Oppenheimer, o enigmático guru do átomo, no melhor filme de Christopher Nolan
Por Maria do Rosário Caetano
“Oppenheimer”, de Christopher Nolan, em cartaz em centenas de cinemas brasileiros, dura três horas. Um filme adulto, político e muito complexo. Intrincado, sim, em seus vai-e-vem narrativos, condição que alternância da cor e do preto-e-branco não soluciona.
Vale a pena gastar 180 minutos na fruição de um drama tão sombrio?
A resposta é sim. Os que preferem algo soft, cor de rosa, politicamente correto (sem abalar nenhum alicerce), risível e olvidável, devem optar pela outra grande estreia da semana, “Barbie”, de Greta Gerwig.
Uma única sequência justifica plenamente o encontro obrigatório com o filme de Nolan, o cabeçudo que parece em busca de temas relevantes como a Segunda Guerra Mundial, em “Dunkirk” e, agora, nesse atrevido mergulho num dos episódios mais trágicos da mesma Guerra – a criação da bomba atômica pelos EUA, nos Laboratórios de Los Alamos, que calcinaria milhares de civis em Hiroshima e Nagasaki.
E que sequência é esta, tão formidável assim? É aquela que acontece depois da metade da narrativa. Oppenheimer (Cillian Murphy), físico nuclear e pai da bomba atômica, aparece nu em conversa com a amante, também cientista (e militante comunista) Jean Tatlock (Florence Pugh). Os temas que discutem são graves, mas, despidos e sentados em poltronas de sofá, eles os enfrentam como se estivessem na cama, depois de tórrida cena de sexo. E é o mesmo Oppenheimer, no momento seguinte (também nu), que será visto prestando depoimento a uma poderosa comissão de inquérito, comandada por seus perseguidores macCarthistas.
Claro que tal fato jamais aconteceu (depoimento de um cientista nuclear, nu em pelo, frente a autoridades estadunidenses). A liberdade tomada por Nolan é um tributo ao judeu norte-americano que amava Freud, Picasso, Stravinsky e lera os três volumes de “O Capital”, de Marx, primeiro em inglês, depois em alemão. Um homem de mente genial, que falava quase uma dezena de idiomas, estudava sânscrito e lera os sete volumes de “História e Declínio do Império Romano”, de Gibbons, em viagem de trem de San Francisco a NY (que durava três dias e meio).
Só por esta sequência freudiana, “Oppenheimer” merece figurar entre os finalistas ao Oscar que será entregue em 2024. E, claro, que se garanta a mesma condição (de finalista) ao ator irlandês Cillian Murphy, cujo papel mais notável acontecera em “Ventos da Liberdade” (Ken Loach, 2006, Palma de Ouro em Cannes). Cillian arrasa na pele do “enigmático guru do átomo”. Ou do “Prometeu Americano”, que roubou o fogo dos deuses para carregar as consequências em pesadelos vindouros.
Julius Robert Oppenheimer (1904-1967) viveria penas 62 anos e morreria de um tumor na garganta. Em texto que constitui uma das mais belas páginas do jornalismo europeu, a repórter italiana Oriana Falacci – confiram a tradução na revista Realidade (Editora Abril, novembro de 1967) – destacou a síntese do pensamento do atormentado cientista em frase-título famosa: “Eu sou a morte, o destruidor dos mundos”.
Ela contou que Oppenheimer, devorado por seus remorsos e pelo câncer, pesava, naquela década de 1960, menos que 48 quilos. Este o peso pluma a que chegara durante os insones anos de pesquisa atômica em Los Alamos, no Novo México. Tinha pouco mais de 60 anos, mas aparentava 100, tantas eram as rugas de seu rosto. Ela o viu. E nos relatou (li o texto aos 14 anos, quando ganhei de presente coleção da revista Realidade) muitos dos conflitos do pai da bomba atômica.
Ele fora comunista em algum momento de sua vida?
Oppenheimer assegurara que não, embora tivesse enviado dinheiro às fileiras republicanas na Guerra Civil Espanhola e se cercasse de alguns filiados ao PC dos EUA.
