Festival Varilux exibe “O Acontecimento” e presta tributo aos 400 anos de Moliére

Por Maria do Rosário Caetano

A pátria dos Irmãos Lumière, de Jean Renoir, de Godard e Truffaut, de Catherine Deneuve e Depardieu está perplexa. Berço e arauto do “cinema de autor”, a França não sabe o que fazer para drenar a crise do cinema de empenho cultural em telas planetárias, agravada de forma gravíssima (terminal?) pela pandemia e crescimento do streaming.

O Festival Varilux de Cinema Francês é uma das armas do país europeu para difundir sua cinematografia e a de seus parceiros por telas internacionais. Desta terça-feira, 21 de junho, até seis de julho, amplo cardápio será servido ao público de 92 cinemas brasileiros, espalhados por 50 cidades.

Os trunfos da décima-terceira edição do evento, que jamais adotou o formato on-line, são as pré-estreias de “O Acontecimento”, grande vencedor do Festival de Veneza, “Peter Von Kant”, recriação de François Ozon para o fassbinderiano “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, o novo filme do casal Louis Garrel e Laetitia Casta, “Um Pequeno Grande Plano” e a reprise de “As Aventuras de Molière”, para evocar os 400 anos do grande dramaturgo, gênio do riso, em cartaz nos palcos do mundo há quase quatro séculos.

O Varilux tenta tirar do cinema francês a pecha de “cabeçudo”. Por isto, escala filmes de diversos gêneros, incluindo sucessos de bilheterias locais (o deste ano é “Golias”, com Gilles Lelouch, astro gaulês, embora pouco conhecido entre brasileiros). Aliás, há anos a França não impõe às retinas do mundo astros da grandeza de Jean Gabin, Yves Montand, Belmondo, Alain Delon, Trintignant e a deusa Catherine Deneuve.

Gilles Lelouch, que além de “Golias”, figura nos elencos de mais dois filmes (“Kompromat” e “O Destino de Hoffman”), virá ao Brasil em delegação de atores e diretores composta com onze integrantes. Um deles, Eric Gravel, foi premiado na mostra Horizonte, que Veneza dedica a jovens talentos. Ele vem debater e mostrar o filme laureado, “Contratempos”. Os outros convidados são Carine Tardieu (“Os Jovens Amantes”), Jérôme Salle (“Kompromat”), Diastème (“O Mundo de Ontem”) e Régis Roinsard (“Esperando Bojangles”).

Depois de transformar “Dix pour Cent” em série cult em diversos países, a ponto de seu roteiro ser refilmado em outros idiomas, o Varilux resolveu abrir espaço para narrativas seriadas. A experiência será restrita a sete títulos, que terão seus dois primeiros capítulos apresentados para o público de apenas duas capitais (Rio e São Paulo). As escolhidas são “Cheyenne e Lola”, “Ópera”, “Síndrome E”, “A Corda”, “As Sentinelas”, “Jogos de Poder” e “O que Pauline Diz”.

Para apresentar as séries e participar de encontro com profissionais, integram a delegação francesa o diretor Jean-Philippe Amar (“As Sentinelas”), o roteirista Antoine Lacomblez (“Jogos de Poder” e “O que Pauline Não Diz”), o produtor Alexandre Piel (Canal Arte), a produtora Soizic Gelbard (Gaumont) e a distribuidora Isabella Barsumian (Federation Entertainment).

Os cinéfilos mais fiéis procurarão, no Varilux, os filmes mais badalados da temporada. Dos 17 selecionados, um é sólido, de roteiro arrebatador e impactante, mas já passou por festivais brasileiros (“O Herói”, de Asghar Farhadi). Trata-se de narrativa iraniana até a medula. O que está fazendo, então, num festival de cinema francês?

Muito simples. Há muito dinheiro gaulês em sua produção. E a França faz questão de manter parcerias não só com os países francófonos (Bélgica, Suíça, Quebec canadense, África magrebiana). Quando Farhadi estourou nos festivais internacionais, foi logo atraído pelos franceses e até realizou um filme em solo parisiense (“O Passado”, 2013), com Bérénice Bejo e Tahar Rahim no elenco.

Os outros 16 filmes do Varilux são inéditos no Brasil. Claro que o mais aguardado de todos é “O Acontecimento”. Além do Leão de Ouro de Veneza, o filme baseia-se em livro da escritora Annie Ernaux, nome literário da hora. Dirigido pela cineasta franco-libanesa Audrey Diwan, “L’Événement” tem assunto controverso como razão de ser – o aborto. Uma jovem (inspirada em experiência da escritora) toma a decisão de interromper sua gravidez. Isto na França da libertária década de 1960. Aos 23 anos, ela enfrentará, sozinha, todas as dificuldades possíveis e imagináveis. A prática da interrupção legal da gravidez só seria aprovada na católica França em 1975.

