Festival de Brasília abre mão do ineditismo e realiza edição de número 55 sob nova direção

Por Maria do Rosário Caetano

Os filmes “Mato Seco em Chamas” (foto), “Big Bang” e “Ave Maria” abrirão, na noite dessa segunda-feira, 14/11, o mais tradicional e longevo festival de cinema do país – o de Brasília.

Até domingo, dia 20, serão exibidos 40 filmes de curta, média e longa-metragem, que, além de lotar o niemárico Cine Brasília, disputarão o Troféu Candango, estatueta de bronze esculpida em formas mais volumosas para evocar e homenagear Bruno Giorgio (e sua obra referencial, “Os Candangos”).

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro chega à sua quinquagésima-quinta edição (cinco a mais que Gramado) sob nova direção e orientação. Depois de dois anos – os da pandemia e do formato on-line – comandados pelo cineasta Sílvio Tendler, a direção artística do evento passa a contar com a assinatura da eficiente produtora Sara Rocha, filha e neta de cineastas (Paloma Rocha, Helena Ignez e Glauber Rocha).

Por causa do ano eleitoral, o Fest Brasília acontece, mais uma vez, sem reassumir integralmente sua importância histórica, em data inadequada (final de ano, ao invés do mês de setembro, na Primavera Candanga) e sem apostar em filmes 100% inéditos. E mais: com filmes (no caso curtas-metragens) já laureados com o prêmio principal em outro certame. Neste caso enquadra-se “Big Bang”, que vem causando sensação em vários festivais (“Sideral”, filme anterior do diretor paulista-mineiro-potiguar Carlos Segundo, é semifinalista ao Oscar). Mês passado, “Big Bang” sagrou-se o grande vencedor do Troféu Mucuripe, no Cine Ceará. Se o regulamento histórico do Festival de Brasília fosse evocado, “Big Bang” só poderia ser exibido em caráter hors-concours.

Dos seis longas selecionados, dois – “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, e “Canção ao Longe”, da mineira Clarissa Campolina —  já participaram da programação do Festival do Rio. O filme do goiano-ceilandense Adirley e da lusitana Joana foi, inclusive, premiado com o Troféu Redentor de melhor fotografia (realmente arrebatadora, da mesma Joana Pimenta) e com o Prêmio Especial do Júri (perdeu a láurea principal para “Paloma”, de Marcelo Gomes).

Com carreira significativa em diversos festivais internacionais, “Mato Seco em Chamas” — filmado no território temático-político preferido de Adirley e do coletivo Ceiperiferia (a Ceilândia) — encerrou a Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, e abriu o ForumDoc-BH, em Minas Gerais. Para o diretor de “Branco Sai, Preto Fica”, ineditismo não é um valor relevante.

O filme de Clarissa Campolina (“Canção ao Longe”) participou da mostra competitiva “Novos Rumos”, parte da Première Brasil do festival carioca, vencida por “Três Tristes Tigres”, de Gustavo Vinagre. Este ano, o Festival de Cinema do Rio, depois de comer o pão que o diabo amassou durante a gestão evangélica do então prefeito Marcelo Crivella, nadou de braçada. Conseguiu patrocínio da Shell e apoio total do novo alcaide, Eduardo Paes. Assim sendo, “passou o rodo” nos outros festivais programados para o segundo semestre. Recheou suas competições de filmes 100% inéditos e aconteceu em setembro, longe dos inadequados meses de novembro e dezembro. Nos tempos de penúria, o Festival do Rio realizou uma de suas edições desesperadas e descapitalizadas às vésperas do Natal).

Ano passado, gestores do Festival de Brasília deram a entender que o evento retornaria à sua data histórica (setembro). Não voltou. A razão principal deve ter sido a agrura das eleições para o Executivo (presidente e governadores) e parlamentares (senadores e deputados). Por manter tais desajustes, o atual regulamento do Fest Brasília não faz jus à trajetória do mais antigo certame do país, criado por Paulo Emilio Salles Gomes e equipe (ligada à UnB – Universidade de Brasília), em 1965.

