“Neirud” revela, no festival Olhar de Cinema, histórias ocultas do circo

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba

O primeiro longa-metragem da recém-criada competição brasileira do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba causou sensação entre o público. Atrás de seu nome misterioso – “Neirud” – esconde-se uma história de muitas revelações sobre vidas de integrantes de uma família circense brasileira (os Faya).

A diretora, a paulistana Fernanda Faya, que vive entre São Paulo e Nova York, estreou com o pé direito. O filme, um documentário dos mais substantivos, nos enreda em trama fascinante. De início supomos que fomos convidados a ver a história de uma “Mulher Gorila”, nascida no Rio Grande do Sul, em 1935, numa família negra. Bem pequena, foi dada a “padrinhos” em adoção, fugiu de casa, perambulou por Porto Alegre até agregar-se a uma trupe de circo.

A narradora do filme, a própria cineasta, chama a “Mulher Gorila” de “tia”. Somos induzidos, pela força das imagens domésticas registradas em VHS e pelo papel que nossos preconceitos definem para pessoas de pele preta, a crer que Neirud é uma espécie de babá da pequenina. Afinal, ela é única afro-brasileira presente nas reuniões sociais da família Faya, de origem cigana.

Fernanda, a diretora, que conta a história com sua própria voz (e ajuda de terceiros, quase todos reticentes) desespera-se pela falta de imagens de sua protagonista. Em caixas e mais caixas guardadas por seu pai, o psicólogo Edgard Faya, ela só encontra imagens de pessoas brancas, em especial sua avó, a atriz e empresária circense Nely Terese Faya (1927-1995).

O espectador acompanha então a história de Nely, que atuou em muitos circos (de feras, de encenações dramáticas e de luta livre). E que passou pela companhia teatral de Bibi Ferreira.

Será que a cineasta desistiu, pela absoluta ausência de imagens de Neirud, de narrar a história da gaúcha de pele negra, 1m90 de altura, que carinhosamente chama de “tia”?

Afinal, ao entrevistá-la, já idosa (Neirud morreu em 2011, quase octogenária), na Baixada Santista, Fernanda Faya só conseguira registrar parcas lembranças da infância de Neirud. Sua “tia” nada falou sobre os tempos de circo, nem sobre as façanhas da “Mulher Gorila”.

Não, a diretora segue firme em seu intento de resgatar a história de Neirud. Continuará à procura de vestígios da trajetória dela, seja buscando informações com o pai, às vezes impaciente, e sempre muito preocupado com a obsessão da filha. Que consumiu longos dez anos na construção do filme.

O resultado é fascinante. Em enxutos 71 minutos, “Neirud” abordará temas ligados ao universo feminino, ao racismo estrutural brasileiro, a amores não-normativos e, até, a opção pelo evangelismo religioso. Tudo cercado pela fragilidade dos registros de nossa memória audiovisual (em especial do mundo do circo, das mulheres que ajudaram a fazê-lo e, mais grave ainda, ao apagamento de suas artífices de origem afro).

Por sorte, Fernanda Faya adota procedimento raro no cinema confessional-familiar, ao acender vela a Nossa Senhora do Contexto, a padroeira de Luís Fernando Veríssimo. Conheceremos o pano de fundo histórico da época em que a “Mulher Gorila” viveu. Veremos imagens de rua que registram o triunfo do golpe militar de 1964 e teremos cristalina compreensão dos papéis sociais que a sociedade branco-patriarcal reservou às mulheres (às de pele preta em especial).

No debate de “Neirud”, na manhã dessa sexta-feira, 16 de junho, Fernanda Faya e sua equipe (entre eles o músico Chico Pinheiro, que assina a trilha sonora, e o montador Yuri Amaral) deram seu testemunho sobre a longa jornada de feitura do filme.

