Homem de teatro, Zé Celso deixa patrimônio cinematográfico com “O Parto”, “25”, “Uzébrioloco”, “Evoé!” e “Horácio”

Foto: “O Rei da Vela”, Zé Celso e Noilton Nunes

Por Maria do Rosário Caetano

José Celso Martinez Corrêa inscreveu seu nome, ao lado de Augusto Boal e Antunes Filho, como os mais importantes e criativos encenadores do país.

Boal foi um dos esteios do Teatro de Arena (e teórico do Teatro do Oprimido) e Antunes Filho comandou o CTP (Centro de Pesquisa Teatral), do Sesc.

Zé Celso, que morreu nessa quinta-feira, seis de julho, vítima das consequências de incêndio em seu apartamento paulistano, foi a alma do Teatro Oficina (ou Te-Ato Oficina Usyna Uzona, nomes de seus muitos renascimentos). Mas, além das Artes Cênicas, ele deixa também sua contribuição ao cinema. Seja como diretor, roteirista, ator ou personagem.

Há registros de que, em 1972, Zé Celso teria dirigido um documentário sobre o próprio Grupo Oficina, que vivia momento dificílimo, pois a ditadura militar apertava, cada vez mais, o garrote vil da censura. Faltam informações concretas e detalhadas sobre esta realização.

Três anos, em 1975, depois, em Portugal, o artista faria seu primeiro filme de verdade, ou seja, aquele que chegaria ao público a animaria calorosos debates – o média-metragem “O Parto”, codirigido e fotografado por Celso Luccas. Em 31 minutos, a dupla registra um parto e o florescer da Revolução dos Cravos, a libertação das colônias de ultra-mar e a chegada do socialismo ao mundo de fala lusitana.

Com a libertação de Moçambique, em 25 de junho de 1975, Zé Celso e Celso Luccas tomariam os rumos do país africano para realizar o épico documental “25”, um alucinante e frenético registro das transformações provocadas pela Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), comandada por Samora Machel. Quando regressaram ao Brasil, os dois cineastas promoveram centenas de sessões do filme em cineclubes, associações de moradores e sindicais. Uma delas, com a sala lotada, aconteceu no Cine Brasília, na capital da República.

Em 1982, Zé Celso transformou, em parceria com Noilton Nunes, os registros que fizera de sua mais famosa e seminal montagem teatral – “O Rei da Vela” (1967) – em documentário de 166 minutos (portanto, quase três horas). Além de contar a história de Abelardo, negociante de velas funerárias, e de seu sucedâneo, Abelardo II, pactários, o primeiro, com as elites agrárias brasileiras e o segundo servil ao poder norte-americano, o filme contou com inserções documentais do Brasil contemporâneo (em especial das greves operárias do ABC Paulista, ocorridas entre 1979 e 1981).

O longuíssimo filme foi exibido no XI Festival de Gramado, ganhou Prêmio Especial do Júri, melhor montagem (Noilton Nunes) e trilha sonora (Zé Celso). Mas não foi lançado comercialmente. Uma década depois, a dupla realizou versão mais enxuta do filme-peça oswaldiano, centrando-se mais na trama tropicalista e praticamente abandonando as inserções factuais da versão original. O documentário reeditado foi exibido, hors concours, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Em 1971, o diretor de “Os Pequenos Burgueses” (Gorki), “Roda Viva” (Chico Buarque) e “Galileu Galilei” (Brecht) fizera seu “Ensaio Geral para o Carnaval do Povo” em conturbada experiência cinematográfica. Como o jovem cineasta André Faria Jr, ele escrevera o roteiro de “Prata Palomares”, baseado na narrativa “Um Padre Louco”. As filmagens – realizadas em torno de dois guerrilheiros perdidos (Renato Borghi e Carlos Gregório), que vão parar no interior de uma igreja ilhenha – aconteceram em clima de muitos desentendimentos. E findas, viveriam muitos e novos impasses. O filme, mesmo concluído, só chegaria ao público em 1982, já que a obra fora interditada pela censura.

Depois do auto-exílio em Portugal e Moçambique, Zé Celso continuaria sua carreira cinematográfica em duas frentes – no resgate dos registros da peça “O Rei da Vela” e sua transformação em um longa-metragem, e na função de ator em filmes de terceiros. Cumprido o desejo de transformar a montagem da peça de Oswaldo de Andrade em um filme, o ator Zé Celso transformou-se em requisitado ator de participações especiais em muitas produções (só chegaria a protagonista aos 84 anos, em “Horácio”, longa de Mathias Mangin). Neste longa ficcional, coube-lhe interpretar um contrabandista de 80 anos, apaixonado por seu capanga Milton (Marcelo Drummond). Como não é correspondido em seu amor, ele, um fugitivo da polícia, tranca a filha Pétula (Maria Luiza Mendonça) num quarto e, desesperado, tenta convencer Milton a fugir com ele para o Paraguai.

