Drama “Tinnitus” e suspense chileno encerram competição de Gramado
Foto: Equipe de “Tinnitus” © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
A sorte está lançada. Neste sábado, à noite, o Canal Brasil, a TV Educativa do Rio Grande do Sul e a internet vão transmitir a festa de premiação da quinquagésima edição do Festival de Cinema de Gramado.
Os quatro concorrentes finais foram exibidos na noite de quinta-feira. O longa brasileiro “Tinnitus”, do paulistano Gregório Graziosi, o chileno “Immersión”, de Nicolás Postiglione, e o curtas “Um Tempo prá Mim”, da gaúcha Paola Mallman, e “Socorro”, da carioca Susanna Lira, tiveram boa acolhida do público.
Atrás do estranho nome “Tinnitus” está um mal que perturba, terrivelmente, a audição de seus portadores. Um zumbido (ou sibilo) capaz de transformar o ouvido de uma pessoa em alucinante fábrica de sons. É deste mal que sofre a protagonista do longa paulistano, Marina Lenk, atleta dedicada a saltos ornamentais (papel da luso-brasileira Joana De Verona). Ela forma dupla com Luísa Nascimento (Indira Nascimento), jovem e dedicada atleta, apaixonada pelas piscinas.
O mal de Tinnitus impede que Marina Lenk siga dedicada aos saltos ornamentais. Para não abandonar a água, seu elemento, ela se transforma em “sereia”, atração de show num aquário. Continua, porém, sonhando com as plataformas, ponto de partida de sua verdadeira paixão, os saltos ornamentais.
Marina liga-se emocionalmente ao médico que cuida de seu mal, o Dr. Santos (André Guerreiro Lopes), e participa, sob a supervisão dele, de roda de terapia, junto a outros portadores do mesmo distúrbio (caso de um curador de Museu, vivido pelo veterano Antônio Pitanga). A “sereia” acabará se envolvendo com outra jovem atleta, Teresa Klotz (Alli Willow), com quem terá ardente relacionamento amoroso.
A trama do filme foi construída por Graziosi, diretor de “Obra”, detentor do Trofeu Fipresci no Festival do Rio, pelo cineasta Marco Dutra (“Trabalhar Cansa”) e pelo roteirista Andres Julian Veras. A trinca escreveu várias versões do roteiro. O que foi filmado se passa numa São Paulo multicultural na qual se destacam ambientações ‘cult’ como a principal rua do bairro da Liberdade, com suas vistosas lanternas japonesas, o festejado palco-corredor do Teatro Oficina, o Masp e os arranha-céus da maior metrópole da América do Sul.
Há muito tempo não víamos a capital paulista tão bem fotografada (pelo português Rui Poças, o mesmo de outro concorrente gramadense, “O Clube dos Anjos”). O elenco, escolhido a dedo, veio de Portugal, do casting pernambucano de “Bacurau”, do Oficina-Usina-Uzona. E também de Minas Gerais (Lira Ribas), de São Paulo (Thaia Perez, Sabina Greve) e da Bahia-Rio (Antônio Pitanga, na pele de um diretor de Museu, que lembra um Emanuel Araújo vestido com requinte fashion).
A trama de “Tinnitus” é rarefeita. Os conflitos também. O que interessa ao cineasta Graziosi é compor um mundo de sons alucinantes, que perturbam a vida da praticante de saltos ornamentais, e desenhar uma São Paulo com a plasticidade de um filme de Kurosawa, citado metalinguisticamente na narrativa.
Aliás, qualquer cinéfilo perceberá muitas referências no segundo longa de Graziosi. Até a Kon Ichikawa, outro tótem do cinema japonês, que filmou as Olimpíadas de Tóquio, em 1964. Quem viu “Obra”, o primeiro longa do realizador, sabe que ele é um formalista contumaz. Em nome (ou busca) de imagem de beleza anestesiante, ele é capaz de sacrificar a emoção do espectador. E o envolvimento deste com seu universo narrativo.
No debate, em Gramado, ao qual Graziosi compareceu com sua trinca de atrizes (Joana, Indira e Alli), com Antônio Pitanga, o roteirista Andres Julian Vera e o distribuidor Jean-Thomas Bernardini, o realizador forneceu respostas sólidas (qualificadas pela atriz luso-brasileira como “verdadeiras dissertações de mestrado”) e insistentes (complementava até as respostas a perguntas dirigidas a seus atores).
Sobre um possível formalismo que esfriaria a emoção de seus personagens, Graziosi ponderou: “eis uma questão que envolve subjetividade – o que é emoção? Realizamos um filme para que a emoção dos atores aflorasse. Mas, para mim, a emoção pode vir do som (no caso, elaboradíssimo, sob assinatura de Fábio Baldo) e da música (do artista tcheco David Boulter)”. Para Graziosi, “som, música, imagens, mise-en-scène, tudo está posto no filme para servir aos personagens e a seus intérpretes”.
Os atores contaram suas ricas histórias cinematográficas. Pitanga relembrou seu primeiro encontro com o então jornalista Glauber Rocha, que fazia a cobertura jornalística do filme “Bahia de Todos os Santos” (Trigueirinho Neto, 1959), início da aventura do jovem ator no cinema (hoje ele soma 80 longas-metragens). “Só nestes tempos de pandemia, atuei nuns dez filmes, creio que ‘Tinnitus’ é o décimo-primeiro”.
O ator baiano pediu, bem-humorado, elogios aos jornalistas e críticos, pois mesmo octogenário, quer participar de muitos outros filmes, além de dirigir “Malês”, que contará com Indira Nascimento no elenco (ela estará também na novela de Glória Perez, que vai substituir “Pantanal”).
