Mergulho de Lô Borges em suas memórias musicais arranca aplausos calorosos e filme raro de Jorge Ben provoca risos

Foto: Exibição de “Lô Borges – Toda essa Água”, no Cine Praça © Leo Lara/Universo Produção

Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto

Lô Borges, o mais jovem integrante do cinquentenário Clube da Esquina, foi aplaudido de pé e abraçado com frenesi pela plateia que lotou o Cine Praça, aos pés do monumento a Tiradentes, no coração de Ouro Preto. A galera enfrentou frio assustador para assistir ao filme “Lô Borges – Toda essa Água”. As razões para que provocasse tamanho arrebatamento do público eram muitas e previsíveis. A simpatia hippie e a timidez do artista são realmente cativantes. Irresistíveis.

O comando da CineOP – XVIII Mostra de Cinema de Ouro Preto foi certeiro. Escalou o filme para o horário nobre da noite de sábado. Apesar da temperatura ingrata, Lô Borges compareceu com sua cara de anjo maduro ao grande cenário da festa ouro-pretana.

O diretor de “Toda essa Água”, Rodrigo de Oliveira (de “Todos os Paulos do Mundo” e “Os Primeiros Soldados”), a produtora e codiretora Vânia Catani e a atual secretária do Audiovisual, Joelma Gonzaga, que antes de assumir o cargo participara da produção do filme, subiram ao palco com o tímido e desajeitado Lô. Ele ficou “de banda” para a plateia. Quando lhe deram o microfone, balbuciou algumas palavras. E logo tomou assento na plateia lotada.

O que se viu a seguir realmente fascinou centenas de espectadores empacotados com camadas sobrepostas de agasalhos, sempre agarrados a seus celulares. Não que o filme seja renovador ou apoteótico, faça revelações inesperadas ou mergulhe nos segredos profundos do artista. O encanto vem da franqueza e transparência de Lô (apelido que o diferenciava do pai, Salomão — Salô, Lô). Um músico mineiro, de Belo Horizonte, que só usa camisetas folgadas e anda calmamente pelas ruas de sua querida cidade, de preferência com um copo de cerveja (ou vinho) na mão. Se no palco do Cine Praça ele se mostrou lacônico, no filme fala muito e sobre tudo (espiritualidade, amor, amizade, seus horizontes profissionais – “eu sonhava ser famoso em todas as Minas Gerais e se possível no Brasil inteiro”).

O integrante do coletivo musical belo-horizontino, que necessitou de autorização dos pais para ir ao Rio ensaiar e gravar o seminal elepê “Clube da Esquina” (1972) – com Milton Nascimento e um bando de amigos e conterrâneos – não experimentou mirabolantes aventuras. Mas vez ou outra, ao longo dos 88 minutos do filme, ele solta uma ou outra pequena revelação, nada que se aproxime do épico.

“Ah, isso aconteceu na época do ‘disco do Tênis’?”, pergunta. E responde: “Não me lembro, pois fiz muitas viagens de ácido naquele período”. Ou: “Compus mais de 40 músicas e gravei muitos discos no século XXI, com repercussão mínima, mesmo assim continuo compondo, não sou daqueles que acreditam que só somos produtivos e criativos dos 20 aos 30 anos”.

Filho de família musical, Lô foi “adotado” pelo irmão Márcio Borges. O próprio mano-parceiro conta que achou o recém-nascido tão bochechudo e bonitinho, que pediu à mãe, que já tinha muitos filhos, para que ele “fosse meu”. Ela avisou ao filho mais velho: “mas então você vai ter que cuidar dele”.

Márcio fez o que pôde. Mas não impediu que o mano imberbe, depois do mítico “Clube da Esquina” e do “disco do Tênis”, saísse sem paradeiro certo por andanças calibradas em muita erva. Depois de chegar a Porto Alegre, cidade que desconhecia, com 20 exemplares promocionais do “disco do Tênis”, a alma hippie do jovem violonista e compositor o levou para a Aldeia de Arembepe, na Bahia, o famoso território-preferencial da turma do fumacê e da vida em comunidade.

