Cine Ceará homenageia Ednardo, cantor e diretor de “Cauim”, filme que “a Censura dessincronizou”
Foto: Joana Limaverde e Ednardo © Luiz Alves
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza
Ednardo, cantor, compositor e integrante do movimento Pessoal do Ceará, reagiu com muito bom humor à escolha de seu nome para receber o Troféu Eusélio de Oliveira, atribuído a personalidades de notória contribuição ao audiovisual brasileiro. Com largo sorriso no rosto, ele afirmou: “chegou tarde, eu já merecia esse reconhecimento há muito tempo!”
Afinal cresceu dentro de salas de cinema, era frequentador do Cine São Luiz, lembra-se de lá ter visto “Anastácia, a Princesa Esquecida” e de aumentar a idade na carteirinha de estudante para ver Norma Bengell, em ousado nu frontal em “Os Cafajestes” e os belos filmes de Brigitte Bardot. Assinou trilhas sonoras, foi ator bissexto, dirigiu filme e participou de documentários de média e longa-metragem.
Numa sala do Hotel Sonata Iracema, repleta de jornalistas e convidados do Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, e na companhia da filha, a atriz Joana Limaverde, diretora da Ceará Film Commission, ele chamou atenção pela magreza, lucidez e, principalmente, pelo bom humor. Depois de enfrentar problemas de saúde, o artista, de 75 anos, está cheio de planos (musicais e cinematográficos), com a memória nos trinques, pronto para o que der e vier.
A Revista de CINEMA destaca aqui as perguntas que encaminhou ao criador do megassucesso “Pavão Mysteriozo”, tema da novela “Saramandaia”, de Dias Gomes (TV Globo, direção de Walter Avancini, 1976) e de mais de 400 músicas (entre elas, sucessos solo ou com parceiros como “Artigo 26”, “Flora”, “A Manga Rosa”, “Beiramar”, “Carneiro”, “Enquanto Engoma a Calça”, “Irmã”, “Rubi”, “Longarinas”, “Pastora do Tempo”, “Lagoa de Aluá” e “Ingazeiras”).
Sua relação com o audiovisual tornou-se notável quando “Pavão Mysteriozo” tornou-se música-tema da novela “Saramandaia”, imenso sucesso da Rede Globo. Nesse exato momento, você participa como um dos principais personagens do longa documental “Pessoal do Ceará Lado A Lado B”, de Nirton Venâncio. Que outras experiências você viveu no cinema?
Foram muitas. Fiz trilhas sonoras, primeiro para teatro, depois para filmes. Fiz a trilha de dois longas-metragens de Pedro Jorge de Castro (“Tigipió” e “O Calor da Pele”). Para Fábio Barreto fiz a banda sonora de “Luzia Homem”, filme no qual interpretei um Cantador e contracenei com a protagonista, interpretada por Cláudia Ohana. Nós cantamos juntos uma das canções do filme (“Arraial”). E dirigi um filme, “Cauim”, do qual fiz o roteiro e me responsabilizei pela produção. Este filme tem uma história singular. Com o sucesso de “Pavão Mysteriozo”, resolvi produzir, em película, um longa que acompanharia o show de lançamento do disco “Cauim” (1978). Minha mulher, naquela época, diz que eu gastei um apartamento e meio naquela empreitada. Era mesmo muito caro produzir em película, mas eu amava o cinema e quis correr o risco. Saí, então, em excursão por vários estados brasileiros, com os músicos, projetor e o filme. Tudo sincronizado. E tudo ia dando certo. Só que, ao chegarmos a Brasília, para show na Piscina Coberta, fomos avisados de que o filme tinha que passar pela Censura. Mas como, perguntei, se já o apresentamos em outras praças, sem nenhum problema? “Aqui, por ser a capital federal, é diferente”, me responderam. O filme sofreu cinco cortes. E, claro, perdeu a sincronia. Sua duração não combinava mais com a duração das músicas. Mesmo assim, resgatei minha cópia, que era única, e a levei para minha casa, no Rio de Janeiro. Com o passar do tempo, por não estar acondicionada nas temperaturas ideais, ela foi degradando. Mas amigos que têm conhecimento técnico me dizem que pelo menos metade pode ser resgatada por processos digitais.
Você pretende, então, realizar um longa documental com suas memórias cinematográficas desse período, incluindo essa sua aventura como diretor?
Quem sabe? Vamos esperar o novo Governo. Se houver condições, poderemos fazê-lo. Até porque participei, também, de um média-metragem do projeto “Massafeira” e de um DVD gravado na Praça Verde, que comemorou meus 40 anos de carreira. Todo este material está disponível. E há meu desejo de reunir minhas trilhas sonoras. Já o fiz num CD master (Ednardo retira da mochila o disco “Trilhos do Cinema”, compilação de seus trabalhos como trilheiro).
