Laís Bodanzky descontrói “herói” da Independência

Por Maria do Rosário Caetano

Quem for ao cinema, na semana do bicentenário da Independência, esperando encontrar Cauã Reymond encarnado no corpo viril e sedutor de Dom Pedro I, traindo a Imperatriz com a fogosa Marqueza de Santos, vai decepcionar-se.

Afinal, “A Viagem de Pedro”, sexto longa-metragem de Laís Bodanzky – estreia desta quinta-feira, primeiro de setembro – foi concebido para “tirar o verniz da História, demolir estátuas”. Ou, mais ainda, para “desvelar o homem tóxico”, papel que “o libertador” Pedro I (o Pedro IV português) realmente desempenhou ao longo de seus curtos 35 anos de vida. Não é à toa que as primeiras imagens de “A Viagem de Pedro” mostram estátua de Napoleão Bonaparte, o imperador francês, em frio bronze.

O que o público verá ao longo de enxutos 96 minutos nada tem a ver com o ingênuo folhetim construído por Carlos Coimbra (“Independência ou Morte”, 1972), com Tarcísio Meira protagonizando feitos cívicos de “libertador” priápico. Laís, que construiu sozinha o roteiro, mergulhou com cabeça arejada em diversas fontes históricas e contaminou-se de preocupações de seu tempo. Dirigiu ao passado um olhar renovado. Leu e fertilizou-se até com o livro “Na Minha Pele”, do baiano Lázaro Ramos.

Em Gramado, em concorrido debate sobre o filme, a cineasta lembrou o impacto causado por revelação do ator criado em comunidade negra (na ilha de Itaparica). Ele, até a adolescência, nunca se dera conta de sua negritude. Já ao chegar a Salvador percebeu, pelo olhar alheio, que era negro. E que só mereceria atenção se fosse engraçado.

A cineasta contou, também, que assistiu ao filme “Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás” (Renato Barbieri, 1998). Consultou diversas fontes literárias, historiográficas e audiovisuais. E fez questão de ouvir seus atores. Citou, em Gramado, contribuição importante da atriz afro-lusitana Isabél Zuaa, intérprete de Dira, personagem embarcada na caravela britânica que leva Pedro I do Brasil a Portugal, na longa viagem que dá título ao filme.

“Dira teria que viver uma passagem de terrível destino”, rememorou Laís. “A atriz me disse que seu corpo se contraía, não queria fazê-lo como estava no roteiro. Conversamos, e veio o diálogo ‘eu já atravessei esse mar’ (o Atlântico). Nasceu, então, solução que continha uma esperança, não o reforço de que corpos negros sempre devem se dar mal”.

Para provar que está em sintonia fina com as lutas que marcam o cinema contemporâneo, Laís Bodanzky abriu sua articulada fala no debate gramadense, sem que ninguém a inquirisse, avisando que, se hoje analisado, “Bicho de 7 Cabeças”, não passaria no Teste Bechedel. E detalhou por quê: “no meu primeiro longa não há duas personagens femininas, que tenham nomes, conversando sobre algo que não seja sobre homens”. E externou, em seguida, sua fina sintonia com o “Vidas Pretas Importam”.

Em “A Viagem de Pedro”, há significativa coletividade de personagens negros. Entre eles, o Contra-Almirante Lars (o ator luso-guineense Welket Bunguê) e Sergio Laurentino, o chefe de cozinha (Troféu Redentor de melhor ator coadjuvante no Festival do Rio).

A narrativa de Laís Bodanzky situa-se em 1831, quando Pedro (Cauã Reymond), o ex-imperador do Brasil, busca forças físicas e emocionais para enfrentar seu irmão, Miguel (Isac Graça), que usurpou seu reino, o ainda poderoso Reino de Portugal e Algarves (com ricas colônias na África).