Ano que vem, a diretora artística Sara Rocha deverá recolocar o festival em seus trilhos. Afinal, terá tempo para isto. Além do mais, sob o Governo Lula, com o MinC recriado e as estatais fomentando o setor artístico-cultural, o quadro deverá ser bem menos hostil que o verificado nos quatro anos de Bolsonaro.

O festival deverá, também, voltar a prestigiar seu núcleo histórico (este ano não há filmes antigos restaurados em horário nobre – isto num festival que notabilizou-se pela exibição de clássicos da era muda, acompanhados ao vivo pela Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro).

“Mato Seco em Chamas”, uma ficção científica distópica sedimentada em protagonistas femininas (Chitara, Léa e Andrea), se passa inteira em Ceilândia. As mulheres dedicam-se a negócio pouco comum  – recolhem petróleo de oleodutos subterrâneos ceilandenses e, num engenhoso sistema fundo-de-quintal, o refinam até chegar ao produto final – a gasolina.

As protagonistas se transformam, então, nas “Gasolineiras das Kebradas” e agitam as enlameadas ruas da periférica cidade, montadas em sua motocicletas. Com bandos de homens como coadjuvantes. E tudo se passa num tempo em que o país (e a Ceilândia) estão sob o jugo da extrema-direita, com seus ideais religiosos retrógrados e slogans regressivos.

Um conselho aos brasilienses e convidados do festival candango que ainda não tenham visto o filme: repousem à tarde, pois a noite inaugural da competição será longa. Primeiro haverá a abertura oficial, depois homenagem ao cineasta Jorge Bodanzky, por seus 80 anos, seguida da exibição de três filmes, os curtas “Big Bang”, de Carlos Segundo (14 minutos) e “Ave Maria”, de Pê Moreira (15 minutos), e do épico das gasolineiras da Kebrada, com suas duas horas e 33 minutos.

Três dos outros cinco longas que competirão com “Mato Seco em Chamas” são bem sintéticos: o candango “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo, dura apenas 71 minutos; o fluminense “Mandado”, de João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes, só 70 minutos. E o mineiro “Canção ao Longe”, 75.

O pernambucano-paraibano “Espumas ao Vento”, de Taciano Valério, soma 101 minutos. O quinto título — o paulista-amazônico “A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge — ultrapassa as duas horas. Trata-se de documentário de tema tão explosivo quanto o das gasolineiras de “Mato Seco em Chamas”. Seu “protagonista”, o sertanista Bruno Pereira, foi assassinado meses atrás, junto com o jornalista britânico Dom Phillips, na Amazônia brasileira. Um crime que chocou o mundo.

Ao longo de duas horas e 24 minutos, o jovem cineasta (um dos autores do longa “Piripkura”) constroi narrativa que remonta ao início dos anos 2000. Exatamente em 2001, ele acompanhou expedição da Funai à Amazônia em busca de contato com indígenas isolados da etnia dos Korubos. Seguiu documentando as lutas indígenas na região Norte do Brasil. E no comecinho de junho deste ano soube da morte do amigo Bruno Pereira (e de Dom Phillips). Quem acompanhou o processo do filme e assistiu ao seu resultado garante tratar-se de obra de grande fôlego. A conferir.

No Brasil convulsionado da era Bolsonaro, os temas sociais voltaram com força total ao cinema brasileiro. Assim, os brasilienses Bruno Victor e Marcus Azevedo abordam em “Rumo” o tema momentoso das cotas raciais, implantadas em diversas universidade (e na UnB em especial) nos últimos 20 anos.

Do Rio de Janeiro, João Paulo Reys e Brenda Melo Moraes trazem “Mandado”, outro filme de alta combustão social. O ambiente em que a narrativa se passa é a favela. Alguns meses antes da Copa do Mundo de 2014 (que teve o Brasil como sede), mandado de busca emitido pela Justiça autorizou a Polícia a entrar em todas as casas de duas favelas cariocas. A radicalização do sistema penal pátrio traria graves consequências para o Brasil que conheceríamos desde então. O documentário conta com depoimentos de Marielle Franco, de juristas (como Nilo Batista), jornalistas e moradores do Complexo da Maré.

