“Inseparáveis” pianistas gêmeas argentinas e “Acidente” com ciclista grávida movimentam o Cine Ceará
Foto: A atriz Carol Martins em cena de “Inseparáveis”
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza
Duas pianistas argentinas, nonagenárias e apaixonadas por bonecas e comida fast-food, encantaram o público que compareceu ao Cine São Luiz na terceira noite da competição ibero-americana do Cine Ceará. Depois do filme protagonizado por elas, foi exibido o longa ficcional “O Acidente”, do gaúcho Bruno Carboni, de características mais lacunares e de ruptura com narrativas tradicionais.
A cineasta María Álvarez apresentou “Inseparáveis”, tradução livre para “Las Cercanas” (Muito Próximas), ao público, com charme e alegria. Contou que o filme fecha “trilogia involuntária”, iniciada com “Las Cinéphilas”, protagonizado por velhinhas argentinas, uruguaias e espanholas, sideradas por cinema, e sequenciada com “El Tiempo Perdido”, sobre clube de idosos-leitores fieis de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust.
O filme que causou sensação e debate animadíssimo no Cine Ceará nasceu por acaso. Um dia, a documentarista, que preparava mais produção sobre a Terceira Idade, caminhava pelas ruas de Buenos Aires, quando deparou-se com duas velhinhas e fez uma foto fascinante delas. Voltou a encontrá-las numa sanduicheria McDonalds, aproximou-se, perguntou se podia bater novas fotos, foi autorizada, engatou conversa e contou que era cineasta. Ali soube que Coca (Amélia Cavallini) e Yunga (Isabel Cavallini) eram irmãs gêmeas, pianistas, que haviam feito muitos recitais nos anos 1950, quando conheceram a fama. Haviam estudado em Cleveland, nos EUA. E moravam perto dali, da sanduicheria.
Filhas da classe média alta de Buenos Aires, as moças foram criadas em casarão luxuoso, acumularam bibelôs, joias e muitas recordações. Aos 90 anos, porém, viviam num pequeno apartamento, no qual se destacavam dois símbolos dos tempos de fausto: um imenso piano de cauda e óleo de tamanho exagerado pintado com a imagem das irmãs, vestidas como estrelas de Hollywood.
Ao adentrar o pequeno e atulhado apartamento das Hermanas Cavallini, María Álvarez percebeu que tinha duas personagens e cenário ímpar para fechar sua “trilogia involuntária”. Ao longo de três meses, antes que Coca e Yunga fossem transferidas para um Lar de Idosos, a documentarista esteve cotidianamente com elas. Registrou 90 horas de conversas e editou um filme enxuto, que cativa o espectador.
As duas irmãs vivem de pequenas turras, apaixonadas por bonecas octogenárias e de lembranças de tempos passados, quando eram festejadas como as “gêmeas do piano”. Coca, que sonhou ser também atriz e trabalhou na televisão, assume o protagonismo. Representa um número dramático, quando um boneco de muita estima tem sua cabeça esfacelada. Um hospital de brinquedos é convocado para restaurar o “filho”. E o filme encontra em Julio Roldán um verdadeiro Gepetto. Ele não só reconstrói o “muñeco” destroçado, como dá um belo testemunho ao documentário, lembrando que o amor (legítimo) devotado por muitos àqueles seres de porcelana vem de longe, muito longe.
Durante a montagem do filme, Amélia Cavallini faleceu. Mas María Álvarez não alterou seu projeto. No debate, durante o qual ela só recebeu elogios, a cineasta contou que só lhe interessava o que havia acontecido dentro do pequeno apartamento que abrigou as duas irmãs antes que parentes as levassem para o lar de anciãos e o piano fosse vendido”.
O debate do segundo (e último) longa brasileiro da competição de oito títulos ibero-americanos — “O Acidente” — foi tranquilo e muito produtivo. O filme se fez representar por Bruno Carboni, diretor de curtas-metragens e experiente montador, pelas atrizes Carol Martins, que interpreta a protagonista Joana, e Gabriela Grecco, sua antagonista Elaine, e pela produtora Jéssica Luz.
O quarteto gaúcho, muito articulado, soube ouvir e responder aos questionamentos com serenidade. Primeiro, vale lembrar que a estreia nacional do filme no Cine Ceará tem a ver com a linha curatorial do festival (vitrine para filmes jovens e mais experimentais) e com o triunfo do documentário “5 Casas”, do gaúcho Bruno Barreto Goularte, grande vencedor do ano passado. Nas equipes dos dois filmes há nomes coincidentes.
Carboni, de 34 anos, formado em Cinema pela PUC-RS, figura nos créditos técnicos de longas-metragens como “Morro do Céu” (Spolidoro), “Castanha” e “Rifle”, ambos de Davi Pretto, e “Beira-Mar” (Matzembacher e Reolon). “O Acidente” marca sua estreia como diretor de longa-metragem. Ele assina, também o roteiro (em parceria com Marcela Ilha Bordin) e a montagem (com Germano de Oliveira).
