Apaci presta tributo a Vandré com exibição de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
Por Maria do Rosário Caetano
O cantor e compositor paraibano Geraldo Vandré, de 87 anos, receberá tributo da Apaci (Associação Paulista de Cineastas), na noite dessa terça-feira, 23 de maio, no Cine Bijou, por sua contribuição ao cinema brasileiro e, em especial, pela trilha sonora de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”.
O longa-metragem de Roberto Santos, adaptação de conto homônimo de Guimarães Rosa, representou o Brasil no Festival de Cannes e conquistou os principais prêmios na primeira edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 1965. Ele será exibido e debatido pelo próprio compositor, pela produtora Marília Santos, pelo professor da USP e ex-secretário de Cultura Carlos Augusto Calil, e pelo pesquisador Inimá Simões, biógrafo de Roberto Santos. Participará, também, do debate, o diretor de fotografia Roberto Santos Filho, o Tuta, que era criança quando o pai filmou “Matraga”, em São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito do Serro, Minas Gerais.
A Apaci vem promovendo, semanalmente, sua “Sessão Apacine”, destinada à promoção do cinema paulista. Tudo começou com exibição e debate de “O Pagador de Promessas”, ano passado, na data comemorativa dos 60 anos da conquista da Palma de Ouro de Cannes por essa realização de Anselmo Duarte (única ganhadora, pelo Brasil, na categoria principal). O filme foi apresentado e debatido, no Cine Bijou, pelo produtor Aníbal Massaini, da Cinearte.
O cineasta Joel Pizzini, que coordena a “Sessão Apacine”, conta que a cada edição, o evento cresce e amplia a mobilização da categoria cinematográfica paulistana e o público. A parceria com a Spcine (empresa municipal de fomento ao cinema produzido em São Paulo) e o Cine Bijou-Satyros vem ganhando tamanho relevo – assegura o diretor de “Caramujo Flor” e “Zimba” – que “já temos diversos filmes e debates programados para os próximos meses”. Entre eles, Pizzini destaca o encontro com Jean-Claude Bernardet e seus documentários “São Paulo, Sinfonia e Cacofonia” e “Sobre Anos 60”, e com Jorge Bodanzky e seu longa-metragem mais famoso e influente, “Iracema, Uma Transa Amazônica” (parceria com Orlando Senna). A eles se somarão Joyce Prado (com “Chico Rei Entre Nós”) no “Diretoras Mulheres em Foco”; filme de Rogério Moura com participação da atriz Zezé Motta; de Francisco Ramalho Jr, produtor (de vários filmes de Hector Babenco) e diretor (“À Flor da Pele”, “Besame Mucho”, “Canta Maria”) e de Hermano Penna e seu “Sargento Getúlio”.
Para esta Sessão Apacine que exibirá a adaptação cinematográfica do romance de João Ubaldo Ribeiro, a Associação Paulista de Cineastas espera contar com o ator Lima Duarte, de 93 anos, multipremiado pelo personagem do autoritário Getúlio, encarregado de conduzir um preso pelo sertão nordestino.
Pizzini, diretor de vários longas-metragens (um deles, ainda inédito – o épico documental “Rio da Dúvida”), relembra alguns dos programas já apresentados pela Sessão Apacine: exibimos e debatemos “Bocage, o Triunfo do Amor”, em memória de Djalma Limongi, “Doramundo”, de João Batista de Andrade, “O Grande Momento”, de Roberto Santos. Em “Noite Negras Estrelas”, mostramos produções de realizadoras afro-brasileiras. E apresentamos o documentário “Fela Kuti”, de Joel Zito Araújo, a ficção “De Passagem”, de Ricardo Elias, em homenagem aos 60 anos de atividade de sua produtora, Assunção Hernandez, seleção de filmes da “Caravana Farkas”, com Sérgio Muniz, e “Ori”, de Raquel Gerber (com presença dela, de Cristina Amaral e Adriana Couto, da TV Cultura, no debate). Contamos até com um convidado internacional, o angolano Fradique, que apresentou o longa-metragem “Ar Condicionado”.
A noite dessa terça-feira da Sessão Apacine será de dupla homenagem. Além de Geraldo Vandré, Marília Santos, produtora e viúva de Roberto Santos, será festejada e receberá, como Vandré, uma gravura de Antonio Peticov, somada ao título de sócia-benemérita da Associação Paulista de Cineastas.
