Festival Aruanda coloca a MPB e a negritude em primeiro plano
Por Maria do Rosário Caetano
A décima-sétima edição do Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro, que acontece em João Pessoa, na Paraíba, dessa quinta-feira, primeiro de dezembro, ao dia sete, assumiu alma black e musical.
Boa parte dos 50 filmes de sua programação são protagonizados por artistas negros ou nomes de destaque de nossa MPB. Na competição oficial de longas brasileiros, três dos seis concorrentes ao Troféu Aruanda (que presta tributo ao cult movie de Linduarte Noronha) são documentários musicais. Caso de “Andança – Os Encontros com a Memória de Beth Carvalho” (foto acima), de Pedro Bronz, “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy, e “Fausto Fawcett na Cabeça”, de Victor Lopes. Tem filmusical também na competição regional (Sob o Céu Nordestino), com o documentário “Manguebit”, de Jura Capela, sobre a geração de Chico Science, Fred 04, Mundo Livre e Mestre Ambrósio, que sacudiu a música pernambucana na década de 1990.
No campo dos filmes especiais, mais MPB. “Os Doces Bárbaros”, de Jom Tob Azulay (1976), terá exibição-tributo à memória de Gal Costa, que fez sua passagem semanas atrás. E, na noite de encerramento e entrega dos troféus Aruanda, será a vez do bardo cearense Belchior (1946-2017). Ele será lembrado pelo longa documental “Apenas um Coração Selvagem”, de Natália Dias e Camilo Cavalcanti.
O cinema black também registra forte presença no Aruanda. Os homenageados deste ano são a atriz Zezé Motta, de 78 anos, e o veteraníssimo e sacudido Tony Tornado, de 92. A dupla integrou o elenco de “Quilombo”, de Cacá Diegues, inserido no núcleo histórico do festival paraibano. Zezé, como todos sabem, é a protagonista absoluta de “Xica da Silva”, também de Diegues, que será exibido na noite de inaugural.
Importante observar que os dois, Zezé e Tony, são cantores. Ela, fluminense de Campo de Goitacazes, com vários discos gravados e centenas de shows feitos pelos palcos da vida. Ele, paulista de Mirante de Parapanema, surfou na linha de frente da era Black Rio. Venceu o FIC (Festival Internacional da Canção) com o soul lisérgico “BR-3”, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. Dizem os “malucos” (respaldados por alguns pesquisadores sérios) que a tal “BR-3” era, mais que uma “via”, uma “veia”, na qual eram injetados certos químicos lisérgicos. Louca década de 1970.
A presença afro-brasileira se fará sentir em muitos dos filmes do Aruanda, além de “Xica” e “Quilombo”. O protagonista do longa documental “Confissões de um Sofredor” é o “rei da cornitude”, o genial compositor afro-gaúcho Lupicínio Rodrigues. Beth Carvalho encontrou os mais férteis nutrientes de seu repertório em compositores pretos que fizeram a glória do Cacique de Ramos e do Fundo de Quintal, esteios do pagode. No pernambucano “Fim de Semana no Paraíso Selvagem”, de Severino, destacam-se os atores black Ana Flavia Cavalcanti e Edilson Silva.
No terreno do curta-metragem, há títulos em que a negritude está na linha de frente, caso de “Calunga Maior”, do paraibano Thiago Costa, com elenco composto só de mulheres negras. O compositor, cantor, percussionista e ator Escurinho (nome artístico de Jonas Epifânio dos Santos Neto, 60 anos) é uma das vozes de “A Praça do Joás”, de Gutenberg Pequeno.
Dos onze longas selecionados para as duas competições do Festival Aruanda, apenas um é 100% inédito: “Bia”, de Taciano Valério, cineasta paraibano radicado na pernambucana Caruaru. Seu filme é um híbrido que se passa num assentamento (o Normandia), do MST. E os principais atores são paraibanos: a protagonista Verônica Cavalcanti, Zezita Matos e Fernando Teixeira.
“Bia” disputa prêmios na competição nacional. Os outros cinco escolhidos já passaram por outros festivais, mas (ainda) guardam frescor. Afinal, festivais como o do Rio e a Mostra Internacional de São Paulo, por serem grandes demais (cada um com mais de 200 filmes e média de 50 longas brasileiros) acabam tão avassaladores, que muitos títulos não são fruídos coletivamente.
Dos longas selecionados, o mais badalado é “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho”, de Pedro Bronz. Passou pelo Rio e pela Mostra SP. Em solo paulista, foi engolido pelo sofisticadíssimo “Elis & Tom”, de Roberto Oliveira e Jom Tob Azulay, eleito, pela Crítica, como “o melhor”. Como as imagens de Elis Regina e Tom Jobim foram captadas em 16 milímetros (Los Angeles, 1974), por um craque (o diretor de fotografia Fernando Duarte) e muito bem preservadas, o impacto artístico e técnico resultou arrebatador.