Muitos cineastas convidariam Zé Celso para participações pequenas, mas especialíssimas, em seus filmes. Além de Helena Ignez, que o escalou para o longa “Ralé”, o criador do Grupo Oficina atuaria em “O Homem Célebre”, recriação de conto de Machado de Assis, “No Caminho das Índias” e “A Encarnação do Demônio”, este, o canto de cisne de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, urdido por dois de seus “devotos” seguidores, Paulo Sacramento (produtor) e Dennison Ramalho (co-roteirista e diretor assistente).

Zé Celso em cena de “Evoé! – Retrato de um Antropófago”, de Tadeu Jungle

Lírio Ferreira daria a Zé Celso papel dos mais curiosos em seu filme-manifesto “Árido Movie” – o de uma espécie de xamã do Vale do Catimbau, em Pernambuco, onde, diz a lenda, usufrui-se da melhor maconha do Brasil.

Com Adilson Ruiz, o encenador araraquarense protagonizaria um curta-metragem de raras síntese e beleza – “Uzébrioloco”, que causou sensação no Festival de Brasília no alvorecer da década de 1990.

Muitos documentaristas buscariam Zé Celso para que lhes fornecesse depoimentos (ou melhor, vistosas performances) em muitos filmes. Afinal, inquieto até a medula, o encenador-ator jamais se colocaria como mais uma estática “cabeça falante”. Ele falava com as mãos, os olhos, o corpo inteiro, num jogo de sedução do público (ou pelo de sua parcela inquieta). Desta safra, vale destacar “Tropicália”, de Marcelo Machado.

No terreno do documentário pessoal, dois trabalhos destacam-se por terem captado toda a inquietação do re-criador de “O Rei da Vela”: “Evoé! – Retrato de um Antropófago”, de Tadeu Jungle, e “Máquina do Desejo – 60 Anos do Teatro Oficina”, de Luccas Weglinski e Joaquim Castro. Zé Celso é a estrela central e força mobilizadora dessas duas narrativas.

O último trabalho do encenador-cineasta-ator no cinema a chegar aos circuitos cinéfilos foi “Fédro”, um híbrido, dirigido por Marcelo Sebá. Zé Celso conversa com o ator Reynaldo Gianeccini, que antes de tornar-se galã de telenovelas, na Globo, passara pelos coletivos do Teatro Oficina.

Mentor e discípulo se reencontram frente à câmera para uma primeira leitura do texto “Fédro”, de Platão, adaptado por Zé Celso. No momento mais comentado do filme, o mentor pede ao ator, que estivera em seus elencos duas décadas antes, que se desnude. Mesmo aparentando desconforto, Gianecchini cede ao desejo de José Celso Martinez Corrêa. Um homem que, aos 84 anos, continuava um libertário, um diretor de teatro para quem a nudez nunca fora motivo de constrangimento.

Haverá outros filmes (ainda) inéditos de Zé Celso para serem mostrados nos cinemas, TVs e streaming? O tempo dirá.

 

FILMOGRAFIA
José Celso Martinez Corrêa (Araraquara, 30 de março de 1937, São Paulo – 6 de julho de 2023)

Como diretor:

1975 – “O Parto”, de Zé Celso e Celso Luccas (31 minutos)
1976 – “25”, de Zé Celso e Celso Luccas (120 minutos)
1982 – “O Rei da Vela”, Zé Celso e Noilton Nunes (166 minutos)
1999 – “O Rei da Vela”, de Zé Celso e Noilton Nunes (versão condensada, 120 minutos)

Como roteirista, ator ou personagem:

. 1971/1984 – “Prata Palomares”, de André Faria Jr (roteirista)
. 1974 – “Um Homem Célebre”, de Miguel Farias (ator), 98 minutos
. 1982 – “A Caminho das Índias”, de Isa Castro e Augusto Sevá (ator), 84 minutos
. 1990 – “Uzébrioloco”, de Adilson Ruiz (ator e personagem), 9 minutos
. 2005 – “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (ator), 115 minutos
. 2008 – “A Encarnação do Demônio”, de José Mojica Marins (ator), 94 minutos
. 2011 – “Evoé! – Retrato de um Antropófago”, de Tadeu Jungle (personagem), 104 minutos
. 2011 – “Ardor Irresistível”, documentário experimental de Ava Rocha, 72 minutos
. 2012 – “Tropicália”, de Marcelo Machado (depoimento), 87 minutos
. 2015 – “Ralé”, de Helena Ignez (ator), 73 minutos
. 2019 – “Horácio”, de Mathias Mangin (ator protagonista), 86 minutos
. 2021 – “Máquina do Desejo – 60 Anos do Teatro Oficina”, de Luccas Weglinski e Joaquim Castro (documentário), 119 minutos
. 2021 -“Fédro”, de Marcelo Sebá (com Zé Celso e Reynaldo Gianecchini), 88 minutos

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