Bertolucci e Vandré mantiveram diálogo surreal no Festival de Brasília

Foto: Bernardo Bertolucci com Fiorella Amico e Joel Barcellos (Acervo do Festival de Brasília)

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue série de relatos, contendo lembranças ambientadas em festivais ou mostras cinematográficas (brasileiros ou internacionais).

A décima-quinta dessas lembranças tem o Festival de Brasília como cenário, um cineasta italiano, Bernardo Bertolucci, no auge da fama (com a estante recheada de estatuetas do Oscar), e um compositor e cantor paraibano, Geraldo Vandré, como personagens centrais.

O ano era o de 1994. O cinema brasileiro ensaiava renascimento depois de quase desaparecer nos anos Collor. Conseguir seis filmes inéditos para o festival candango e seis para Gramado resultava em esforço sobrehumano. Gramado se internacionalizou como competição de recorte latino, pilotada por Walter Hugo Khouri, e Brasília continuou caçando cineastas (e filmes) a laço. A rivalidade entre os dois festivais mais antigos e resistentes do país cresceu e chegou a causar mal-estar.

Khouri, que jurava dialogar, em seus dramas povoados de mulheres louras e muito belas, com Michelangelo Antonioni, e não – como todos pensavam – com Ingmar Bergman, conseguiu trazer o diretor de “O Eclipse” a Gramado. A passagem do mestre peninsular, mesmo mudo, pois um derrame lhe tirara a voz, causou funda emoção.

O Festival de Brasília, que não queria ficar para trás, contra-atacou trazendo Bernardo Bertolucci, então com 53 anos e famoso por filmes como “O Conformista”, “A Estratégia da Aranha”, “Último Tango em Paris”,  “Novecento” e “La Luna”. Ele era, naquele momento, um astro planetário. Afinal, seu suntuoso “O Último Imperador” (1987), ganhara quantidade invejável de estatuetas (nove) numa das noites mais belas do Oscar. Depois do Imperador chinês, realizou um belo filme no Saara africano (“O Céu que nos Protege”, 1990) e “O Pequeno Buda” (1993), em território indiano, fruto de suas ligações com o budismo.

O diretor que chegava a Brasília desfrutava, portanto, de sucesso único e de enormes orçamentos com os quais realizava filmes internacionais. E para os quais mobilizava astros que iam de De Niro a Ruyichi Sakamoto, de Gérard Depardieu a Peter O’Toole, de Debra Winger a Keanu Reeves.

Que forças conseguiram tirar o italiano do circuito Roma-Paris-Nova York-Los Angeles para participar de um festival de cinema brasileiro?

Foram muitas. E todas movidas por vínculos de amizade. Na juventude, Paulo Cezar Saraceni, Gustavo Dahl e Joel Barcellos mantiveram estreitos laços com cineastas italianos. Saraceni estudou no Centro Experimental de Cinematografia de Roma, onde conviveu com Bertolucci, Marco Bellocchio e Gianni Amico. Entre os amigos de então estava o diplomata Arnaldo Carrilho.

Pois foi esse grupo que convidou Bertolucci a vir a Brasília participar de homenagem a Gianni Amico (1933-1990), que seria acompanhada pela viúva Fiorella Amico e pelo filho Olmo (assim batizado em homenagem ao personagem de Depardieu em “Novecento”). O diretor de “Antes da Revolução” não teve como dizer não a amigos de tanto tempo.

Amico realizara, no Brasil, o filme “Tropici” (Trópicos, 1968), um epígono de “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos. Com Joel Barcellos no elenco e o Nordeste dos retirantes como paisagem física e humana, “Tropici” seria apresentado no núcleo histórico do Festival de Brasília, valorizadíssimo pela curadoria candanga da época.

Naquele tempo, sob o comando de Maria Luíza Dornas, força motriz do festival brasiliense, havia fina sintonia entre a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro e a mais tradicional e duradoura festa cinematográfica do Distrito Federal (e do Brasil). A Sinfônica acompanhou sessões históricas de filmes mudos como “Limite”, de Mário Peixoto, e “Lábios sem Beijos”, de Humberto Mauro.

Em 1994, porém, o filme de abertura, na Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional (1.300 lugares), seria o vencedor da primeira edição do festival criado por Paulo Emilio Salles Gomes e equipe – “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (1965), de Roberto Santos. Para representar o filme foram convidados, entre outros, o ator Leonardo Villar, o Matraga roseano-robertiano, e o autor da trilha sonora, Geraldo Vandré. Que por seu trabalho, se tornara íntimo de João Guimarães Rosa (1908-1967) e família.

