome civil (e real) quando Coutinho a procurou, no começo dos anos 1980, para a segunda fase de ‘Cabra Marcado para Morrer’ (já transformado em projeto documental)”.

Vladimir viveu por um período curto em Salvador. Depois seguiu para Brasília. Como contará no filme de Márcio de Andrade, ele é nordestino e brasiliense. Ama sua Paraíba natal e sua Brasília adotiva. Tornou-se professor da UnB e, com Fernando Duarte (fotógrafo da primeira fase de “Cabra Marcado para Morrer”), fez seu primeiro curta brasiliense, o belo e atmosférico “Vestibular 70”.

No Nordeste, realizaria seu primeiro longa-metragem: “O País de São Saruê”. O filme foi selecionado para o Festival de Brasília, mas acabou interditado. Só foi liberado em 1979, quase dez anos depois. A Censura marcaria dolorosamente a trajetória do documentarista. Seu filme mais famoso, a ‘epópera’ “Conterrâneos Velhos de Guerra” (1991) fala de nordestinos que chegaram ao Planalto Central com a missão de construir uma “Tebas moderna”, Brasília, a nova capital da República. De uma só tacada, ele pôde amalgamar suas duas maiores paixões – o Nordeste e a capital construída pelos candangos.

Em feliz escolha, Márcio de Andrade retirou de “Aula-Espetáculo de Ariano Suassuna”, que o paraibano Vladimir filmou para registrar uma das peripécias do colega pernambucano, saboroso trecho: o que conta a atenção dedicada por um cachorro a uma representação teatral de tragédia grega. De matar de rir.

Outro ponto a se destacar no documentário de Márcio: ele desejou realizar (e conseguiu) um amplo painel da trajetória de Vladimir e sua imensa amizade com o irmão de vida e ofício, Walter. E, para tanto, não se fez de rogado em buscar em trabalhos de colegas brasilienses, valiosas contribuições. Para evocar a terra natal de Vladimir, Itabaiana, recorreu ao ótimo documentário “Conterrâneo Velho de Guerra”, que Dácia Ibiapina realizou, em 2015, para o DocTV, projeto da SAv-MinC.

“Vertov das Kaatingas” – Glauber Rocha tinha “Aruanda”, de Linduarte Noronha, e “Arraial do Cabo”, de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro, como as fontes seminais do Cinema Novo. Ele conheceu Vladimir Carvalho nos tempos em que este estudou na Bahia.

Depois do exílio em Cuba e na Europa, no final dos anos 70, o diretor de “Terra em Transe” voltou ao Brasil. Resolveu, então, narrar suas impressões sobre seus colegas de geração num livro chamado “Revolução do Cinema Novo” (Editora Alhambra-Embrafilme/1981).

Sete linhas foram dedicadas a Vladimir. O texto, repleto de ipsilones, dabliús e kás, atribuía a Vladimir uma série de apostos. O primeiro deles (“o Vertov da kaatinga”) evocava um dos maiores mestres da história do cinema documental: o soviético Denis Arkadiev Kaufman (1896-1954), vulgo Dziga Vertov, autor de “O Homem e sua Câmara”. Este filme foi eleito “o melhor documentário do mundo” em pesquisa realizada pelo BFI (British Film Institute) e pela revista Sight & Sound.

No segundo parágrafo do breve e potente texto glauberiano, Vladimir é chamado de “o Rosselini do sertão”. Depois, de “o Karcará da Globo”, o “Flaherty de Euclydes”, a “máquina voadora do passo preto”, “o corte do cascavel”, o “discípulo do Santo Linduarte”, “o apóstolo de Geraldo Sarno”, “o poeta de Paulo Dantas”.

Só um profundo conhecedor da obra e das ideias de Vladimir Carvalho poderia defini-lo com tamanho empenho e ardor. Afinal, Glauber, quando evocava Roberto Rossellini, o pai (junto com Cesare Zavattini) do Neo-Realismo; Dziga Vertov, o pião que fazia girar o cinema documental soviético; Flaherty, o pai de “Nanook, o Esquimó”, e Euclides da Cunha, que implantou “Os Sertões” em nosso imaginário, reconhecia as matrizes fertilizadoras da alma cinematográfica do criador de “O País de São Saruê”, “O Homem de Areia”, “O Evangelho Segundo Teotônio”, “Conterrâneos Velhos de Guerra”, “Barra 68 – Sem Perder a Ternura”, “O Engenho de Zé Lins”, “Rock Brasília”, “Cícero Dias, O Compadre de Picasso” e “Giocondo Dias, o Ilustre Clandestino”.

 

Quando a Coisa Vira Outra – O Cinema da Desigualdade de Vladimir Carvalho
Direção: Márcio de Andrade
Produção: Anna Karina de Carvalho
Com trecho de animação de Fred Assunção e Rodrigo Neiva
Estreia: 26 de maio, no streaming, nos canais Claro Net, Sky, Vivo TV, Oi TV. No dia 29 de junho, será exibido no Canal Brasil, no programa É Tudo Verdade, de Amir Labaki (20h).
Duração: 94 minutos

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