Lô Borges, ao centro, em coletiva de imprensa do filme, com a produtora Vânia Catani © Leo Fontes/Universo Produção

Os outros jovens da “província” patrocinados pelo amigo Milton Nascimento deram melhor encaminhamento, naquela década de 1980, às suas carreiras. Caso de Beto Guedes, Tavinho Moura, Wagner Tiso, Toninho Horta, Fernando Brant e Nelson Ângelo. Mas não tem chororô no filme de Rodrigo e Vânia. Só reflexões sobre música e a vida cotidiana de um “mineirim” que não se separava (prática mantida até hoje) do violão para nada e que pouco revê os amigos, seja os do Clube da Esquina, seja o astro máximo da turma, Milton Nascimento, voz que garantiu (garantirá) posteridade aos moleques que se conheceram num edifício do bairro de Santa Teresa, em BH. Milton – registre-se – é quase 10 anos mais velho que Lô (este tem 71 anos e o criador de “Travessia” completará 81 em outubro).

O documentário “Lô Borges – Toda essa Água” se compõe com recordações (as que as viagens de ácido não diluíram) e alguns encontros. Com Beto Guedes, com Tavinho Moura, com o filho Luca (“meu maior amor”) e com Milton Nascimento, claro. E sem esquecer cenas familiares, com os muitos irmãos (destaque absoluto para o “pai adotivo” Márcio).

Há significativo uso de material de arquivo, incluindo fotos do adolescente que começou a compor muito cedo e, em 1964, já fã da Bossa Nova, descobriria a maior paixão musical de sua vida, os Beatles. Quando o filme “Os Reis do Iê-Iê-Iê (“A Hard Day’s Night”, de Richard Lester, 1964) estreou em Belo Horizonte, Lô enfurnou-se no cinema e assistiu a todas as sessões. Na lembrança dele “foram seis”. Mais tarde comporia com a mano Márcio e com Fernando Brant seu maior sucesso: “Para Lennon e McCartney” (“Eu sou da América do Sul/ Eu sei, vocês não vão saber/ Mas agora sou cowboy/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou do mundo, sou Minas Gerais”.

Com medo de parecer redundante, o documentário dedicado a Lô Borges, que evoca sempre o “disco do Tênis”, primeiro trabalho solo de Lô, não mostra sua capa icônica (quase tanto quanto a do menino negro de kichute e do menino branco descalço que encapou o “Clube da Esquina”).

O artista conta que terminou a gravação do disco coletivo liderado por Milton Nascimento e de seu primeiro disco tão exaurido e doido para dar uma relaxada, que nem quis submeter-se às sessões de fotos da gravadora. Uma delas seria escolhida para a capa do disco. “Fiz uma única foto, com cara emburrada”, afirmou. Para acrescentar que “vibraria muito” quando a foto de um par de tênis foi escolhida no lugar de sua estampa (registre-se, de um belo rosto hippie setentista).

“O disco só seria reconhecido e festejado 40 anos depois”, admite, sem reclamar. Quem consultar a internet verá que o preço de um exemplar (em vinil) se aproxima dos 200 reais. Outra opção questionável do documentário de Rodrigo: não dá destaque a “Para Lennon e McCartney”. Claro que a intenção era abrir espaço para os muitos outros trabalhos do artista. Mas fica no espectador a sensação de que foi a Roma e não visitou o Vaticano.

Se o mergulho de Lô Borges nas águas de sua existência gerou emoção, abraços, selfies e aplausos de pé, outro artista – Jorge Ben (ele só se tornaria Benjor anos depois) – provocou risos voluntários e involuntários com o longa-metragem “Uma Nega Chamada Tereza”. Essa produção de 1973, dirigida por Fernando Coni Campos e produzida por Aurora Duarte e Massao Ono, foi concebida para trilhar os caminhos dos musicais de imenso sucesso, protagonizados pelos Beatles e seus sucedâneos brasileiros (em especial, os estrelados por Roberto Carlos e outros ídolos da Jovem Guarda).

Para o filme que caberia a Jorge Ben, foi elaborado argumento escrito pelo doidão Arnaud Rodrigues (mais tarde, integrante com Chico Anisio da satírica dupla “Baiano e os Novos Caetanos”, na Globo). Coni escreveu o roteiro. De saída, uma de suas protagonistas, Pepita Rodrigues, engravidou. Ele foi obrigado a mexer na história para que a personagem, uma pilantra com visual de Barbarella, também estivesse grávida na ficção.