A cineasta, que é também fotógrafa, integrante do Coletivo de Mulheres e Pessoas Transgênero e professora de cinema em Nova York, narrou as incertezas que acompanharam sua busca por imagens de Neirud, o mergulho na história paterna, ligada ao circo, e a recompensa que o destino colocaria em suas mãos. E que, não podemos revelar, com certeza encantará a todos os espectadores.

Se há um documentário que exige sigilo sobre sua trama (zero spolier) ele se chama “Neirud”. Nascido de pequeno projeto de curta-metragem, portanto com recursos parcos, foi ganhando tantas camadas e trilhas narrativas que o montador Yuri Amaral se viu forçado a seduzir a realizadora-narradora a abrir mão de parte do farto material colhido em 10 anos de buscas. Juntos eles chegaram a bom termo. E construíram trama que prende a atenção do espectador o tempo todo. E o presenteia com final arrebatador. Mas nunca aliciador ou sentimental.

Fernanda pediu ao companheiro Chico Pinheiro uma trilha sonora que não sublinhasse a narrativa, nem buscasse a emoção fácil. “A música criada para o filme busca o estranho, respeita os silêncios e ausências”, ponderou o compositor. Nunca é desmedida ou invasiva.

Como Fernando Faya contou história familiar, ela tomou todos os cuidados para que sua participação não resultasse em “algo egóico”. Conseguiu plenamente seu intento.

Na sessão em horário nobre do Olhar de Cinema e na plateia do debate, estavam o pai de origem cigano-circense, a mãe, judia, e o irmão Felipe, parceiros de Fernanda nessa longa caminhada. O pai e o irmão como partícipes do filme. A mãe em aparições fugazes em registros em VHS e na retaguarda.

O pai deu seu testemunho público durante o debate: certa vez, uma colega de escola de Fernanda, perguntou se ela era judia ou católica. Eu respondi por ela: a mãe é judia e eu sou católico. Mas, para valer, nós somos uma família circense, nós somos a Caravana Faya.

A cineasta Fernanda Faya, com os pais e o irmão Felipe

Uma caravana que contou, em suas fileiras, com uma “Mulher Gorila”, que praticou luta livre em tablados de circo, com uma treinadora-empresária argentina (Rebeca Diório) e com uma avó, de origem cigana, que experienciou grande aventura existencial ao lado delas.

Para fechar a primeira noite da competição do Olhar de Cinema, o público assistiu a uma pequena joia vinda da Dinamarca: “A Migração Silenciosa”, de Malene Choi.

Ficção construída com acentuada pegada documental e vivências autobiográficas, a cineasta, de origem sul-coreana, adotada por família nórdica, se faz representar pelo jovem Carl (Cornelius Wim Riedel-Clausem). Ele foi adotado, pequenino, por uma casal de fazendeiros já de idade avançada.

Depois de concluir os estudos, Carl fixa suas raizes na fazenda dos pais, assumindo com eles a dura faina diária. Alimenta o gado, cuida dos bezerros, limpa o estábulo. Um dia cai um meteoro no pasto. A vida segue.

Os pais dinamarqueses são gentis com o filho de origem asiática. Os que circundam a família em festas de aniversário carregam preconceitos contra imigrantes, em especial os de olhos puxados ou de outros tons de pele. Fala-se, entre os homens adultos, a favor ou contra a União Europeia. A gelada Escandinávia estimula bebedeiras intermináveis. O gado rumina.

Carl sente-se compelido a definir o rumo de sua vida. Deve ficar na cidade grande? Quem sabe regressar à Coreia do Sul? Ou manter-se como herdeiro da fazenda e dos empréstimos contraídos para compra de potente trator?

A diretora Malene Choi constrói sua narrativa com imensa delicadeza, sem julgar seus personagens, sem discursos. Banha sua trama semidocumental com pequenas inserções oníricas na vida desse garoto, que, como ela, nasceu na Coreia do Sul e foi parar, por adoção, numa sociedade tão diferente quanto a loura e viking Escandinávia.

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