“Mato Seco em Chamas” abre edição do Festival de Brasília que reúne oito longas candangos
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
A cerimônia de abertura da quinquagésima-quinta edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro se deu em noite black, liderada pela equipe do filme-lenda candango (e ceilandense) “Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta. Um longa-metragem que se define como criação “etnográfico sensorial”, protagonizada por três egressas do sistema prisional (Joana “Chitara” Darc, Léa Alves e Andréia Vieira).
Com a apresentação elegante da atriz Bárbara Colen (de “Bacurau” e “Fogaréu”), a noite inaugural do festival mais tradicional e longevo do país, começou com discurso de seu presidente, o secretário de Cultura Bartolomeu Rodrigues, que lamentou manifestações anti-democráticas que continuam a ocorrer em frente a quartéis, lembrou que o país voltará, em breve, a viver um novo tempo, para concluir “ditadura nunca mais”. Foi muito aplaudido e o Cine Brasília, abarrotado, cantou o jingle “Lula lá, brilha uma estrela”, de Hilton Accioli.
Antes da exibição dos curtas “Big Bang”, de Carlos Segundo, e “Ave Maria”, de Pê Moreira, foram feitas homenagens ao cineasta Jorge Bodanzky, por seus 80 anos, a Hernani Hefner (medalha Paulo Emílio Salles Gomes) e Manuel Messias (Prêmio ABCV – Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo).
A entidade candanga comemorou, no palco, o vigor do cinema brasiliense, representado por oito longas-metragens em diversos segmentos da quinquagésima-quinta edição do festival brasileiro. Na competição ao Troféu Candango, além do festejado “Mato Seco em Chamas”, premiado no Cinéma du Réel, em Paris, e no Indie Lisboa (e já visto em mais de 50 festivais), será mostrado “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo, documentário sobre o polêmico tema das cotas reservadas a alunos afro-brasileiros em universidades públicas. Em especial na UnB, pioneira em tal prática.
Na Mostra Brasília, que a Secretaria de Cultura promove em parceria com a Assembleia Legislativa do DF, estão “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte (com a polêmica Cássia Kis no elenco), “Capitão Astúcia”, de Filipe Gontijo, “Profissão Livreiro”, de Pedro Lacerda, e “Afeminadas”, de Wesley Gondim (coprodução com o Ceará).
Para finalizar a participação recorde do cinema brasiliense de longa-metragem no festival, serão exibidos mais dois filmes com DNA 100 % candango — “ Quando a Coisa Vira Outra Coisa”, de Márcio de Andrade (sobre os irmãos Vladimir e Walter Carvalho), e “Utopia Distopia”, de Jorge Bodanzky, testemunho do ex-aluno da UnB sobre os tempos em que estudou Cinema com Paulo Emílio Salles Gomes na instituição, agora sexagenária, criada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.
Além da opulência da safra candanga (que se completa com muitos curtas-metragens), algo jamais verificado na história cinquentona do festival, outro fato chamou atenção na noite de abertura: a presença afro-brasileira. A começar pelo cartaz, que traz jovem sorridente, de pele preta, como força-motriz. No palco e na tela brilharam as protagonistas de “Mato Seco em Chamas”, todas negras. E a apresentadora Bárbara Colen convidou a todos para sessão do filme que encerrará o festival, no 20 de novembro, Dia da Consciência Negra — “Diálogos com Ruth de Souza”, de Juliana Vicente. Trata-se, como o nome indica, de longa documental sobre a grande atriz brasileira, falecida aos 98 anos, dirigido por realizadora negra (a mesma do longa “Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo”, que chega à Netflix justo neste 16 de novembro).
Bárbara Colen lembrou, também, que o Fest Brasília retoma a atribuição e entrega do Prêmio Zózimo Bulbul, fruto de parceria com a Apan (Associação de Produtores do Audiovisual Negro) ao melhor filme de realizador ou temática negra, presente na programação. E o mesmo Bulbul brilhará na tela do Cine Brasília como protagonista de “Compasso de Espera” (Antunes Filho, 1973), parte da mini-retrospectiva Jorge Bodanzky. Afinal, lembrou o homenageado dessa edição e diretor de fotografia do único longa de Antunes Filho, “nós realizamos juntos um dos primeiros filmes brasileiros a dar protagonismo a personagem negro”. No caso um publicitário e não mais um escravo ou criminoso.
Quem prestou a devida atenção ao modesto cartaz do festival brasiliense, notou, além da imagem da jovem negra e de árvore com flores do cerrado, que só há um patrocinador nesta edição — o Governo do Distrito Federal. O orçamento, de pouco mais de R$2 milhões, não foi dividido com nenhum banco, estatal ou empresa privada.
A contenção de despesas é visível. Mas tudo vem sendo feito por Bartolomeu Rodrigues e pela nova diretora-artística do festival, a produtora Sara Rocha, com empenho e dedicação. Diretores e atores estão na cidade para apresentar e defender seus filmes. Haverá muitos debates (um deles, na quinta-feira, com Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura em gestões petistas, sobre a recriação do MinC), oficinas e Mercado de Projetos).
“Big Bang”, que conquistou o Leopardo de Ouro em Locarno-Suíça, se fez representar por seu protagonista Giovanni Venturini, e pela coadjuvante Aryadne Amâncio. O diretor Carlos Segundo encontra-se no eixo Paris-Los Angeles. Na primeira cidade, no complexo universitário da Sorbonne, ele faz estudos de pós-doutorado. Em Hollywood, batalha vaga para seu curta anterior, “Sideral”, figurar como finalista do Oscar.