No centro da trama está a ciclista Joana, que interrompida no trânsito por agressiva motorista, resolve tirar satisfação. Ela se posta, com sua bike, defronte ao veículo e a condutora não se incomoda. Acelera e Joana se agarra como pode, segurando em fresta do capô. Tudo é filmado por Maicon (Luiz Felipe Xavier), filho pre-adolescente da motorista.
Joana escapa com pequenos ferimentos, vai cumprir seu compromisso (é tradutora profissional) e regressa ao apartamento onde vive com sua companheira, Cecília (Carina Sehn). Joana esta grávida, depois de submeter-se a complexo processo de inseminação artificial, e é acompanhada pela Dra. Neusa (Janaína Kramer). Mas não esquece a mulher que a afrontou no trânsito. Nem tinha como esquecer, pois Maicon colocou as imagens do acidente na internet. Ele é um videomaker amador e sensível.
Como anotou a placa do carro, Joana abre processo contra a dona do carro, na verdade, o dono (o militar Cleber, ex-marido da motorista Elaine). Entre as consultas médicas, que acompanham o desenvolvimento do bebê, e suas buscas pessoais, Joana vai se envolvendo com a família da agressora. O que virá daí em diante é imprevisível.
Na elaboração do roteiro, além de contar com a parceria de Marcela Ilha Bordim, Bruno Carboni teve consultoria do roteirista romeno Razva Radulescu, da equipe de “A Morte do Senhor Lazarescu” (Cristi Piui, 2005) no Laboratório do Torino Festival, na Itália. E diz que se mostrou aberto a sugestões de seu elenco e de amigos de ofício. Como estreante na direção, nunca se sentiu o dono da verdade. E, como montador, aceitou enxugar a primeira versão, que resultou em filme de duas horas e meia (a duração final resumiu-se a 95 minutos).
Carboni confessou que muitos o aconselharam a não ter um casal homoafetivo como protagonistas (Joana e Cecília). O romeno Radulescu foi um dos que o encorajaram a seguir em frente. Por que não? O que o impedia de contar a história de duas mulheres que resolvem ser mães?
O cineasta, porém, lembrou que não fez da homoafetividade a razão central de seu filme. Mas sim desejou mostrar o Brasil polarizado em que estamos vivendo. Um país, onde um lado não quer conhecer (dialogar com) o outro. No começo do filme, quando Elaine se nega a ouvir Joana e a arremessa sobre o capô do carro, todos ficamos contra ela.
A trama de “ O Acidente”, aliás, nasceu de fato real, ocorrido em Porto Alegre, quando uma mulher atropelou ciclista arrastando-a, sem prestar nenhum tipo de socorro. Havia uma criança no banco traseiro. A partir desse incidente, Carboni esboçou seu argumento. E estabeleceu sua premissa: conhecer as pessoas em sua complexidade.
O filme tem “a maternidade compulsória” como um de seus temas principais e, claro, a própria imagem, já que Maicon, que gravou — com seu celular — a transgressão de sua mãe no trânsito e cuja guarda é disputada pelo pai, que quer matriculá-lo no Colégio Militar, é um cineasta em potencial.
A trilha sonora traz a assinatura da clarinetista e cantora Maria Beraldo, que assina a música incidental e canta temas compostos por ela e também os fascinantes versos de “Eu te Amo”, de Chico Buarque e Tom Jobim, aqueles que falam de amantes que se amaram “feito dois pagãos” e cujos seios (dela) “‘inda estão nas minhas mãos/ me explica com que cara eu vou sair”.
A produtora do filme Jéssica Luz contou que “O Acidente” não teve orçamento robusto, mas que, graças à generosidade de Chico Buarque, não foi difícil conseguir os direitos de uso da canção.
A atriz Carol Martins, que aparenta uns 28 anos, mas garante estar chegando aos 40, contou aos jornalistas e ao público cearense que — como Joana, sua primeira protagonista num longa-metragem — é ciclista praticante. E que acredita ter ganho o papel, depois de um primeiro teste não muito bem-sucedido, por isto. “Eu estava em crise, desistindo de minha vida de performer, bailarina-circense. Planejava mudar para Montevidéu. Já havia feito viagem ao Uruguai, partindo de Porto Alegre, em grupo, de bike. Foi quando o Bruno (Carboni) me ligou pedindo que eu refizesse o teste. Refiz e deu tudo certo”. O Uruguai deve, portanto, esperar um pouco mais por sua nova moradora-ciclista.
Já a divertida e solar Gabriela Greco, que além de atriz é professora de Artes Cênicas, revelou que “todos os testes são traumáticos”. Foi fazer mais um, sem muitas esperanças. Ficou muito feliz quando foi aprovada para ser a antagonista de Carol Martins, com quem contracenara em “Os Plagiários”, espetáculo-homenagem a Nelson Rodrigues. E que adorou a sessão no Cine Ceará, na enorme tela do Cine São Luiz. “Foi a primeira vez que vi o filme pronto. É nessa hora que a gente vê que sequências que tomaram horas nas filmagens — como uma feita num por-do-sol em Porto Alegre, às margens do Rio Guaíba, complicadíssima — foi eliminada. Coisas do cinema (risos)”.