O Governo Itamar Franco vivia seu crepúsculo e anunciava-se a era Fernando Henrique Cardoso, que seria empossado depois do terremoto Collor e da transição de itamariana. Ministros do governo que se encerava e do que viria enfeitavam a sessão inaugural da vigésima-sétima edição do festival candango.

Os fotógrafos a tudo registravam. Um dia depois da noite que a todos encantou pela beleza de “Matraga”, fui procurada pelo ator Leonardo Villar. Ele queria cópias das fotos publicadas no Jornal de Brasília, veículo no qual eu trabalhava.

Conversei com o Departamento Fotográfico do JBr e perguntei se não podiam fazer ampliações das fotos do grande Leonardo Villar cercado de convidados da noite inaugural. O editor de fotografia me explicou que não era prática corrente produzir este tipo de material para “dar de presente”. Mas — ponderou — se o comando do jornal (que sonhava ser “o Washington Post do cerrado”, segundo projeto de seu mais famoso editor, Luiz Guttenberg) permitisse, ele o faria.

Obtida a necessária autorização e as imagens, segui rumo ao hotel com quatro fotos enormes, maravilhosas, todas com Leonardo Villar como figura central. Qual não foi minha decepção quando, ao invés de agradecer, ele disse com voz contida, mas triste: “ah, nenhuma dessas é a que eu queria”. E me revelou o conteúdo da foto mais desejada: ele “em companhia do (então) ministro da Fazenda Ciro Gomes”.

Naquele momento, Leonardo Villar, o Zé do Burro de “O Pagador de Promessas”, Palma de Ouro em Cannes 1962, o Matraga que subiria aos céus “nem que fosse a porrete”, se mostrava um ser humano comum. Aos 71 anos, queria uma foto dele com Ciro Gomes para guardar em seu arquivo pessoal. Fiquei desconsertada. Tão desconsertada que nem sei se providenciei cópia da referida imagem.

Geraldo Vandré, então com 59 anos, já estava afastado do mundo dos festivais da canção e do cinema. Mas aceitou convite que transmiti a ele para ir a Brasília. Nos anos 1990 mantivemos intensa convivência em São Paulo. Ele frequentava nossa casa na Alameda Santos e falava de seus planos. Em especial de um projeto: realizar uma ficção científica cinematográfica.

Sempre de terno, muito elegante, Vandré passeava pelo hotel que hospedava os convidados do festival brasiliense, conversava com as pessoas, sempre com seus diálogos sintéticos e misteriosos. E fazia algumas fotos com os fãs.

Bertolucci seguia sua agenda no festival. Seu primeiro compromisso fora concorridíssima coletiva de imprensa. Ele falou em sua língua materna, o italiano, e foi traduzido por Arnaldo Carrilho. Depois participaria de debate sobre a obra do amigo Gianni Amico, ao lado de Fiorella, Saraceni, Barcellos e Carrilho.

Vandré assistiu a tudo com muita atenção. Quando a palestra terminou, ele se dirigiu a Bertolucci e começou a explicar (em português) seu projeto de ficção científica. O cineasta não entendia nada. Mas ouviu aquele interlocutor elegante, de terno, cabelos muito bem penteados e gestos serenos. O projeto de Vandré nunca saiu de sua galeria de sonhos não realizados.

Na noite derradeira do Festival de Brasília número 27, Bernardo Bertolucci subiu ao palco do Cine Brasília para receber Troféu Candango Especial por sua trajetória. O fez de forma tão contida, que muitos viram desdém em seu gestual. Quem recebera tantas estatuetas de Hollywood, parecia não entender por que recebia um desconhecido Troféu Candango. Quem comparar as fotos de Antonioni recebendo o Kikito em Gramado com as de Bertolucci recebendo o Candango dará razão aos que viram certa “má vontade” no diretor do futuro “Os Sonhadores”.

Mesmo assim, centenas de cinéfilos guardaram belas lembranças daquele Festival de Brasília do Cinema Brasileiro da década de 1990. No caso dessa espectadora, profissão repórter, que amava Bertolucci (1941-2018) e Leonardo Villar (1923-2020), ele foi inesquecível.

Geraldo Vandré, o único integrante da famosa trinca que movimentou aquele festival, ainda está, felizmente, entre nós e fará 90 anos em 2025. Ele e seu conterrâneo Vladimir Carvalho.

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