Geraldo Vandré, nascido em 12 de setembro de 1935, em João Pessoa, é lembrado no meio cinematográfico pela arrebatadora trilha composta para o clássico “A Hora e Vez de Augusto Matraga”. Mas ele tem créditos (ou participação) em outras produções audiovisuais. Tudo começou em 1962, quando, junto com Carlos Lyra, assinou a trilha sonora de “Couro de Gato”, episódio de Joaquim Pedro de Andrade no longa “Cinco Vezes Favela”, produção do CPC-UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional de Estudantes). Dois anos depois, ele comporia a trilha de “Matraga”, atendendo a convite de Roberto Santos (1928-1987).
Em 1968, o compositor se envolveria com o longa-metragem “Quelé do Pajeú”, de Anselmo Duarte. Além de atuar no filme, assinaria sua trilha sonora. Mas 1968 foi um ano muito complicado na vida de Vandré. Ele atuou no filme (mas não aparece na montagem final, que estreou em 1969). Quem acabou assinando a trilha de “Quelé” foram o Trio Marayá e Theo de Barros, com canções de Hilton Acioly (todos músicos ligados à carreira de Vandré). Com o exílio no Chile e andanças por diversos países europeus e hispano-americanos, a carreira do compositor paraibano sofreu solução de continuidade.
No Brasil, suas composições (em especial “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores” ou “Caminhando”), algumas vezes cantadas por ele mesmo, costumam aparecer em filmes. Mas sua imagem aparece pouco. Até porque ele, que regressou ao Brasil em 1974, deixou de fazer shows e de conceder entrevistas. O faz raramente.
Nos anos 2000, o interesse por Geraldo Vandré ganhou relativa visibilidade. Primeiro pela realização do documentário “O que Sou Nunca Escondi”, de Helena Wolfenson, Alexandre Napoli e Willian Biagioli, produção universitária (2006). Vandré não deu depoimento aos três jovens, mas sua história foi contada por pessoas que conviveram muito de perto com ele, em diversas fases de sua vida. E contou com imagens fixas produzidas pelo fotógrafo Bob Wolfenson, pai de Helena.
Quatro anos depois, em 2010, o jornalista Geneton Moraes Neto (1956-2016) conseguiu entrevistar Vandré para o “Dossiê Globonews”. Programa tenso, inquisitorial, mas de imenso valor, pelo atrevimento (ou “sensacionalismo”, no entender de muitos) do entrevistador. E por sua raridade. O “Dossiê” está disponível no streaming da Globoplay.
O melhor estava por vir. Em 2011, Charles Gavin (direção e apresentação), e Tárik de Souza (pesquisa e roteiro), realizaram uma pequena jóia – o programa “Som do Vinil”, patrimônio do Canal Brasil, sobre o elepê “Quarteto Novo” (gravadora Odeon, 1967). Vandré, mais uma vez, não dá depoimento ao programa. Mas está presente em cada um dos 28 minutos do documentário. Afinal, ele foi um dos incentivadores do disco. E sua voz aparece em meio aos inventivos sons gerados pelos músicos Theo de Barros, Hermeto Paschoal, Heraldo do Monte e Airto Moreira.
O rigoroso roteiro de Tárik de Souza, a condução elegante do titã Charles Gavin e os refinados depoimentos dos músicos mostram que o paraibano Vandré foi o mentor, mecenas (sim, patrocinador com dinheiro do próprio bolso) e colaborador (com belos ‘vocalises’ e muitas composições reinventadas) das pesquisas sonoras empreendidas pelo Quarteto Novo. O conjunto foi criado para acompanhá-lo em shows e gravações. O “Som do Vinil” só chegaria a resultado tão surpreendente (neste programa dedicado à criação de grandes discos de nossa MPB) com o “Araçá Azul”, de Caetano Veloso.
Depois de assistir ao “Som do Vinil – Quarteto Novo” o público é levado a concluir que Geraldo Vandré está para as investigações musicais dos quatro músicos na mesma medida em que o paraibano-pernambucano Ariano Suassuna (1927-2014) esteve para o Quinteto Armorial.
O compositor nordestino sempre se alimentou da cultura popular, dos aboios, repentes e toadas sertânicas. Tomado de sentimento telúrico, queria mostrar que o Brasil dispunha de ricas matrizes para produzir sons de primeira linha. Não necessitava de empréstimos externos (antes da globalização, esta questão – o nacionalismo na arte – tinha poder mobilizador). Por isto estimulou e bancou as pesquisas de alguns dos maiores instrumentistas brasileiros – os craques Hermeto Paschoal (86 anos), Heraldo do Monte (88 anos), Airton Moreira (81 anos) e Theo de Barros (1943-2023).