Os homoafetivos e fãs juramentados de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) fecharam a cara para François Ozon, quando o cineasta anunciou que se atreveria a transcriar “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, primeiro substituindo o casal lésbico, envolto no mundo da moda por casal homossexual e ligado ao mundo do cinema. Exibido na noite inaugural do Festival de Berlim, o filme foi bem-recebido. Público e críticos entenderam que Ozon fôra fiel ao espírito da obra teatral (e ao filme de 1972) do transgressor artista germânico.

No elenco do filme de Ozon estão duas atrizes veteranas, uma da trupe de Fassbinder (a alemã Hanna Schygulla) e a truffautiana Isabelle Adjani. Mas os protagonistas são Denis Ménochet (Peter Von Kant) e o jovem Khalil Ben Gharbia, de origem magrebiana, claro, no papel do jovem namorado do cineasta.

Virginie Efira, que estourou como a freira pecadora de “Benedetta”, o filme do holandês Paul Verhoeven, marca presença em “Esperando Bojangles” e “O Segredo de Madeleine Collins”, Daniel Auteuil, ator de imensos recursos, está em “O Destino de Haffmann”, Fanny Ardant, em “Os Jovens Amantes”, e Pierre Niney, de “Yves Saint Laurent”, em “Golias”. Cabe a Romain Duris, presente no elenco do novo “Esperando Bojangles”, a honra de representar o genial dramaturgo Jean-Baptiste Poquelin (1622-1673) em “As Aventuras de Molière” (2007).

Ano passado, o Varilux homenageou a memória de Jean-Paul Belmondo (1933-2021). Este ano, poderia homenagear Jean Louis Trintignant (1932-2022), que morreu no último dia 17 de junho, mas a programação já estava completamente estruturada. Os dois filmes do núcleo histórico ficam, pois, dedicados a Molière e a um clássico da comédia francesa, o cult “O Papai Noel é um Picareta”. Realizado há exatos 40 anos por Jean-Marie Poiré, “Père Noel Est une Ordure” transformou-se em imenso sucesso de público e ganhou remake nos EUA. Tornou-se símbolo de comédia irreverente-corrosiva graças a seu elenco afiado, a trupe Le Splendid, formada por nomes de grande experiência no teatro de variedades e no cinema (Josiane Balasko, Christian Clavier, Thierry Lhermitte, Anémone, Gérard Jugnot, Bruno Mounot e Roland Giraud).

“Papai Noel é um Picareta”, de Jean-Marie Poiré

“As Aventuras de Molière”, de Laurent Tirard, em parceria com a respeitada diretora teatral Ariane Mnouchkine, não arranhou o sucesso das peças do mestre francês, criador de obras como “O Avarento”, “O Doente Imaginário”, “Tartufo”, “O Burguês Fidalgo”, “Médico à Força”, “O Misantropo”, “Escola de Mulheres”, “As Artimanhas de Scapin”, entre tantas outras.

A trama do filme, apesar do pesares, é das mais ardilosas. Molière (Romain Duris) é um jovem encenador que zomba da nobreza em suas montagens teatrais e leva plateias populares ao riso aberto. Sua fama e a de sua trupe vão crescendo junto ao público, mas ele acaba encarcerado, por não pagar as devidas taxas ao governo. Um aristocrata, o Monsieur Jourdan (o hilário Fabrice Luchini) pagará a dívida pelo dramaturgo, mas exigirá, em troca, que este lhe empreste seus talentos para que possa conquistar a bela Célimène (Ludivine Sagnier).

Seleção:

. “Um Pequeno Grande Plano” (La croisade). De Louis Garrel. Comédia (1h06). Com Lionel Dray, Laetitia Casta, Joseph Engel. Abel e Marianne descobrem que seu filho de 13 anos, Joseph, está vendendo seus bens mais valiosos para financiar um projeto ecológico na África. Eles rapidamente entendem que Joseph não é o único, existem centenas de crianças ao redor do mundo em uma missão para salvar o planeta.

. “O Acontecimento” (L’événement). De Audrey Diwan. Drama (1h40). Com Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein, Luàna Bajrami – Anne, uma estudante promissora, engravida. Ela decide abortar, pronta para fazer qualquer coisa para se livrar do bebê e ser dona de seu próprio corpo e de seu futuro. Ela se envolve sozinha em uma corrida contra o tempo, desafiando a lei.