Já o filme de Beth Carvalho, dirigido pelo carioca Bronz, se contrói com materiais precários (gravações de encontros da cantora realizados ao longo dos 53 anos nos palcos, rodas de samba e pagode, mesas de bar e visitas a compositores). As imagens do documentário são domésticas, captadas em diferentes mídias (super-8, VHS, mini-dv, k7). A elas são acrescentadas fotografias (e raras imagens contemporâneas). O filme tem, claro, imenso valor documental, mas chega a cansar o espectador (dura quase duas horas!). Parece que os familiares da grande intérprete de “Vou Festejar” e “Coisinha do Pai” ficaram colocados ao documentarista e ao montador pedindo que tudo entrasse. Nada, nenhum fato ou pessoa importante na vida da artista, ficasse de fora. “Andança” está pronto. Espera-se que, agora, o bem-humorado Pedro Bronz, grande editor de imagens, parta para projeto mais livre e solto. Que entre na onda do “Vou Festejar” e nos mostre, em arrebatadores 80 minutos, o que a “Coisinha do Pai” fez para levantar a galera e “acordar” o robô Sojourner, da Missão Marte Pathfinder, da poderosa Nasa (Agência Espacial dos EUA).
O filme de Murilo Benício – “Pérola”, versão cinematográfica da peça de mesmo nome, de Mauro Rasi – dá seguimento ao trabalho do consagrado ator de cinema e TV, que estreou na direção com instigante recriação (rodriguiana) de “O Beijo no Asfalto”. No elenco, nomes estelares que iam de Fernanda Montenegro a Lázaro Ramos, de Stênio Garcia a Otávio Muller. Dessa vez, sua Pérola é a talentosíssima Drica Moraes.
O documentário que Alfredo Manevy (uspiano com doutorado em Godard e professor da Universidade Federal de Santa Catarina) dedicou a Lupicínio Rodrigues somou elogios a críticas negativas. Há quem defina o filme como “mal feito, improvisado”. Nada disso. “Confissões de um Sofredor” é instigante, inteligente, antenado. Traz para as novas gerações – politicamente corretas demais para entender a alma dilacerada do compositor gaúcho, preto e discriminado – canções de um tempo em que chorar musicalmente a “cornitude” era “cult”.
O moçambicano-brasileiro Victor Lopes escolheu como personagem o cantor, poeta e compositor de músicas como “Kátia Flávia” e “Rio 40 Graus”, Fausto Fawcett. Também escritor (autor de cinco romances) e performancer, Fausto “Exocet” parte de “signos reais e cotidianos de sua Copacabana” para “cruzar fronteiras narrativas, filosóficas e temporais”. Com o objetivo de “instaurar visões futuristas e experiências sensoriais capazes de chacoalhar a aventura humana”. Eita!
“Propriedade”, de Daniel Bandeira, tem elenco e sinopse dos mais promissores. Confiram: “para proteger-se de revolta dos trabalhadores da fazenda de sua família, uma mulher se tranca em seu carro blindado. Separados por uma camada impenetrável de vidro, dois universos estão prestes a colidir”. No elenco, Malu Galli.
Para a mostra regional Sob o Céu Nordestino foram selecionados cinco longas, a maioria pernambucana. Caso das ficções “Paterno”, do recifense Marcelo Lordello (com Marco Ricca em grande desempenho) e “Fim de Semana no Paraíso Selvagem”, de Severino, e do documentário “Manguebit”, de Jura Capela. A Paraíba marca presença com “Cordelina”, de Jaime Guimarães (oriundo da segunda maior cidade do estado, Campina Grande).
Do Ceará chega a ficção infanto-juvenil “Pequenos Guerreiros”, de Bárbara Cariry. Filha de Rosemberg “Corisco & Dadá” Cariry e irmã do cineasta e diretor de fotografia Petrus “O Grão” Cariry, Bárbara, chama atenção como única presença feminina entre os varões assinalados dos outros dez longas em competição. Ela começou sua carreira como produtora dos filmes da família, maior e mais prolífico clã cinematográfico da terra de Belchior, Ednardo e Fagner. Por fim, produziu o fascinante canto do cisne de Geraldo Sarno, “Sertânia”.
A jovem resolveu, então, que chegara a hora de estrear na direção com um filme para a garotada. O resultado é vibrante e mobilizador. Um longa-metragem enxuto, que dialoga com a cultura popular, mas sem ar passadista e defasado. Os guerreiros de Bárbara mantêm-se plugados na tomada e, portanto, nas contradições do mundo cibernético-digital. E ela nos cativa com seus personagens, ritmos e paisagens nordestinas, que vão do mar ao sertão. Do Atlântico à mística Barbalha.
A quem for acompanhar o Fest Aruanda pela primeira vez, um aviso. Seu comando é louco por homenagens. Neste quesito, bate o “homenageador-mor” dos certames cinematográficos brasileiros – o badalado Festival de Gramado, com 50 edições já realizadas.