O grupo, motivadíssimo, mergulhou nas fontes originais do cancioneiro nordestino. E criou os belos sons e arranjos que acompanham as principais faixas do disco: “O Ovo” (Vandré & Hermeto), “Fica Mal com Deus” e “Canta Maria” (ambas de Vandré), Canto Geral (Vandré & Hermeto), “Síntese” (Heraldo), “Misturada” (Airto & Vandré), “Vim de Sant´Anna” (Theo de Barros) e “Algodão” (Gonzaga & Zé Dantas).
O Quarteto Novo, que também acompanhou a vitoriosa “Ponteio”, de Edu Lobo, em badalado festival da canção, encerrou suas atividades em 1969. Não havia mais clima. Vandré, perseguido por causa de “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores”, a “Marselhesa brasileira” (segundo Millor Fernandes), estava exilado. Mas o grupo deixou o fruto de suas ousadas pesquisas registrados no imprescindível elepê “Quarteto Novo” (relançado em 1973 e, mais recentemente, em CD) e no “Canto Geral” (Geraldo Vandré, 1968).
O trabalho audiovisual mais recente em que Vandré “aparece” (com suas canções ou em fotos fixas) é a série “Noites de Festival”, que Ricardo Calil e Renato Terra realizaram em seis capítulos, para o Canal Brasil. Calil relembra a “participação” da obra de Vandré na série: “ele está presente com ‘Disparada’, cantada por Jair Rodrigues no Festival de 1966, e depois, em outro episódio, relembramos o que aconteceu no Festival de 1968, o que antagonizou “Sabiá”, a vencedora, e “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores”. Quem quiser assistir à série a encontrará no streaming (Globoplay).
A trilha sonora de Geraldo Vandré para “A Hora e Vez de Augusto Matraga” encantou até o ultraexigente João Guimarães Rosa (1908 -1967). O grande ficcionista mineiro ficara muito insatisfeito com a adaptação de “Grande Sertão: Veredas”, pelos irmãos Santos Pereira (Geraldo e Renato), em 1964. O filme, concebido para ser um épico, resultou – segundo o crítico Sérgio Augusto – “num hípico”, com cavalos desembestados para todos os lados. Já da adaptação do longo conto (uma novela?) “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, com um Leonardo Vilar iluminado na pele do fazendeiro-penitente, deixou Rosa muito feliz. Ele gostou tanto do filme, quanto da trilha criada por Vandré. Em 1968, um ano depois da morte do escritor, sua viúva, Dona Aracy, daria guarida ao compositor em sua casa, no Rio, e ajudaria a montar o plano de fuga que levaria o paraibano ao exílio.
Quem assistir ao filme “A Hora e Vez de Augusto Matraga” e “Som do Vinil – Quarteto Novo” (este no Canal Brasil-Globoplay) terá material para profundo mergulho nas complexas sonoridades produzidas por Vandré e seus parceiros e músicos. E poderá constatar que ele é mais, muito mais, que um compositor de música de protesto.
Com o sucesso avassalador das insubmissas “Disparada” e “Prá Não Dizer que Não Falei das Flores”, as composições líricas do artista nordestino acabaram eclipsadas. E ele estigmatizado como “compositor de música engajada”. Só o vê assim quem não conhece seu repertório. Em sua fase áurea (até 1968), mostra a pesquisadora Francisca de Assis Oliveira (em estudo apresentado no XXII Simpósio Nacional de História), Vandré compôs, sozinho, ou com parceiros, 43 canções. Sendo vinte delas em 1965 e 66, seus anos mais produtivos. Nas últimas décadas, o artista recluso tem se dedicado a composições para piano, que mostra em raríssimos recitais. Cinco anos atrás, ele participou de dois concertos com a Orquestra Sinfônica da Paraíba.
Sessão Apacine
Tributo a Geraldo Vandré e exibição de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”Roberto Santos, 1965, 110 minutos)
Debate: Marília e Roberto Santos Filho, Geraldo Vandré, Carlos Augusto Calil e Inimá Simões
Data: 23 de maio
Local: Cine Bijou (Sala Patrícia Pillar), Praça Roosevelt, São Paulo
Horário: 19h
Lotação: 80 lugares
Ingressos: 10 reais