Público e Críticos elegem “A Filha do Palhaço” o melhor filme da Mostra de Cinema de Gostoso

Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso

A Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso, no litoral do Rio Grande do Norte, encerrou sua nona edição com a entrega de cinco prêmios “Cascudo” (tributo ao folclorista Luiz da Câmara Cascudo) a quatro filmes.

O grande vencedor foi o cearense “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes, eleito pelo Público e pela Crítica, o melhor da competição de longas-metragens. O acriano “Noites Alienígenas”, de Sergio de Carvalho, ganhou Prêmio Especial.

A dobradinha de longas premiados foi produzida, portanto, nas regiões Nordeste (o vencedor) e Norte (o destacado com láurea extraordinária). Veio também do Norte o curta eleito pelo Público, o rondoniense “Ela Mora Logo Ali”, que poderia chamar-se “Dom Caixote”, por seu generoso e tocante tributo ao clássico cervantino “Dom Quixote de la Mancha”. Dirigido pela dupla Fabiano Barros e Rafael Rogante, o filme é uma construtiva homenagem ao poder das fábulas literárias no imaginário humano.

A Crítica preferiu outro curta-metragem, o paulistano (de Assis, município interiorano) “Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo”, de Guilherme Xavier Ribeiro, produção da Cooperativa Oeste de Audiovisual.

“A Filha do Palhaço” é o oitavo longa-metragem de Pedro Diógenes, um dos fundadores do coletivo Alumbramento, de Fortaleza. Protagonizado por Démick Lopes (o palhaço) e Lis Sutter (sua filha Joana), o filme traz, pela primeira vez a uma ficção cearense, uma das forças motrizes da cultura local: o humor de artistas populares, que  — travestidos ou não — animam churrascarias, bares e boates, em shows que mobilizam conterrâneos e turistas. No caso, a fonte inspiradora da narrativa é o criador da hilária e já quarentona personagem Raimundinha, o transformista Paulo Diógenes, primo do cineasta.

Renato, o protagonista de “A Filha do Palhaço”, ‘monta-se’ noites a fio nas formas volumosas e caricatas de Silvanelly. Ele, que vive a perda do companheiro, morto em acidente de moto, recebe a visita da filha adolescente Joana, fruto de casamento heterossexual que abandonara ao descobrir-se homoafetivo. A narrativa se construirá a partir do encontro de pai e filha, que mal se conheciam, e o resultado confirma a força do recente cinema ficcional cearense, que tem carreado para o estado nordestino uma série de prêmios. Foi assim com “Pacarrete”, de Allan Deberton, “Greta”, de Armando Praça, e agora com “A Filha do Palhaço”. Entre os três filmes, um ponto em comum: o desejo de realizar narrativas criativas e capazes de dialogar com o público.

Eugenio Puppo e Matheus Seindfeld, curadores da Mostra de Cinema de Gostoso, justificaram o Prêmio Especial atribuído a “Noites Alienígenas”, do Acre, que fôra o grande vencedor do Festival de Gramado, em agosto último. “A curadoria atribuiu esta láurea ao acriano pela excelente votação recebida do público (ficou em segundo lugar, com pontuação próxima à de “A Filha do Palhaço”) e por seus méritos artísticos”. O longa vindo da Amazônia baseia-se em livro de seu diretor (o romance “Noites Alienígenas”) e mostra o trágico destino de um jovem, Rivelino (Gabriel Knoxx), que vive na periferia pobre de Rio Branco. Acompanhamos, também, a saga de amigo de infância de Rivelino, o jovem Paulo (Adanilo), indígena não-aldeado. Ele vive em tempos de transição: a outrora ecológica capital do Santo Daime e de experiências com ayuasca assiste à brutal chegada de quadrilhas do Sudeste (como o PCC e o Comando Vermelho). O filme dá destaque a uma Amazônia urbana e dilacerada, onde o tráfico de drogas (rota seca da cocaína e do crack) chega para antagonizar valores ancestrais (de sua população indígena ligada à floresta) a um mundo urbano marcado pela violência de gangues colocadas a serviço do crime organizado.

