Godard, o subversivo, depois de viver a vida, dá adeus à linguagem e ao cinema
Por Maria do Rosário Caetano
“Coveiro do cinema ou gênio inovador?”
Com essas expressões antitéticas, o dicionarista Jean Tullard abre o verbete do suíço-francês Jean-Luc Godard, em seu grosso volume dedicado aos diretores de cinema.
Um dos mais importantes cineastas da história planetária das imagens, Godard morreu na madrugada desta terça-feira, 13 de setembro, em sua casa, em Rolle, na Suíça, aos 91 anos. Deixa legado do tamanho de gênios como Da Vinci, Michelangelo, Cervantes, Shakespeare e Picasso. O tempo há que mostrar aos que não o compreenderam que ele foi um transgressor, um inventor, um inquieto, um transformador. Sua contribuição ao cinema é imensurável.
É fácil responder à pergunta de Tullard. O mais francês dos suíços foi um gênio inovador. Não um coveiro do cinema. Sim, ele esticou até mais não poder os limites da linguagem do cinema narrativo. Enfureceu os que não mais entendiam seus filmes. Aqueles que, intrigados, perguntavam, ao deparar-se com suas últimas invenções: “mas isto é cinema?” Depois da fase Nouvelle Vague, que ele fundou com os “Jovens Turcos”, crias de André Bazin (1918-1958) na Cahiers du Cinéma, Godard distanciou-se dos companheiros católicos até a medula e abraçou o marxismo-maoista. Ingressou na Célula Dziga Vertov e, com Jean-Pierre Gorin, realizou filmes coletivos, que não chegaram (nunca chegariam) aos circuitos comerciais. Viveu por dez anos na mais radical das militâncias políticas. E, por uns três anos, transformou a Cahiers du Cinéma numa revista sisuda, diagramada sem fotos de astros de Hollywood ou estrelas gaulesas, sem Catherines, Belmondos ou Delons. Glauber Rocha esteve com ele num filme bastante conhecido (ao menos entre cinéfilos) desse período: “Vento Leste”. Aquele da encruzilhada ideológico-política.
Depois, em 1980, regressou ao cinema. Ou seja, às salas do circuito comercial. Com “Salve-se Quem Puder, a Vida”. Para quatro ano depois, entre nós (vergonha alheia), em plena Nova República, enfrentar interdição em todo território nacional. O governo Sarney, atendendo a pedido da Igreja Católica proibiu a exibição de “Je Vous Salue, Marie” (Ave Maria). Nem a Igreja, nem Sarney, nem os censores entenderam nada.
Os que haviam amado “Acossado”, “O Desprezo” (Brigitte Bardot no auge de sua beleza e sensualidade) e, principalmente “Viver a Vida” (o filme-poema, no qual a dinamarquesa Anna Karina homenageia Falconetti, a Joana D’Arc de Dreyer), começaram a afastar-se de Godard. Achavam que os filmes dele estavam ficando “cabeçudos” demais. E era verdade. Godard se transformava, cada vez mais, num pensador do cinema, num ensaísta, num filósofo das imagens. Ver seus filmes era assumir que, dentro de uma sala de cinema, seríamos convocados a pensar. Era pegar ou largar.
E ele continuou produzindo (pensando) muito. E o cinema, aquele que ainda era (é) espetáculo, continuava (felizmente) interessado nele. A amiga de primeira hora, a belgo-francesa Agnès Varda (1928-2019), aquela que o filmou (a ele e a Anna Karina) no finalzinho dos anos 1950, num delicioso curta-metragem – “Les Fiancés du Pont Mac Donald (ou “Mefiéz-Vous des Lunettes Noires”) – quis encontrá-lo em 2016, durante as filmagens de “Visages, Villages”. Queria apresentá-lo a JR, co-diretor de novo documentário em processo de filmagem. E, claro, filmar o encontro. Acertou tudo com o diretor de “Les Carabiniers”. Quando chegou à casa suíça do amigo, encontrou apenas um bilhete pregado no portão. Nada feito.
Maldade do velho amigo com a única mulher da Nouvelle Vague, clube essencialmente masculino (Truffaut, Rohmer, Chabrol, Rivette, Domarchi, Doniol-Valcroze)?
Não. Godard sempre foi excêntrico. Brigou feio com muitos amigos. Seu rompimento com Truffaut foi apoteótico, público, escandaloso. Está narrado em detalhes na biografia que Antoine de Baecque e Serge Toubiana escreveram de Truffaut (Record, 1998). Mas era capaz de posicionamentos luminosos. No campo do direito autoral, então, era único. Nunca impediu ninguém de usar trechos de seus filmes.
Nada fez quando Michel Hazanavicius, premiado com o Oscar de melhor filme por “O Artista” (2016), transformou o livro “Le Redoutable” (temível, inquietante), de ex-companheira dele, Godard, a atriz Anne Wiazemsky, no filme “O Formidável” (com Louis Garrel na pele do cineasta, já com cabelos ralos, e Stacy Martin como Anne). Isto nos tempos de “A Chinesa”, do Maio de 68. A atriz mostra (no livro), um Godard ciumento até a medula. Capaz de tentar o suicídio, qual um amante latino, quando ela apareceu nua no longa “A Semente do Homem”, de Marco Ferreri.