Por fim, Gregório Graziosi narrou experiência singular. Ele participou do Festival de Karlovy-Vary, na República Tcheca. Na hora de debater o filme com o público, lembrou que um de seus atores (Antônio Pitanga) participara do festival 60 anos atrás. “Seis anos atrás”, corrigiu um interlocutor. “Não” — reafirmou — “há seis exatas décadas, pois Antônio Pitanga esteve em Karlovy-Vary com Glauber Rocha, para juntos apresentarem ‘Barravento’” (1961). Os participantes do debate gaúcho não se contiveram: explodiram em palmas para festejar Antônio Sampaio, o Pitanga.
O mesmo público festejou a equipe chilena de “Immersión”, sintético thriller ambientado majoritariamente num iate, em remoto lago no sul do Chile, e, parcialmente, em mansão abandonada em lugar ermo.
O cineasta estreante Nicolas Postiglione, seu produtor Moisés Sepúlveda (também roteirista junto com o dramaturgo argentino Agustín Tô Toscano) e a jovem atriz Consuelo Carreño relembraram as condições de feitura do filme, de apenas 72 minutos.
O protagonista absoluto da trama, o astro Alfredo Castro (do laureado, com o Leão de Ouro de Veneza, “De Longe te Observo”, de Lorenzo Vigas), não pôde estar em Gramado. Se estivesse aqui na Serra Gaúcha, reencontraria suas parceiras em “Segredos em Família” — Paulina García e Consuelo Carreño.
Sem o intérprete do pai que leva suas duas filhas a passeio de iate para que elas visitem, com ele, arruinada mansão de veraneio da família, o debate fruiu com respostas sólidas de Nicolás, Moises e Consuelo.
A trinca lembrou as terríveis condições de filmagens, num pequeno iate, no meio de lago tenebroso. O que se vê são três pescadores da região (“que vive apavorada por atos selvagens dos Mapuches”, como assegura o pai), naufragando numa pequena embarcação. Ao invés de socorrê-los, o dono do iate prefere se safar com as filhas. Uma delas, a caçula e mais rebelde (Consuelo Carreño), é tomada pela indignação. Tanto faz, e insiste, que o pai, mesmo contrariadíssimo, presta socorro a dois passageiros (o terceiro desapareceu).
Amedrontado com o tipo físico dos socorridos (morenos, de dentes estragados e portadores de dois pacotes misteriosos, que salvaram do naufrágio), o pai entra em transe. Teme por sua vida e pela das filhas.
A luta de classes se estabelece no pequeno iate. O genitor, de classe média alta, teme pelo que pode acontecer, já que enxerga os pescadores como bandidos. Vê nos pescadores o mal presentificado.
A filha mais nova, ajudada pela mais velha e mais sensata, tenta acalmar a fúria paterna. Em momento de desespero, ela comete ato insensato. Aí o pai exige que os pescadores ajudem a solucionar o impasse.
Numa reviravolta, as moças pedem ao pai que deixe os dois rapazes na velha mansão. O proprietário, que divide o imóvel abandonado com um irmão, não aceita a sugestão das jovens. Quer preservar seu patrimônio e levar os pescadores ao Comissariado, para que sejam presos.
O desfecho da trama é inesperado. E mostra que Nicolás Postiglione, já em seu filme de estreia, revela talento dos mais promissores. Devemos permanecer atentos a seus próximos trabalhos. O cineasta mostrou, também, que sabe trabalhar em grupo. Seu roteiro nasceu de argumento dele, desenvolvido em parceria com Sepúlveda (“Las Analfabetas”). Foram feitos os primeiros tratamentos, até sentirem necessidade de contar com outro colaborador. Buscaram, então, ajuda de Agustín Tosano, dramaturgo e cineasta argentino.
O trabalho a seis mãos resultou em personagens complexos e matizados. E num thriller envolvente, que deve ser lançado mundialmente por uma grande plataforma de streaming (diretor e produtor não declinaram o nome, mas tudo leva a crer que seja a Netflix).
Os dois curtas da noite, “Um Tempo pra Mim” e “Socorro”, renderam debates entusiasmados. O gaúcho se passa em comunidade indígena, na região missioneira (nação Guarani). Sua protagonista, Florência, fica menstruada pela primeira vez. No mesmo dia ocorrre eclipse da Lua. Criada pela avó, a adolescente é isolada segundo os costumes de sua nação. No elenco está a cineasta Guarany Patrícia Ferreira, companheira de Ariel Ortega, dupla que assina o fascinante “As Bicicletas de Ñaderu”, realizado onze anos atrás e admirado por Vincent Carelli e todos os integrantes do importantíssimo coletivo Vídeo nas Aldeias.
Paola Mallman, que é pesquisadora, cineasta e mestre em Antropologia, prepara um longa-metragem ligado, ainda à presença da mulher indígena.
O curta “Socorro”, da experiente Susanna Lira, de 47 anos, com 20 longas-metragens no currículo (entre eles, “Torre das Donzelas”) e duas séries badaladíssimas (sobre os ex-jogadores Casagrande e Adriano Imperador) foi feito na cara e na coragem, sem nenhum financiamento.
“Realizamos um filme-manifesto”, contou a diretora, ao lado de sua protagonista, a quilombola Maria do Socorro, de Barcarena, no Pará. Ela luta incansavelmente contra a contaminação dos rios e igarapés de sua região. Luta como uma Quixote de saias, contra a Hidro Norte, poderosa mineradora, que vem enchendo as águas e lençóis freáticos do estado amazônico de alumínio, mercúrio e bauxita. Enfim, de elementos que a ativista de 56 anos e pele negra define como “substâncias cancerígenas e assassinas”.
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