Cine Ceará mostra ‘santeria’ cubana em “Vicenta B.” e burguesa equatoriana em depressão pós-parto
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza
A competição do Cine Ceará, o Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza, começou a falar espanhol. Na noite do último sábado foram exibidos dois filmes latino-americanos — “Vicenta B.” (foto), do cubano (recém-radicado em Barcelona) Carlos Lechuga, e o equatoriano “Lo Invisible”, de Javier Andrade, ambos protagonizados por mulheres. O primeiro, por uma cartomante afro-habanera, com poderes sensitivos, a Vicenta Bravo do título. O segundo, por Luísa, mulher loura e burguesa, que entra em depressão profunda no período pós-parto.
Os dois filmes passaram por vários festivais e obtiveram boas críticas. “O Invisível” foi indicado (pelo Equador) à disputa por uma vaga ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A grande novidade de “Vicenta B.” é trazer para o centro da narrativa de um longa-metragem cubano a questão da ‘santeria’, tratada sem nenhum exotismo, sem sacrifício de animais, mas sim como parte da religião de grande parte da população do país caribenho, que a prática mesclada ao catolicismo.
Vicenta vê o filho jovem partir para o exterior, em busca de oportunidades. Até aquele momento, ela joga cartas para todos que a procuram em sua ampla casa e usa seus poderes sensitivos para ajudá-los. Mas a falta de notícias do Carlito (Pedro Martinez) a desestabiliza. Não consegue se concentrar na prática de suas ajudas espirituais. Uma jovem, Mônica (Ana Flávia Barrios), em situação de desespero emocional, aparece e clama por atendimento. Ela avisa que não está em condições de atendê-la. O que se seguirá, complicará ainda mais o estado emocional de Vicenta, interpretada com elegância e altivez por Linett Hernandez Valdez, cubana radicada em Paris.
O filme, que contou com parceiros internacionais (Colômbia, Noruega e França), mostra uma Cuba com jovens sem esperança, que emigram ou querem emigrar. Ou seja, estão descontes com seu país de origem. Mas não faz proselitismo político. A narrativa acredita na complexidade e na sutileza. Vê o povo afro-hispano-caribenho em seu cotidiano e desafios, buscando sua religiosidade e riquezas culturais (de imensa beleza a sequência em que a cantora Natividad Chivás interpreta, com voz potente, canção espiritual).
Carlos Lechuga, formado pela Escola Internacional de Cinema de San Antônio de los Baños, nos arredores de Havana, foge do miserabilismo e reveste sua protagonista com elegância e contenção. Sempre bem-vestida, mesmo que com roupas simples, ela rompe com o estereótipo dos praticantes de cultos afro, em maioria das vezes vistos como praticantes de cultos primitivos.
O cineasta inspirou-se em sua avó para escrever a história de seu filme. Mas não a localizou no passado e sim nos dias de hoje, com seus telefones celulares e outras modernidades. E fez das personagens femininas as protagonistas absolutas da narrativa. Além de Vicenta B., célula-mater do filme, destacam-se a jovem Mônica, que busca socorro espiritual, e sua mãe, uma sobrecarregada mulher do povo, que, além de trabalhar, cuida de idoso doente, e uma líder espiritual, guia da própria cartomante. E, claro, Natividad Chivás, que não é atriz, mas “cantante”.
Lechuga somou ao elenco profissional, participação de atores não-profissionais, conseguindo de todos ótimos desempenhos. Aos homens restam dois papeis, ambos — registre-se — simpáticos (o filho que parte, alegre e amoroso, e o ex-marido, Carlos, interpretado por Eduardo Martinez, também muito simpático e prestativo). Aliás, são três, pois não faltará humor ao cineasta-roteirista ao descrever a esperteza do personagem idoso que vive “entrevado” numa cama. Por sorte, o diretor, desta vez, fugiu de certo esquematismo, marca de seu filme anterior, “Santa e Andres”, exibido no Cine Ceará em 2017.
O longa equatoriano “Lo Invisible” parece, à primeira vista, uma produção europeia. Sua protagonista, Luísa (a atriz Anahí Hoeneisin), é loura de tipo escandinavo e vive numa espetacular mansão envidraçada e cercada de verde, de padrão hollywoodiano. Ou sueco-norueguês. A vista com miríade de luzes da Quito que se vê ao longe poderia ser de qualquer metrópole nórdica ou anglo-saxã.
Quando o “invisível” começa a tornar-se menos opaco para nós, percebemos que Luísa está chegando do hospital, onde deu à luz o segundo filho. O primeiro é já um adolescente. Mas ela está em choque, rejeita o bebê, não quer amamentá-lo. Mergulha em labirinto de sofrimento e dor. Uma jovem babá colombiana passa a cuidar do recém-nascido. Todos os serviçais da casa se preocupam. O marido, Alfonso (Juan Lorenzo Barragán), homem de negócios muito bem colocado na pirâmide social do Equador, recomenda vigilância completa sobre os atos da mulher. E proíbe que ela acesse a adega, pois não pode misturar bebida com os fortes remédios que lhe foram prescritos.
As relações de afeto de Luísa com os que a cercam são tênues. O choro do filho a deixa ainda mais transtornada. Como vive em meio a um bosque paradisíaco, lhe são recomendadas caminhadas que devem evoluir para corridas, de forma que o exercício físico a ajude a se recuperar. Só uma mulher consegue manter relação de afeto (e compreensão) com a mãe presa em seu labirinto — sua velha babá, a quase octogenária Rosa (Matilde Lagos), uma indígena batizada como Marina, que chegara há muitas décadas para viver como serviçal da rica família. Como a mãe de Luísa chamava-se Marina, a indígena foi rebatizada Rosa, pois não ficava bem uma empregada ter o mesmo nome da patroa.
No melhor momento do filme, num embate surdo com a professora de música do filho adolescente, Luísa desenha duro quadro do patronato e de seus serviçais. Não por consciência revolucionária, mas sim, quem sabe, para estabelecer algum nexo em suas emoções desencontradas e entender que a única pessoa que lhe devota amor verdadeiro é a velha babá indígena, que a criou, que massageia seu rosto e seus pés, que tenta animá-la a amamentar o filho, estabelecendo alguma relação com ele.
O roteiro de “Lo Invisible” foi escrito pelo diretor Javier Andrade, em parceria com sua atriz-protagonista Anahí Hoeneisen. Desde já, forte candidata ao Troféu Mucuripe. A segunda noite do Cine Ceará foi mesmo das mulheres. Não apareceu nenhum ator para arranhar o favoritismo do cearense Démick Lopes, a “Silvanelly” de “A Filha do Palhaço”.