O curta “Ela Mora Logo Ali” (ou Dom Caixote) também vem da Amazônia, no caso do estado de Rondônia. Mas sua história é bem diferente da de “Noites Alienígenas”. No centro da narrativa está uma senhora que vende bananas fritas (plátanos) pelas ruas de uma pequena cidade. Ela deixa o filho, paralítico, em casa, sob os cuidados de sua irmã. Ao regressar ao lar, de ônibus, a vendedora se encanta com livro lido por jovem passageira (“Dom Quixote”). A moça resume trechos do seminal romance cervantino para a senhora. Em casa, esta recria a história para o filho, que sorri feliz. Só que a moça do ônibus desaparece antes de chegar ao desfecho da trama de “Dom Caixote” (como mãe e filho conhecem o delirante fidalgo viciado em romances de cavalaria).

“Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo” é quase um filme-manifesto da Cooperativa Oeste, que mobiliza, na cidade de Assis e adjacências, 27 produtores e realizadores regionais (oeste paulista, próximo ao Mato Grosso e Paraná).

Seu diretor, Guilherme Xavier Ribeiro, nascido no município interiorano de 100 mil habitantes, formou-se em Publicidade na ECA-USP. Trabalhou na MTV Brasil, para a qual dirigiu dezenas de projetos, incluindo um documentário sobre o rapper Sabotage (1973-2003). Mas regressou à cidade natal, Assis, disposto a implantar com amigos o Polo Audiovisual do Velho Oeste. É a este projeto que ele se dedica e no qual se insere “Robôs do Interior Profundo”.

O filme, premiado pelo Canal Brasil no Festival Internacional de Curtas de São Paulo (Kinoforum), em agosto último, conta a história de Luquinha, jovem interiorano e periférico, que tenta recuperar sua égua de estimação, montado numa moto, assim como seus companheiros. E tal resgate se dará em movimentada e ultrabarulhenta avenida de cidade que vive dos lucros do agronegócio (Assis integra o circuito paulista da cana-de-açúcar — e álcool) e cultiva moral conservadora.

Com a mecanização das lavouras, populações rurais migraram para as periferias urbanas. Mas ainda se apegam à cultura roceira. Luquinha anda em bando de motociclistas e se comunica com o linguajar da ‘Quebrada’ (distante do caipirês), mas não mede esforços para recuperar sua égua de estimação. Como Guilherme Xavier Ribeiro ocupa-se em refletir (sobre) e realizar filmes ambientados e produzidos no interior do Brasil, ele teme que surja uma vaga de estereótipos. Com o triunfo do bolsonarismo, o interior corre risco de ser estigmatizado como território unicamente conservador. E, assim, ser visto sem nuances.

Na Mostra de Gostoso, outro filme que tem o interior como locus  —“Carvão”, de Carolina Markovicz — foi exibido e debatido (com sua produtora, Zita Carvalhosa, da Superfilmes). Ao contrário de “Robôs no Interior Profundo”, o longa  “Carvão” desenha retrato brutalista de família disfuncional de trabalhadores carvoeiros, que, para aumentar seus ganhos, aceita abrigar um traficante-fugitivo, vindo da América Hispânica.

Depois do “favela-movie”, tudo indica que assistiremos a uma onda de “interior-movie”. O tema chega para mobilizar necessárias reflexões sobre os novos rumos do cinema brasileiro em tempos dominados pelo conservadorismo da extrema-direita bolsonarista. A Mostra de Gostoso foi palco de debate que deve fertilizar-se e crescer em torno do tema.

A nona edição do festival potiguar terminou com a exibição de “Mato Seco em Chamas”, narrativa com duas horas e meia de duração, comandada por Adirley Queiroz e Joana Pimenta. Este longa vibrante, que vem fazendo carreira em festivais internacionais e nacionais (está em Mar del Plata e segue para o Festival de Brasília), reúne motoqueiras ceilandenses, as ‘gasolineiras’, dedicadas ao comércio ilegal de combustível. Elas são a força motriz do filme.

Confira os vencedores:

. “A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes (Ceará) – melhor longa-metragem pelo Júri Popular e Prêmio da Crítica
. “Ela Mora Logo Ali” (Dom Caixote), de Fabiano Barros e Rafael Rogante (Rondônia) – melhor curta-metragem pelo Júri Popular
. “Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo”, de Guilherme Xavier Ribeiro (Assis, São Paulo) – Prêmio da Crítica de melhor curta-metragem
. “Noites Alienígenas”, de Sérgio Carvalho (Acre) – Prêmio Especial

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