Nirton Venâncio está concluindo o longa documental “Pessoal do Ceará Lado A Lado B”, no qual você, Belchior, Fagner, Manassés, Chico Pontes, Fausto Nilo, entre outros, têm grande relevância. Como você vê a importância desse filme e o papel do Pessoal do Ceará como movimento musical?
Olhe, nós éramos, naquele tempo, quase duzentas pessoas. Compositores, poetas, estudantes de arquitetura e filosofia, cineastas amadores, artistas plásticos. Começamos a nos agrupar informalmente lá por 1962. Fomos fazendo nossas canções, nossos poemas, participando de festivais. Mas não ultrapassávamos os limites do Nordeste. Íamos até Natal, às vezes à Recife, com nossos shows e voltávamos ao Ceará. Augusto Pontes (Francisco Augusto Pontes), um dos maiores pensadores, poetas, filósofos, animadores e agitadores do Pessoal do Ceará, dizia que éramos muito desunidos, desorganizados, caóticos até. O máximo que fizemos foi dar uns pulos até a Argentina, numas danações badernistas e etílicas, mesmo em tempo de repressão braba, como a que se verificou no pós-64. Foi Augusto Pontes (Chico Pontes para os brasilienses) quem nos alertou para nossa desorganização. Enquanto, concomitantemente (Ednardo sorri e avisa que só usa este tipo de palavra às quintas-feiras!), os baianos se organizavam no Tropicalismo, em Salvador, com extensão em São Paulo e, depois, no Rio de Janeiro. E o Clube da Esquina fazia o mesmo em Minas Gerais. E não podemos esquecer que a repressão política e a Censura causaram muitos danos à nossa geração. Rodger Rogério, Petrúcio Maia, Augusto Pontes, Oswaldo Barroso, entre outros artistas, foram presos, eu mesmo sofri prisão relâmpago. Caetano e Gil foram encarcerados e tiveram que sair do país. Vivemos um momento em que artistas eram mortos, como aconteceu no Chile com Victor Jara. Havia uma percepção internacional, apoiada pelos EUA, de que eles, os artistas, deviam ser combatidos, tirados de circulação, punidos. E isto está ganhando força novamente. Vejam o momento que estamos vivendo em nosso país. Não quero ficar aqui fazendo discursos políticos. Basta fazer um L (faz a letra com dois dedos). Sei que o atual governo foi eleito e há quem o apoie, mesmo que ele não tenha o humano como base. As urnas dirão o que nos aguarda.
O que o Pessoal do Ceará significou na sua trajetória?
Significou muito para mim, para a minha geração e para a música brasileira. Foram muitos, mas muitos artistas, não só cearenses, pois alguns outros nordestinos se juntaram a nós. Você sabia que o nome “Pessoal do Ceará” nos foi dado pelo pessoal da USP? Fomos fazer show lá na Universidade e eles necessitavam de um nome para colocar nos cartazes. Como cearense tem mania de dizer “o pessoal tá chegando”, o “pessoal fez isso, fez aquilo”, a turma, para nos caraterizar, tascou no cartaz: “show com o Pessoal do Ceará”. Éramos Belchior, Roger Rogério, Téti, Pequim e Chico Maranhão, que como o nome diz, era maranhense. Nós morávamos em Pinheiros. Um parente de um cara da TV Cultura assistiu ao show, gostou do que viu-ouviu e nos recomendou. Fomos convidados para participar do programa “Proposta”, ao longo de quarto meses, com emissões semanais. Nos cabia cantar várias canções nestes programas, que mantinham conversas com diversas personalidades. Gente como o ator Paulo Autran, o geneticista Frota Pessoa, o zoólogo (e compositor) Paulo Vanzolini. Participávamos como compositores e cantores e Téti como intérprete. Havia um trio de músicos no apoio. Na direção, Júlio Lerner, amigo de Vladimir Herzog, que atuava na área de jornalismo da TV Cultura. Foi um período muito fértil. Naquele momento apresentamos muitas músicas novas, entre elas “Ingazeiras” e “Chão Sagrado”. Nossa geração contou com pessoas como Fausto Nilo, além de compositor, um grande arquiteto, que foi vice-presidente da UNE, com nosso amigo José Genoíno, que foi para a Guerrilha do Araguaia. Que doidice, uns cem caras, com espingardas de matar passarinho, para enfrentar um Exército de um milhão e meio de homens. Compus uma música — “Araguaia” — que ficou oito meses presa na Censura. Não era panfletária, nem defendia a guerrilha, apenas reportava, pois o artista é também um repórter de seu tempo. Há coisas que a Censura percebia, cortava, dilacerava. Outras não. “Pavão Mysteriozo” falava daquela noite escura que estávamos vivendo e de uma princesa numa torre inalcançável, que buscava a liberdade. A liberdade pela qual todos ansiávamos. Eles não perceberam.