Quem quiser ver filmes sobre Godard, terá muitas opções. Um deles, imperdível, pertence à série “Un Film & Son Époque” (no Brasil, no Canal Curta!), que traz os bastidores das filmagens de “O Desprezo”. Dirigido por Antoine de Gaudemar e Serge July (2009), a narrativa só perde para a obra-prima da série – os bastidores de “La Dolce Vita”, de Fellini.
Outra excelente opção é “Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague” (Deux de la Vague), de Emmanuel Laurent, com roteiro de Antoine de Baecque. Um magnífico documentário, sem nenhuma “cabeça-falante”. O diretor do filme, quando visitou o Brasil, ao debater seu documentário com o público, na Reserva Cultural, avisou: “não queria nenhum senhor idoso pontificando sobre um movimento jovem, que trazia o novo até no nome”. Então, “não fui atrás de ninguém para falar sobre a Nouvelle Vague (a Nova Onda). Busquei imagens da época, de Godard e Truffaut, de Jean-Pierre Léaud, ator de ambos, de Langlois, de Anna Karina, de Rohmer, de Chabrol, de Piccoli, todos na época em que os filmes foram feitos e a vaga ondulava”.
Outro clássico é um documentário da série “Cineastas de Nosso Tempo”. Um diretor escolhia um colega de ofício. Godard escolheu entrevistar Fritz Lang. O resultado é o documentário “O Dinossauro e o Bebê”. O alemão representa o dinossauro, o cineasta que tem muito a contar, já que vinha da era muda. Godard seria o bebê, aquele que, em 1967, com menos de dez anos de carreira, tinha muito a aprender. Um delicioso encontro entre dois “topetudos” teimosos.
Não devem ser esquecidos filmes que citam sequências godardianas. Escolhe-se um aqui: “Os Sonhadores”, de Bertolucci (2005 ), com Louis Garrel, Eva Green e Michael Pitt. Em determinado momento, os gêmeos franceses Theo e Isabelle levam o amigo americano Mathew para um passeio no Louvre e revivem a famosa cena de “Bande à Part”, aquela em que os protagonistas Odile, Franz e Arthur apostam corrida no mais famoso dos museus franceses.
E quantas vezes revimos outra cena do mesmo “Bande à Part”, em que Anna Karina, Sammy Frei e Claude Brasseur dançam num bar ao som aliciante de composição de Michel Legrand? Quantas cenas de antologia os filmes de Godard nos legaram?
E, por fim, vale registrar depoimento do crítico e professor da Universidade Federal do Ceará, Marcelo Ikeda, sobre o cineasta franco-suíço: “Godard é o símbolo máximo de tudo o que representou o cinema moderno, nessa utopia de transformar não apenas o cinema, mas também o mundo, e que essa revolução passava necessariamente pela invenção de uma outra linguagem. Godard uniu pensamento e criação como poucos (Glauber, Eisenstein, Pasolini). E continuava ativo. Nunca se vendeu ao mercado, nunca fez concessões em troca de bugigangas como reconhecimentos fáceis, trofeus ou prêmios em festivais. Vai fazer muita falta num mundo em que o cinema cada vez mais se tornou uma mera mercadoria. Símbolo máximo do cinema como invenção e como resistência”.
Principais filmes:
Fase da Nouvelle Vague
1960 – “Acossado” (roteiro de Truffaut)
1961 – “Uma Mulher é Uma Mulher”
1962 – “Viver a Vida”
1963 – “O Desprezo”
1964 – “Bande à Part”
1965 – “Alphaville”
1965 – “Pierrot le Fou”
1967 – “Made un USA”
1967 – “A Chinesa”
1968 – “Weekend à Francesa”
Fase na Célula Dziga Vertov
(Filmes coletivos realizados de 1969 a 1978)
. “Vento Leste” (com Glauber Rocha-ator)
. “Pravda”
. “As Lutas Ideológicas na Itália”
. “Jusqu’à la Victoire”
. “Vladimir et Rosa”
. “Tout Va Bien”
. “Letter To Jane” (Carta a Jane Fonda)
. “Investigacion of a Still” (todos acima com J.P. Gorin)
. “Numero Deux”
. “Sur et Sous la Communication”
. “Comment Ça Va”
. “Ici et Ailleurs”
. “France/Tour/Detour”Deus Enfants” (todos em co-direção com Anne-Marie Miéville)
Fase do regresso aos cinemas e festivais
1980 – “Salve-se Quem Puder, a Vida”
1982 – “Paixão”
1983 – “Prenome: Carmen”
1985 – “Je Vous Salue, Marie”
1986 – “Detetive”
1990 – “Nouvelle Vague” (com Alain Delon)
1993 – “Infelizmente Para Mim” (com Gérard Depardieu)
Fase ensaístico-filosófica
1991 – “Allemagne Neuf Zero”
1993 – 1994 – “JLG por JLG – Auto Retrato de Dezembro”
1993 – “As Crianças Brincam na Rússia”
1995 – “50 + 50 Ans de Cinéma Français”
1996 – “Para Sempre Mozart”
2001 – “Elogio ao Amor”
2001 – “Trechos Escolhidos de História(s) do Cinema”
2004 – “Nossa Música”
2006 – “Passaporte Verdadeiramente Falso”
2010 – “Film Socialism”
2012 – “3x3R”
2013 – “As Pontes de Sarajevo”
2014 – “Adeus à Linguagem”
2018 – “Imagem e Palavra”
Pingback: Godard, o subversivo, depois de viver a vida, dá adeus à linguagem e ao cinema – Brasil Popular