O filme se passa inteiro no Oceano Atlântico, a bordo de fragata britânica na qual se misturam membros da Corte, oficiais militares, serviçais e escravizados, numa babel de línguas e de posições sociais. Pedro se vê doente e inseguro. Entra na embarcação em busca de um lugar e uma pátria. “Encontra-se, na verdade” – define a diretora –, “em busca de si mesmo”.

O poderoso Dom Pedro I, responsável por escrever, em 1824, a primeira Constituição do Brasil imperial, considerada liberal e progressista para os padrões da época, é visto em seu retorno ao país de origem, praticamente como um fugitivo (abdicara do trono brasileiro em 1831), rejeitado pela população adotiva, nove anos depois de proclamar a Independência. E sem gozar de nenhum apreço em Portugal, pois libertara do jugo lusitano a mais extensa (de dimensões continentais) e rica de suas colônias.

Pela mente em tumulto do imperador-navegante, angustiado por demais, passam lembranças da Imperatriz Leopoldina (1797-1826), austríaca que morrera tão jovem (vivida por Luise Heyer). Sua segunda esposa, Amélia (Victoria Guerra), está a seu lado. E ele não se esquece da fogosa Domitila, a Marquesa de Santos (Rita Wainer).

Protegido pelos aliados ingleses, que comandam a caravela, Dom Pedro regressa a Portugal para tomar do irmão Miguel o Reino ursurpado. Uma história que nós, brasileiros, desconhecemos. Haverá guerra e o ex-imperador brasileiro, conhecido como “o rei soldado”, até conhecerá triunfo temporário, mas morrerá três anos depois, antes de completar 36 anos.

O drama multirracial de Laís Bodanzky reuniu atores brasileiros, portugueses, africanos, irlandeses e alemães. E técnicos brasileiros, espanhóis e lusitanos. Profissionais de primeira linha como o diretor de arte anglo-brasileiro Adrian Cooper, o fotógrafo espanhol Pedro J. Márquez, a figurinista Marjorie Gueller (em parceria com Joana Porto e Patricia Dória), os design de som Miriam Biderman e Ricardo Reis. Enfim, profissionais de primeira linha.

A fragata Cisne Branco, construída para comemorar o quinto centenário do “Descobrimento” do Brasil serviu de principal cenário do épico de coloração angustiada. As filmagens foram feitas durante viagem de Salvador a Arraial do Cabo, no estado do Rio. Houve, ainda, filmagens, no Palácio D’Ajuda e de Queluz, em Portugal, e nas Ilhas de Faial e dos Açores.

“A Viagem de Pedro” custou 8 milhões de reais e somou esforços de Cauã Reymond, que abraçou o projeto desde sua origem, de Bianca Villar, Fernando Fraiha, Karen Castanho, Laís Bodanzky, Luis Urbano, Luiz Bolognesi, Mario Canivello e Sandro Aguillar. Fernando Meirelles assumiu o posto de produtor-associado, assim como a Globo Filmes.

 

A Viagem de Pedro
Brasil-Portugal, 96 minutos, 2022
Direção e roteiro: Laís Bodanzky
Elenco: Cauã Reymond, Luise Heyer, Victoria Guerra, Isabél Zuaa, Rita Wainer, Francis Magee, Welket Bunguê, João Lagarto, Luísa Cruz, Isac Graça, Luiza Gattai, Dirce Thomas, Marcial Macome, Sergio Laurentino, Denangowe Calvin
Montagem: Eduardo Gripa
Produção: Biônica Filmes, Buriti, O Som e a Fúria
Coprodução: Globo Filmes
Distribuição: Vitrine Filmes

 

FILMOGRAFIA
Laís Bodanzky (São Paulo, SP, 23 de setembro de 1969)

1999 – “Cine Mambembe” (com Luiz Bolognesi)
2000 – “Bicho de Sete Cabeças”
2007 – “Chega de Saudades”
2010 – “As Melhores Coisas do Mundo”
2017 – “Como nossos Pais”
2022 – “A Viagem de Pedro”

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