. “O Próximo Passo” (En corps). De Cédric Klapisch. Drama (1h57). Com Marion Barbeau, Hofesh Shechter, Denis Podalydès – Elise, uma jovem e promissora bailarina clássica, se machuca em uma apresentação após flagrar a traição do namorado. Apesar dos especialistas dizerem que ela não conseguirá mais dançar, Elise vai lutar para se recuperar, buscando novos rumos no mundo da dança contemporânea.

. Peter von Kant – De François Ozon. Comédia, drama (1h26). Com Denis Ménochet, Isabelle Adjani, Khalil Ben Gharbia, Hanna Schygulla.– Peter von Kant é um diretor de cinema de sucesso e mora com seu assistente Karl, a quem gosta de maltratar e humilhar. Sidonie, uma grande atriz que foi sua musa por muitos anos, o apresenta a Amir, um belo e modesto jovem. Peter se apaixona por Amir e se oferece para dividir seu apartamento com ele e ajudá-lo a entrar na indústria cinematográfica. O plano funciona, mas assim que ganha fama, Amir termina com Peter, deixando-o sozinho para enfrentar seus demônios.

. “Contratempos” (A plein temps), de Eric Gravel, drama (1h28). Com Laure Calamy, Anne Suarez, Geneviève Mnich, 14 anos — Julie luta sozinha para criar seus dois filhos no subúrbio e manter seu emprego em Paris. Quando, finalmente, consegue uma entrevista para um cargo correspondente às suas aspirações, uma greve geral eclode, paralisando o transporte. Ela então embarcará em uma corrida frenética para salvar seu emprego e sua família.

. “O Mundo de Ontem” (Le monde d’hier). De Diastème. Drama (1h29). Com Léa Drucker, Denis Podalydès, Alban Lenoir – Elisabeth de Raincy, presidente da República, optou por se aposentar da vida política. Três dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais, ela fica sabendo por seu secretário-geral, Franck L’Herbier, que um escândalo do exterior atrapalhará seu sucessor designado e dará a vitória ao candidato de extrema-direita. Eles têm três dias para mudar o curso da história.

. “O Segredo de Madeleine Collins” (Madeleine Collins). De Antoine Barraud. Drama (1h42). Com: Virginie Efira, Quim Gutiérrez, Bruno Salomone — Judith leva uma vida dupla entre a Suíça e a França, com dois amantes e filhos diferentes. Por um lado Abdel, com quem cria uma menina, por outro Melvil, com quem tem dois meninos mais velhos. Pouco a pouco, esse frágil equilíbrio de mentiras, segredos e idas e vindas começa a se despedaçar.

. “Os Jovens Amantes” (Les jeunes amants). De Carine Tardieu. Drama (1h54). Com Fanny Ardant, Melvil Poupaud, Cécile de France – Dois amantes se reencontram no corredor de um hospital, 15 anos após o primeiro contato. Shauna tem 71 anos, enquanto Pierre tem 45. Opostos, mas hipnotizados um pelo outro, eles se reconectam, enquanto Shauna, que já é mãe, avó e viúva, quer reafirmar que ainda é uma mulher e que a diferença de idade entre eles não importa.

. “Entre Rosa” (La Fine Fleur) – De Pierre Pinaud, comédia (1h36). Com Catherine Frot, Melan Omerta, Fatsah Bouyahmed – Eve Vernet foi grande criadora de rosas. Hoje, à beira da falência, vê seu negócio prestes a ser comprado por concorrente. Véra, sua fiel secretária, propõe solução inusitada: contratar três presidiários em fase de reinserção na sociedade, desconhecem a jardinagem. Embora tudo pareça separá-los, eles embarcam juntos em aventura para salvar a pequena fazenda.

. “Esperando Bojangles” (En attendant Bojangles). De Régis Roinsard. Comédia e drama (2h05). Com Romain Duris, Virginie Efira, Grégory Gadebois – Camille e Georges dançam todas as noites ao som de sua música favorita, “Mr Bojangles”. Em sua casa, só há espaço para diversão, fantasia e amigos. Até que um dia Camille, uma mulher hipnotizante e imprevisível, desce mais fundo em sua própria mente, e Georges e seu filho Gary precisam mantê-la segura.

. “Golias” (Goliath). De Frédéric Tellier. Drama, Suspense (2h02). Com Gilles Lellouche, Pierre Niney, Emmanuelle Bercot — France, professora de esportes durante o dia, trabalhadora à noite, é ativista contra o uso de pesticidas. Patrick, obscuro e solitário advogado parisiense, é especialista em direito ambiental. Mathias, lobista brilhante e apressado, defende os interesses de um gigante agroquímico. Seguindo o ato radical de uma pessoa anônima, esses três destinos, que nunca deveriam ter se cruzado, colidem e se inflamam. Sucesso comercial na França.