Até Clarissa Campolina, dedicada a filmes de pesquisa de linguagem, insere temas sociais em sua “Canção ao Longe”, que acompanha o dia-a-dia de Jimena, jovem que, “em busca de sua identidade”, reescreve “suas relações familiares ao criar novas formas de estabelecer vínculos amorosos, de amizade e trabalho”. Por seu olhar, o filme “levanta questões sobre classe, família, tradição, raça e gênero”.

“Espumas ao Vento”, de Taciano Valério, mostra “catástrofe ocorrida durante espetáculo de trupe artística, ocasião na qual duas irmãs redefinem suas vidas”. Elas conviverão com “as consequências do acontecimento, lembranças, sonhos e desejos suspensos no ar”. Ao mesmo tempo em que “um pastor planeja expandir o reino de Deus na Terra”.

“Espumas ao Vento”, de Taciano Valério

Pela terceira vez em sua história, o Festival de Brasília contará com dois filmes candangos em sua competição principal (“Mato Seco em Chamas” e “Rumo”). A abundância de títulos brasilienses é tão significativa, que a Mostra Brasília (outrora organizada pela Assembleia Legislativa do DF, nos mesmos moldes do Gaúchão, de Gramado) não replicará os filmes da mostra principal na local. Assim sendo, os troféus da competição de produções candangas serão entregues a um ou mais concorrentes da Mostra Brasília, formada com “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte (que participou da seleção de Gramado), o juvenil “Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo (da seleção do Festival de Vitória-ES), “Afeminadas”, de Wesley Gondim (da seleção Olhar do Ceará) e “Profissão Livreiro”, de Pedro Lacerda (sobre Ivan Presença e Chiquinho da UnB).

Duas mostras de caráter informativo complementam a programação do Festival de Brasília 55: “O Cangaceiro da Moviola”, do fluminense Luis Rocha Melo, sobre o montador Severino Dadá; “Não É a Primeira Vez que Lutamos pelo nosso Amor”, do carioca Luis Carlos Alencar; o amazonense “Uýra – A Retomada da Floresta”, de Juliana Curi, e o paraibano “Cordelina”, de Jaime Guimarães.

Na Mostra “Festival dos Festivais” serão exibidos o impressionante “Fogaréu”, da goiana Flávia Neves (da seleção do Festival do Rio e da Mostra SP), o cearense “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes (melhor ator no Cine Ceará para Démick Lopes e grande vencedor da Mostra de Cinema de Gostoso), e “Três Tristes Tigres”, de Gustavo Vinagre (da seleção do Festival do Rio, prêmio Novos Rumos, e filme inaugural do Mix Brasil).

Os 80 anos de Jorge Bodanzky, que dirigiu o cult “Iracema, uma Transa Amazônica”, com Orlando Senna, serão comemorados com mostra muito especial. Ex-aluno da UnB, o cineasta verá, pela primeira vez em tela grande, o seu penúltimo longa-metragem “Utopia e Distopia”, dedicado por inteiro à sua alma mater, a sexagenária Universidade de Brasília. O filme só teve exibições on-line na cidade que o inspirou, por causa da pandemia.

Além de diretor de ficções e documentarista, Bodanzky é um de nossos mais respeitados diretores de fotografia. Um de seus trabalhos nesta função, o longa “Compasso de Espera”, de Antunes Filho, protagonizado por Zózimo Bulbul, também será apresentado, assim como “Amazônia, a Nova Minamata?”, filme da hora, que teve sua avant-première na Mostra Internacional de Cinema de SP. E causou o devido frisson. Afinal, aborda questão de urgente gravidade: a contaminação de rios amazônicos por mercúrio, utilizado indiscriminadamente por garimpeiros. Se não colocar um freio em tal prática, o Brasil repetirá a trágica experiência de Minamata, cidade japonesa que viu suas águas contaminadas por substâncias tóxicas, causando mortandade de peixes e contaminando seres humanos.