No palco, Aryadne lembrou a luta do cineasta por tal vaga pela estatueta e o desejo, manifestado por Carlos Segundo, de estar no Festival de Brasília, que pela primeira vez selecionou um trabalho dele para sua principal competição de curtas. Mas os compromissos internacionais o impediram de estar na capital brasileira.
Giovanni Venturini fez fala curta e contundente. Depois de agradecer a Carlos Segundo que o escolheu para protagonizar “Big Bang”, ele ponderou: “em 15 anos de carreira, esta é a primeira vez que ganhei papel de protagonista e pude trabalhar personagem que foge do estereótipo atribuído aos portadores de nanismo”. Ou seja, provocar o riso fácil. E o ator externou desejo aos presentes: que “Big Bang” sirva como estímulo para que anões (“termo pejorativo” — avisou no debate do filme — que “deve ser evitado”) sejam convocados a desempenhar papéis complexos como o do eletricista ao qual emprestou seu talento e sentimentos. E, bem-humorado, brincou com a temática do filme: “que ‘Big Bang’ exploda a cabeça de vocês e traga novos corpos e novas representações para as telas do nosso cinema”.
O curta fluminense (de Niterói) “Ave Maria” foi representado por sua diretora, roteirista e coprodutora Pê Moreira. Ela lembrou que o filme trabalha novas configurações familiares, centradas na reelaboração e rasura de fronteiras binárias. Maria (Vênus Berliner) regressa ao seu lar após a morte do pai. No novo espaço, véspera de Natal, a jovem, um corpo trans, reativa memórias afetivas e constrói novas relações de afeto. No elenco, Aisha Jambo, Cyda Moreno (mãe da protagonista), Jota Vilar, Bruna G e Vitor Senra.
A sessão de “Mato Seco em Chamas”, com o Cine Brasília lotado, terminou em aplausos calorosos. Até porque o rap que embala a sequência final (“Faroeste DF”) é incendiário. O debate do filme também foi dos mais concorridos.
Adirley Queirós e Joana Pimenta (ela também diretora de fotografia), acompanhados das atrizes Joana Darc e Léa Alves e, também da diretora de arte Denise Vieira, e da produtora-executiva Andréia Queiroz, contaram que “Mato Seco em Chamas” foi realizado ao longo de 18 meses (sim, mais de 70 semanas), sem roteiro prévio, subordinado às provocações do acaso.
Ficção e documentário se amalgamaram no que Joana Pimenta, portuguesa formada nos EUA, chama de “etnografia sensorial”. Ou seja, uma dramaturgia construída para que pessoas reais fabulem suas vidas, imprimindo, junto com a equipe técnica e artística, narrativa que nada tem a ver com as convenções do cinema tradicional.
Adirley gosta de definir seu longa-metragem como “uma aventura lendária”, que soma “faroeste, bang bang, filme de ação, ‘Mad Max’, tudo”, sem a preocupação de realizar um filme redondo”. Totalmente aberto ao acaso, ele contou que a narrativa foi se processando ao longo de 18 meses, sem a certeza se resultaria num filme. “Brigávamos muito, Joana e eu, os dois diretores”. Tanto que “eu pensava: não vai sair um filme nenhum desse processo”. No dia seguinte, porém, equipe artística, técnica e atores estavam lá, cheios de ânimo, para mais um dia de trabalho.
“Originalmente, em 2017, 2018” — lembrou o ceilandense —, “Joana e eu idealizamos um filme que partia de uma ideia — ‘o petróleo é nosso’, ou ‘e se o petróleo fosse de nóis?’. Um fio narrativo se construiu como força motriz: sem água, numa seca brava, a Ceilândia começava a cavar poços artesianos. Só que em vez de água, encontrava petróleo”.
As “gasolineiras da kebrada”, três mulheres pretas, egressas do sistema prisional, se tornariam as lendárias Chitara, Léa e Andréia e assumiriam a distribuição do inflamável combustível, tendo motoboy como homens-vendedores-
Sempre apostando no acaso, o filme se compôs como um caótico retrato do Brasil desde o golpe que depôs Dilma Roussef e elegeu Jair Bolsonaro presidente do Brasil. Para embalar essa trama que dura exatos 153 minutos, Adirley, Joana e suas atrizes registraram cerimônia religiosa evangélica, encontros das irmãs (no filme e na vida real) Chitara e Léa (com o também irmão cinematográfico e real Cocão), a campanha política de Andréia Vieira, militante do PPP (Partido do Povo Preso, ou Preto!) e ação de um ‘caveirão’ policial, tipo Brucutu, o Brutus, na vida da comunidade periférica.
Tudo embalado com trilha sonora ‘mucho loca’, pois vai da religiosa “A Montanha”, na voz de Roberto Carlos, ao funk misógino “Helicóptero”; do brega de Muleka Sem Calcinha ao rap incendiário do Mente Consciente, passando pelo tema (também um rap) da candidata Andréia Vieira (letrado por ela, pelo próprio Adirley e por outros integrantes da equipe). Um filme incendiário, provocador e capaz de deixar espectadores — pelo menos aqueles que gostam de narrativas mais lineares — chamuscados e tontos.