O adeus da Bahia a Chico Liberato, artista plástico e diretor de “Boi Aruá” e “Ritos de Passagem”

Por Maria do Rosário Caetano

Na semana em que o país assistiu ao renascimento do Ministério da Cultura e viu duas mulheres baianas – a ministra Margareth Menezes e a titular da Secretaria do Audiovisual, Joelma Oliveira Gonzaga — assumirem o comando da política cultural-cinematográfica do Governo Lula 3, Salvador perde um de seus cineastas mais dedicados e longevos, Chico Liberato, aos 86 anos.

Artista plástico e diretor de uma dezena de curtas-metragens e dois longas (“Boi Aruá”, de 1985, e “Ritos de Passagem”, de 2014), Francisco Liberato de Mattos dedicou sua vida ao desenho. E ao “cinema desenhado”. Ou seja, aos filmes de animação.

A vida do animador baiano, nascido em Salvador, em 1936, foi vocacionada primeiro às artes plásticas. No Rio de Janeiro, ele frequentou os Cursos Livres do MAM (Museu de Arte Moderna), tendo Ivan Serpa como professor. Participou das Bienais de Artes Plásticas da Bahia, que ele criara com os amigos Juarez Paraíso (o bedel Pedro Arcanjo do filme “Tenda dos Milagres”) e Riolan Coutinho, em 1966 e 1968. Devotou-se, no alvorecer da década de 1970, sempre em sua Salvador natal, a ampliar o alcance de suas criações plásticas. Entusiasmado com a nascente Jornada de Curta-Metragem da Bahia (depois Jornada de Cinema), deu início à realização de seus primeiros filmes, ainda na bitola 16 milímetros.

O primeiro, o curta “O que os Olhos Vêem”, ficou pronto em 1973. Dois anos depois, realizava “Piedro Piedra”, seguido de “Eram-se Opostos” (1978). Quando a febre do cinema Super-Oito tomou conta do país (e da Bahia com uma nova geração formada com Edgard Navarro, Pola Ribeiro, José Araripe, entre outros), ele já tinha experimentado o suporte com seu “Deus Está Morto (1974). Na década de 1980, Chico trabalhou na equipe de “Muçagambira”, animação dirigida por sua mulher, a cineasta Alba Liberato, mãe de seus filhos Flor Violeta, Cândida Luz e Ingra Liberato, do músico João Liberato e do escritor Timóteo.

Pelos nomes dos filhos, dá para ver que o casal Chico e Alba Liberato era devoto da Natureza. Por isso, fixaram-se em bucólico sítio-casarão-ateliê, que construíram e decoraram com esmero e belas obras de arte. Escolheram uma região (futuro “bairro”) bem afastada – a  Estrada Velha do Aeroporto.

Quem visitava os Liberato, nos anos de ouro da Jornada de Cinema da Bahia, sentia-se em plena zona rural do município de Salvador. Mas a capital baiana (já com três milhões de habitantes) foi crescendo de tal modo, que, em 2016, durante as filmagens da série “O Senhor das Jornadas”, de Jorge Alfredo “Samba Riachão” Guimarães, a bela residência-ateliê, que continuava linda, já estava cercada de significativa vizinhança. Mesmo assim, o casal recebeu, com a paz costumeira, a fina flor do cinema baiano, que prestaria depoimentos sobre a trajetória de Guido Araújo (1935-2017) à série de Jorge Alfredo. O diretor da Jornada e de “As Velas do Recôncavo”, presente às gravações, morreria um ano depois.

Liberato e família

Chico Liberato, que dirigiu o Museu de Arte da Bahia de 1979 a 1991, viveu sempre muito próximo do cinema e da Jornada da Bahia, para a qual fazia o cartaz de cada nova edição, capa do catálogo e toda a programação visual. Ele consumiria, na década de 1980, quase cinco anos de sua vida ao que seria seu primeiro longa-metragem, o singelo “Boi Aruá”. O filme foi feito artesanalmente, de 1981 até 1985. Como sempre, ele buscou inspiração na cultura popular.

“Boi Aruá” soma a lenda do Boi Encantado e de Aruá. Sua narrativa (roteiro de Chico e Alba Liberato) se dá em ritmo de cordel e nos apresenta um boi encantado, indomável e invencível, o único capaz de desafiar os domínios dos vaqueiros. Quando, porém, ele é laçado, transforma-se em bezerro. Dali em diante, o animal trará transformações às vidas dos sertanejos. Chico e seu pequeno exército de ajudantes produziram 20 mil desenhos para compor os 85 minutos do filme. Na trilha sonora, Elomar, Carlos Pita, Ernst Widmer e Robério.

Já sonhando com um novo longa-metragem (“Ritos de Passagem”, que só lançaria em 2014), Chico Liberato continuou realizando seus curtas-metragens – “O Pedido.Pax” (1988), “Carnaval” (1989), “Um Outro” (2009) e “Amarilis” (2014). Assinou, também, o projeto visual do Carnaval da TV Educativa da Bahia, em 2013.

“Ritos de Passagem” é uma fantasia, inspirada na cultura popular nordestina, na qual nos deparamos, no Além-Vida, com o Santo e o Guerreiro. Os dois navegam pelo Rio da Morte e refletem sobre a vida que levaram no mítico sertão brasileiro. A trilha sonora traz a assinatura de João Liberato.

O animador Quiá Rodrigues, diretor de “De Janela pro Cinema”, registrou, em seu espaço digital, o que sentiu ao saber da morte do amigo e colega de ofício: “Que potência uma família que é fruto do amor e da bem-querência. Chico é avatar de tempos imemoriais, artista, ser humano ímpar. Sou grato por ter compartilhado momentos lindos com ele e Alba, dois seres de luz. Chico foi pioneiro e mestre de gerações. Seu encantamento o eleva acima de nós e sua força se soma à grande energia dos que transcendem. Vá, Chico, o Boi virou bezerro e te conduzirá pelos horizontes infindáveis”.

Quem quiser conhecer trabalhos plásticos do artista baiano (e trechos de seus filmes) deve acessar o espaço digital criado por sua família, tendo à frente a cineasta Alba Liberato e a filha Ingra, bailarina e atriz, do elenco de várias novelas, duas delas sucessos da extinta Rede Manchete – “Pantanal” (1990) e “Ana Raio e Zé Trovão”, esta protagonizada por ela e por Almir Sáter.

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