Horror e nojo à tortura

Foto © Estevam Avellar

Por Helvécio Ratton

Não tenho por hábito polemizar com jornalistas a respeito de meus filmes, mas como não é a primeira vez que Maria do Rosário faz comentários reducionistas e superficiais sobre “Batismo de Sangue”, decidi escrever estas linhas para expor, uma vez mais, as razões que me levaram a realizar o filme com tal contundência.

A tortura está no centro da narrativa de “Batismo de Sangue”. Foi através de intensas sessões de tortura dos frades dominicanos Fernando e Ivo que a repressão chegou ao líder revolucionário Carlos Marighella e o assassinou. Foram as sequelas da tortura que levaram Frei Tito a se suicidar na França, onde estava vivendo em liberdade. Quando decidi adaptar para o cinema estes fatos de nossa História, narrados por Frei Betto no livro homônimo, tomei algumas decisões que iriam definir o rumo do filme que eu queria fazer.

A sociedade brasileira sempre foi complacente em relação à prática de tortura em presos comuns nas nossas delegacias. Durante a ditadura militar, essa prática continuou a ser permitida em larga escala e passou a ser aplicada também contra aqueles que se opunham ao regime, os presos políticos. Não por acaso, o delegado Fleury, símbolo da violência e do extermínio de presos comuns, foi cooptado pelos militares para exercer suas atividades na repressão aos movimentos contra a ditadura.

Foi Fleury quem comandou as operações que levaram à prisão dos frades dominicanos e à morte de Marighella. Pelos serviços prestados, foi condecorado e protegido pelo regime militar. Fleury não era um monstro, era um funcionário público considerado exemplar por servir aos interesses do estado.

Ao contrário de nossos vizinhos da América do Sul, em especial Argentina e Chile, o Brasil não abriu os arquivos da ditadura e nem puniu os militares e policiais torturadores. No Chile, há poucos dias atrás, mais um general foi condenado à prisão, mesmo na idade de 92 anos, por crimes cometidos durante a ditadura de Pinochet.

Aqui não, o presidente que há pouco deixou o poder foi eleito fazendo apologia da tortura e dos torturadores. Seria apenas coincidência o fato da grande imprensa brasileira se referir à ditadura em nosso país como “ditabranda”, que não teria tido os horrores e excessos dos países vizinhos? Ou será que a transição democrática que ocorreu no Brasil, controlada pelos próprios militares, conseguiu apagar da memória coletiva os crimes cometidos em nome da “segurança nacional”? Até poucos meses atrás, assistimos cenas patéticas em frente aos quartéis do exército, onde pessoas “de bem” pediam um golpe militar.

O cinema brasileiro tem voltado sua luz para os porões da ditadura. Filmes importantes foram realizados, desde o corajoso “Pra Frente, Brasil”, produzido em pleno regime militar, até os que vieram já no período democrático. Alguns desses filmes mostravam cenas de tortura, quase sempre ilustrativas e que poderiam ser compreendidas como algo praticado por maus policiais.

Tomei a decisão de mostrar que a tortura durante a ditadura era aplicada com planejamento e método, como ocorreu com os frades dominicanos. Além disso, decidimos também expor com crueza o processo ao qual os presos eram submetidos, a progressão da violência que mina a resistência e arranca do torturado as informações desejadas. Nos baseamos nos relatos dos frades, além do que estava no livro, e filmamos as cenas de tortura com o maior realismo possível. Não foi nada fácil.

Além das dificuldades técnicas e dos cuidados para proteger os atores, todos sofremos muito durante a filmagem dessas cenas. O ator Caio Blat, que viveu o Frei Tito, nos contou que chorava à noite ao pensar que tudo aquilo era verdade.

Ao realizarmos o filme, tinha plena consciência de que estávamos fazendo algo ousado, que iria mexer com as pessoas, mas que era necessário para aprofundar o debate sobre o período militar e quebrar a imagem da ditadura light. As formas de expor a violência no cinema mudam de acordo com a evolução da própria sociedade e de como os meios de comunicação se comportam a respeito. Não dá pra comparar a exposição de atos violentos em 1960 com o que assistimos hoje em todos os meios, em especial na internet. A esse respeito, há uma frase no mínimo curiosa no texto de Maria do Rosário: “Por mostrar cenas gráficas de tortura, Ratton pagou as consequências.” Parece até que fui castigado por transgredir algum cânone ou dogma, algo próprio das religiões, mas não da linguagem cinematográfica.