Este ano, além de Zezé Motta e Tony Tornado, serão festejados, no Aruanda, a atriz Zezita Mattos e o ator Fernando Teixeira, ele que chega aos 80 anos. E, in memoriam, a baiana Gal Costa (1945-2022), e dois paraibanos, o jornalista e poeta Jurandy Moura (1940-1980), e Eliézer Rolim (1961-2022), dramaturgo e cineasta, vencedor da competição Sob o Céu Nordestino, com o longa ficcional “Beiço de Estrada”, recriação de peça teatral que ele escreveu e dirigiu (e que revelou Marcélia Cartaxo, do grupo de teatro Terra, de Cajazeiras). No elenco do filme, ainda, inédito nos cinemas, estão Darlene Glória, Mayana Neiva, Susy Lopes e Jackson Antunes.
Só nos resta torcer, em meio a tanta homenagem, por discursos concisos e contundentes. Se baixar nos homenageados a síndrome que baixou, durante o Festival de Brasília, em Thiago Costa e Laís de Oyá, diretor e atriz de “Calunga Maior”, as noites serão intermináveis.
Competição de longas brasileiros
. “Bia”, de Taciano Valério (PE-PB, híbrido, 71′)
. “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy (SC, doc – 96′)
. “Fausto Fawcett na Cabeça”, de Victor Lopes (RJ, doc – 103′)
. “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho”, de Pedro Bronz (RJ, doc – 115′)
. “Pérola”, de Murilo Benício (RJ – ficção – 92′)
. “Propriedade”, de Daniel Bandeira (PE – fic – 100′)
Competição de longas regionais (Sob o Céu Nordestino)
. “Pequenos Guerreiros”, de Bárbara Cariry (CE, ficção, 74′)
. “Cordelina, de Jaime Gonçalves (Campina Grande, PB, ficção, 70′)
. “Fim de Semana no Paraíso Selvagem”, de Severino (PE, ficção, 116′)
. “Paterno”, de Marcelo Lordello (PE, ficção, 110′)
. “Manguebit”, de Jura Capela (PE, 101′)
Competição de Curta Brasileiro
. “Tiro de Misericórdia”, de Augusto Barros (MG, ficção – 17′)
. “Quarentena”, de Adriel Nizer e Nando Sturmer (PR, ficção – 6′)
. “Carta para Glauber”, de Gregory Baltz (RJ, doc. – 12′)
. “Socorro” de Susanna Lira (RJ, doc, 15′)
. “Déjà Vu”, de Carlos Mosca (PB, ficção – 12′)
. “Desejo e Necessidade”, de Milso Roberto (PB, ficção – 11′)
. “Sangue por Sangue”, de Ian Abé e Rodolpho de Barros (PB, ficção – 14′)
. “Saindo com Estranhos da Internet”, de Eduardo Wahrhaftig (SP, animação – 11′)
. “Tekoha” de Carlos Adriano (SP, doc- 13′)
. “Mergulho”, de Marton Olympio e Anderson Jesus – (SP, ficção – 15′)
. “Eles Não Vêm em Paz” de Pedro Oranges e Victor Silva (SP, ficção – 4′)
. “Filme de Quarto” de Raffaella Rosset (SP, ficção – 15′)
Curtas Paraibanos (Sob o Céu Nordestino)
. “Aratu”, de Firmino de Almeida (Fic. – 8′)
. “A Praça do Joás”, de Gutenberg Pequeno (Doc- 15′)
. “Anjos Cingidos”, de Laercio Filho e Maria Tereza Azevedo (animação, 15′)
. “A Espera”, de Ana Célia Gomes (doc.,11′)
. “Calunga Maior”, de Thiago Costa (fic, 16′)
. “Era Uma Noite de São João”, de Bruna Velden. (animação, 11′)
. “Não Existe Por do Sol”, de Janaína Lacerda. (fic, 16′)
. “O Rebanho de Quincas”, de Hipólito Lucena e Rebeca Souza. (fic, 15′)
. “Rendeiros”, de Romero Sousa (doc, 15′)
Sessões especiais
. “Casão, Num Jogo sem Regras”, de Susanna Lira
. “Helen”, de André Meirelles Collazo (com Marcélia Cartaxo)
. “Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo (com Fernando Teixeira)
. “Os Doces Bárbaros”, de Jom Tob Azulay (com Gal. Bethânia, Gil e Caetano)
. “Quilombo”, de Cacá Diegues (com Zezé Motta, Tony Tornado, Antônio Pompeo)
Lançamentos dos livros
. “Árida Luz Nordestina: O Cinema de Rucker Vieira”, de Paulo Cunha (Ed. Contraluz)
. “Cinema Paraibano e suas Interfaces”, de Virgínia de Oliveira Silva e Janaine (Ed. Xeroca)
. “Pesadelo Ambicioso”, de Fausto Fawcett (Ed. Numa)
Festival Aruanda do Audiovisual Brasileiro
Edição número 17
Data: 1º a 7 de dezembro
Local: Rede Cinépolis do Manaíra Shopping de João Pessoa (PB)
Mostras competitivas em longa-metragem (brasileira e regional – Sob o Céu Nordestino), competições de curtas-metragens (nacional e paraibana), debates, seminários e lançamentos de livros.
Sessões vespertinas e noturnas, todas com entrada franca.
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