PROGRAMAÇÃO

Segunda-feira (14 de outubro), 20h30

. “Big Bang”, de Carlos Segundo (MG-RN, 14′)
. “Ave Maria”, de Pê Moreira (RJ, 15′)
. “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta (153′)

Terça-feira (15), 20h30

. “Nossos Passos Seguirão os Seus”, de Uilton Oliveira (RJ, 13′)
. “Anticena”, de Tom Motta e Marisa Arraes (DF, 20′)
. “Espumas ao Vento”, de Taciano Valério (PE-PB, 101′)

Quarta-feira (16), 20h30

. “Calunga Maior”, de Thiago Costa (PB, 19′)
. “Sethico”, de Wagner Montenegro (PE, 14′)
.“Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo

Quinta-feira (17), 20h30

. “Escasso”, de Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles (RJ, 15′)
. “São Marino”, de Leide Jacob (SP, 20′)
. “Mandato”, de Joao Paulo dos Reys e Bruna Melo Moraes

Sexta-feira (18), 20h30

. “Capuchinhos”, de Victor Laet (PE, 17′)

. “Nem o Mar Tem Tanta Água”, de Mayara Valentim (PB, 21′)
. “Canção ao Longe”, de Clarissa Campolina (MG, 75′)

Sábado (19), 20h30

. “Um Tempo para Mim”, de Paola Mallmann (RS, 21′)
. “Lugar de Ladson”, de Rogério Borges (SP, 21′)
.“A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge  (SP, AM, 144′)

Domingo (20), 18h00

. “O Nosso Pai”, de Anna Muylaert (SP, 23′)
. “Diálogos com Ruth de Souza”, de Juliana Vicente (SP, 107′), seguido da cerimônia de entrega dos Troféus Candango aos vencedores

MOSTRA BRASILIA

Terça-feira, 18h00

. “Desamor”, de Herlon Kremer (25′)
. “Super-Heróis”, de Rafael Andrade (12′)
.“Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo (90′)

Quarta-feira: 18h00

. “Plutão Não é Tão Longe Daqui”, de Augusto Borges e Nathalya Brum (16′)
. “Manual de Pós-Verdade”, de Thiago Foresti (28′)
. “Profissão Livreiro”, de Pedro Lacerda (74′)

Quinta-feira, 18h00

. “Tá Tudo Bem”, de Carolina Monte Rosa (27′)
. “Virada de Jogo” (30′)
.“Afeminadas”, de Wesley Godim (95′)

Sexta-feira, 18h00

. “Levante pela Terra”, de Marcelo Cuhexê
. “Reviver”, de Vinícius Schuenquer (22′)
. “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte (115′)

MOSTRA REEXISTÊNCIAS (não competitiva)

Terça-feira, 16h00

. “O Cangaceiro da Moviola”, de Luis Rocha Melo (MG-RJ, 95′)

Quarta-feira, 16h00

. “Não É a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor”, de Luis Carlos Alencar (RJ, 104′)

Quinta-feira, 16h00

. “Uýra – A Retomada da Floresta”, de Juliana Curi (AM, 72′)

Sexta-feira, 18h00

“Cordelina”, de Jaime Guimarães (PB, 70′)

FESTIVAL DOS FESTIVAIS

Sábado, 14h00 – “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes (CE, 104′)

Sábado, 16h00 – “Três Tristes Tigres”, de Gustavo Vinagre (86′)

Sábado, 18h00 – “Fogaréu”, de Flávia Neves (Goiás, 100′)

MOSTRA JORGE BODANZKY

Quarta-feira, 14h00

. Brasília em Super 8, de Bodanzky (11′)
. “Utopia e Distopia”, de Bodanzky (DF, 72′)

Quinta-feira: 14h00

. “Compasso de Espera”, de Antunes Filho (SP, 98′), fotografia de Jorge Bodanzky

Sexta-feira, 14h00

. “Amazônia, a Nova Minamata?” (SC-SP, 76′)

SESSÃO ESPECIAL

Domingo, 15h00

. “Vladimir Carvalho – Quando a Coisa Vira Outra”, de Márcio Andrade (DF, 94′)

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