“Batismo de Sangue” foi lançado pela Downtown e levou mais de 60 mil espectadores ao cinema, um bom público para um filme político com essa densidade. O filme foi exibido na TV Globo, Canal Brasil, Curta!, continua sendo exibido nestes canais e está disponível em várias plataformas. Há poucos meses, foi exibido na TV Brasil em uma mostra de filmes sobre a ditadura. Era o único filme de ficção entre vários documentários.

No Festival de Brasília, “Batismo de Sangue” recebeu os prêmios de Melhor Direção e Melhor Fotografia, e foi apresentado em vários festivais internacionais, alguns deles de peso, como o de Munique. O Ministério da Cultura da Espanha comprou os direitos de exibição não comercial do filme para exibi-lo em suas representações nos países de língua espanhola.

Em 2011, fui convidado a participar com o filme de um simpósio em Paris intitulado “Langage et Violence” (Linguagem e Violência), promovido pela fundação Primo Levi, que presta assistência psicológica e jurídica aos refugiados políticos na França. “Batismo de Sangue” foi exibido em uma sessão lotada de renomados psicanalistas e juristas franceses e debatido com a profundidade que merece. Tive o prazer de ter ao meu lado na mesa do debate o psiquiatra e psicanalista que atendeu Frei Tito na França, Jean-Claude Rolland. Entusiasmado com o filme, ele escreveu um texto magistral, intitulado ”Soigner, témoigner“ (Tratar, testemunhar), do qual reproduzo abaixo alguns trechos:

“Além de seus efeitos destrutivos sobre os indivíduos – que imperativa e incansavelmente devemos denunciar –, o ato da tortura nos coloca perante o seguinte pensamento: existe na língua, em qualquer língua, uma virtualidade de violência, geralmente superada, normalmente apagada, mas que o torturador pode exumar e, no caso, Fleury sabe exumar, pois, com ela – e mostrar isso resume todo o talento deste filme – estamos lidando com uma vontade ardente, metódica, de exterminação do outro e de sua diferença. A tortura é parte de uma ideologia sofisticada e perfeitamente controlada.”

“Falar, falar de novo, sem fim, da tortura, para restaurar a língua na sua dignidade e plenitude de ferramenta cultural, esta é a tarefa que nos é exigida e que nos reúne hoje. ‘Batismo de Sangue’ traz para essa questão uma contribuição essencial e nova, a contribuição própria da escritura cinematográfica, que devolve à imagem, à semiótica do visual, um lugar que a palavra, por sua própria abstração, não sabe mais preservar. Apraz-me que a nossa reflexão sobre a tortura se enriqueça com esse novo dado. E quando eu descobri este filme, entendi a nova força de testemunho que representava.”

“Sem nenhuma concessão, o filme mostra a energia implacável que move Fleury e sua equipe, uma obstinação que se desenvolve sem parar desde o assassinato de Marighella, na caça infernal aos seus partidários e no assassinato da alma de Tito. Eu não falaria tão logo de um ‘sadismo’, que os ultrapassaria, eu não recorreria com demasiada facilidade à interpretação psicológica, pois, insisto: não estamos mais na psicologia. Mas eu diria que a renúncia à lei humana mais fundamental – isto é o que define a tortura –  destitui seus atores do título de homens para o de executores anônimos e sem alma. Intelectuais franceses identificaram no uso da tortura durante os acontecimentos da Argélia, o fim do estado de direito e, com toda razão, alertaram contra a contaminação cancerígena de tal transgressão e o risco de sua expansão ao país inteiro.”

O debate sobre o filme no simpósio “Linguagem e Violência” e, em especial, as reflexões do psicanalista Jean-Claude Rolland, reforçaram minha convicção de que havia tomado as decisões corretas ao realizar o filme, que não foi feito para agradar a todos, mas para provocar polêmica e reflexão. E, com certeza, esses objetivos foram atingidos.

Durante o regime militar, passei quatro anos no exílio e alguns meses no DOI-CODI da Barão de Mesquita, no Rio, onde fui torturado. Tenho claro para mim de que lado estou, de minha visão do mundo e do cinema que realizo.

“Batismo de Sangue” não é apenas mais um filme sobre fatos acontecidos durante a ditadura, sei de sua importância para compreensão deste período da História do Brasil e de sua relevância em nossa cinematografia. Parafraseando Ulysses Guimarães, gostaria de finalizar dizendo que “Batismo de Sangue” expressa todo meu horror e nojo à tortura.

 

Helvécio Ratton é cineasta, diretor de “Batismo de Sangue”.

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