. “Kompromat”. De Jérôme Salle – Drama, Suspense (2h07). Com Michael Gor, Gilles Lellouche, Joanna Kulig. A espetacular fuga de um diretor da Aliança Francesa da Sibéria. Vítima de uma trama orquestrada pelo FSB (Serviço Federal de Segurança da Rússia), esse intelectual terá que se transformar em homem de ação para escapar de seu destino.

. “Querida Léa” (Chère Léa). De Jérôme Bonnell – Comédia, drama (1h30). Com Grégory Montel, Grégory Gadebois, Anaïs Demoustier – Depois de uma noite de bebedeira, Jonas decide visitar sua ex-namorada Léa, por quem ainda é apaixonado. Contudo, ele é rejeitado. Atormentado, Jonas vai ao café do outro lado da rua para escrever-lhe uma última carta de amor, perturbando assim o seu dia de trabalho e despertando a curiosidade do dono do café.

. “Sentinela do Sul” (Sentinelle sud). De Mathieu Gérault. Drama (1h37). Com Niels Schneider, Sofian Khammes, India Hair — Após uma operação clandestina que dizimou sua unidade, o soldado Christian Lafayette está de volta à França. Enquanto tenta retomar uma vida normal, logo se envolve no tráfico de ópio para salvar seus dois irmãos de armas sobreviventes.

. “Um Herói” (Un héros) – De Asghar Farhadi. Drama (2h08). Com Amir Jadidi, Mohsen Tanabandeh, Fereshteh Sadre Orafaee. Rahim está na prisão devido a uma dívida que não conseguiu pagar. Durante uma licença de dois dias, ele tenta convencer o seu credor a retirar a sua queixa contra o pagamento de parte da quantia. Mas as coisas não correm de acordo com o plano…

. “King – Meu Melhor Amigo” (King). De David Moreau. Aventura para toda a família (1h45). Com Gérard Darmon, Lou Lambrecht, Léo Lorléac’h – King, um filhote de leão traficado, foge do aeroporto e encontra abrigo na casa de Inès e Alex, de 12 e 15 anos. Os irmãos bolam um plano maluco: levar King de volta para casa, na África.

Núcleo Histórico:

. “Papai Noel é um Picareta” (Le Père Noel est une ordure) – De Jean-Marie Poiré. Comédia de 1982 (1h23) – A linha direta parisiense de SOS é interrompida na véspera de Natal pela chegada de personagens marginais excêntricos que causam desastres em cadeia. Este filme é a adaptação de peça de mesmo nome, criada em 1979.

. “As Aventuras de Molière” (Molière) – De Laurent Tirard e Ariane Mnouchkine Drama e romance de 2007 (2h00) – Em 1644, Molière tem apenas 22 anos. Cheio de dívidas e perseguido por oficiais de justiça, ele insiste em encenar tragédias nas quais é inegavelmente ruim. E então um dia, depois de ser preso por credores impacientes, ele desaparece.

 

13ª edição do Festival Varilux de Cinema Francês
Data: 21 de junho a 6 de julho
Com exibição de 17 obras inéditas e recentes da filmografia francesa e dois filmes no núcleo histórico (sendo um deles em comemoração aos 400 anos do dramaturgo francês Molière)
Cidades confirmadas: Afogados de Ingazeira (PE), Aracaju (SE), Araraquara (SP), Arcoverde (PE), Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Botucatu (SP), Brasília (DF), Campinas (SP), Campo Grande (MS), Caruaru (PE), Caxias do Sul (RS), Cotia (SP), Cuiabá (MT), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Fortaleza (CE), Garanhuns (PE), Goiânia (GO), Indaiatuba (SP), João Pessoa (PB), Jundiaí (SP), Londrina (PR), Maceió (AL), Manaus (AM), Maringá (PR), Natal (RN), Niterói (RJ), Ouro Preto (MG), Palmares (PE), Palmas (TO), Pelotas (RS), Petrolina (PE), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Ribeirão Preto (SP), Rio Branco (AC), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Santos (SP), São Carlos (SP), São Luis (MA), São Paulo (SP), Teresina (PI), Vitória (ES), Volta Redonda (RJ)
A programação e a lista de cidades e de cinemas participantes será continuamente atualizada no site do festival, variluxcinefrances.com/2022
O valor do ingresso é o já cobrado por cada exibidor

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