A trama é mirabolante. Um casal – Antônio Pitanga e a musa de ébano de Di Cavalcanti, Marina Montini – chega da África para assistir ao Festival Internacional da Canção, no qual Jorge Ben é o compositor e cantor que ocupa o lugar de favorito. Os africanos falam idioma ininteligível e devidamente legendado. Enquanto isso, um casal interiorano – Pedro Paulo, sósia de Jorge Ben, e Babete – vivem saltitante idílio amoroso. Ela é interpretada por Marlene França, no auge de sua beleza morena.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, Pedro Paulo será confundido com Jorge Ben. A picareta personagem de Pepita Rodrigues resolve bolar um plano: fazer o ingênuo interiorano se passar por Jorge Ben. Assim, ela e sua quadrilha ficariam com os proventos de seu triunfo. Enquanto isso, o verdadeiro Jorge Ben namora muitas garotas (uma delas, a jovem modelo Mila Moreira) e recheia a trilha sonora com seus maiores sucessos. A trilha, sim, é das melhores. Incessantes e cheias de suingue (“o meu samba é um misto de maracatu com samba de pretu-tu”), as músicas do artista justificam o longa-metragem.

Cena de ”Uma Nega Chamada Tereza”

Tudo, na narrativa propriamente dita, parece uma história em quadrinho pop e maluquete. As brigas arrancam risos involuntários. O humor esperto e ingênuo de Arnaud Rodrigues, às vezes, arranca risos sinceros. Coni Campos faz o que pode para dar jeito ao “filme de encomenda”.

A pesquisadora e professora baiana Izabel Cruz Melo contou, ao apresentar o filme ao público, que ”Uma Nega Chamada Tereza” enfrentou problemas com a Censura, insatisfeita com referências ao racismo contidas na trama. E confirmou as divergências graves entre a produtora Aurora Duarte e o diretor e roteirista Fernando Coni Campos. Que uma versão intitulada “Que Maravilha!” teria sido lançada e que o cineasta renegou a montagem final, a que chegou ao circuito exibidor. “Em suas memórias cinematográficas” – lembrou Izabel –, “Coni Campos dedicou apenas três rápidas linhas ao musical protagonizado por Jorge Ben”.

O músico Rubens Campos, filho do saudoso Fernando (1933-1988), diretor de “Ladrões de Cinema” e “O Mágico e o Delegado”, contou ao público que o pai, realmente, viveu atribulada relação com a produtora de Aurora Duarte e Massao Ono, e que teve que promover alterações no roteiro. Como as referentes à personagem de Pepita Rodrigues, grávida de três meses quando as filmagens foram realmente iniciadas. E que o corte final não teve aprovação do cineasta.

Não existem cópias restauradas, nem digitalizadas de “Uma Nega Chamada Tereza”, esse musical embalado por alguns dos maiores sucessos de Jorge Ben. Incluindo “Charles Anjo 45” e “Que Pena!”, na antológica gravação de Gal Costa e Caetano Veloso. Aliás, que futuros espectadores fiquem atentos à presença de Caetano (representado por fotografia-pôster) no desfecho do filme.

A cópia exibida pela CineOP, que resgata um filme esquecido há cinco exatas décadas, se deu em 35 milímetros. E com trechos muitos riscados. Outros, felizmente, plenos de beleza (com a plateia do Festival Internacional da Canção cantando e coreografando gestos de amor à música benjoriana). Rubens Campos garantiu que ele e seu irmão, o cineasta e diretor de fotografia Luis Abramo, estão empenhados em resgatar a obra do pai. Para tanto, necessitam de parceiros e recursos financeiros.

A terceira atração do sábado, dia nobre da Mostra de Cinema de Ouro Preto, trouxe a assinatura de um realizador ouro-pretano, João Dumans, que dirigiu “Arábia”, vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com Affonso Uchôa.

O novo filme de Dumans – “As Linhas da minha Mão” – chegou ao cinema do Centro de Convenções de Ouro Preto como grande vencedor da Mostra de Tiradentes, território dedicado ao cinema de independente e de experimentação de linguagem.

Dumans registra, rompendo as fronteiras do documentário e abraçando a ficção, as rememorações de uma atriz e performer mineira (Viviane de Cássia Ferreira). Ela evoca seu trabalho artístico junto ao grupo Sapos e Afogados e momentos em que se recolheu, por razões psíquicas. Portadora de transtorno bipolar, a atriz compõe seu denso e instigante auto-retrato. Com fotografia rigorosa e inventiva trilha sonora do grupo Grivo.

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