Ele diria: “Não considerava os comunistas como perigosos à segurança do meu país e alguns dos seus objetivos me pareciam desejáveis. De toda maneira, era um jeito de contribuir para a vitória dos antifascistas na Espanha. Este meu modo de pensar mudou quando a mulher que se tornaria minha esposa (Kitty Oppenheimer, no filme Emily Blunt) desiludiu-se com o Partido Comunista”.
Quem leu “Rumo à Estação Finlândia” (Edmund Wilson, Cia das Letras, 1986) terá facilidade em compreender o mundo social-e-político no qual se formou a esquerda (ou os “liberais”) norte-americana nas décadas de 1920 e 1930. Na qual se inserem (de forma mais evidente ou menos explícita) Oppenheimer e seus amigos-cientistas
“Barbie” vendeu 1,2 milhão de ingressos em sua estreia nessa quinta-feira (20 de julho). O filme de Nolan vendeu menos de um décimo (106 mil). Dados eloquentes. Um, o filme cor-de-rosa, destina-se ao público que busca o puro lazer. O outro, a pessoas que querem conhecer um mundo complexo, palco de confrontos e dilemas éticos: fabricar ou não uma bomba arrasadora, jogá-la sobre a população civil de duas cidades, com a Segunda Guerra já finda, Hitler morto e o Japão isolado? Seguir pesquisas em busca de bomba infinitamente mais potente, a de Hidrogênio?
Em que contexto histórico estes dilemas éticos se apresentaram?
Nolan deixa de lado os efeitos especiais que tanto o fascinam para centrar-se no desempenho de grandes atores e em diálogos maduros e de raro poder de concisão. Num certo momento, um personagem diz a Oppie: “Os amadores buscam o sol e se queimam; os profissionais ficam à sombra”.
A ambiguidade marca todos os personagens. Oppie é um poço de contradições, um homem inseguro frente às mulheres, um “Prometeu moderno” cercado por militares poderosos (caso do General Leslie Groves/Matt Damon) e por amigos sinceros (outros nem tanto). E perseguido por um radical de direita, situado no comando da Comissão Atômica (Lewis Strauss/Robert Downey Jr), de raciocínios e vocabulário complexo, um lorde se comparado aos caricatos trogloditas da extrema-direita brasileira.
Se Nolan quisesse fazer um filme mais espetaculoso e digerível, teria evitado tantas idas-e-vindas em sua larga narrativa e escalado elenco de mais fácil identificação. Claro que Downey Jr é o “homem de ferro” dos quadrinhos cinematográficos. Mas sua composição física o transforma num velho comum. Matt Damon, sim, aparece com seu perfil wasp (branco-anglo-saxão-protestant
As mulheres têm participação comedida no filme. Mas tanto a cientista (e amante) Jean Tatlock, quanto a esposa de Oppie, Kitty, são figuras libertárias, independentes e cheias de atitude (embora a cônjuge, ex-comunista, às vezes se desespere com o fardo dos dois filhos, pois o marido vive mergulhado em suas pesquisas com partículas atômicas).
Como “Oppenheimer” tem muitos personagens – e trama realmente intrincada –, atores famosérrimos (Robert De Niro, Al Pacino e assemelhados) ajudariam a fixar os personagens coadjuvantes na memória do espectador. Mas esse não foi o caminho escolhido por Nolan.
O que nos custa ver o filme duas vezes?
Nem tudo, em nosso tempo de voracidade desenfreada e banalidades entronizadas, existe para desfrute fugaz. Que “Oppenheimer” seja reconhecido por seus imensos méritos em muitas categorias do Oscar, em fevereiro ou março de 2024. A caracterização dos atores, então, é um assombro. O Albert Einstein de Tom Conti e o Presidente Truman, de Gary Oldman, meros coadjuvantes, também enchem a tela.
Oppenheimer
EUA, 2023, 180 minutos
Direção: Christopher Nolan
Elenco: Cillian Murphy, Florence Pugh, Emily Blunt, Matt Damon, Robert Downey Jr, Rami Malek, Kenneth Branagh, Tom Conti, Gary Oldman, Jack Quaid, Josh Peck e muitos outros.
Roteiro: Christopher Nolan + Kai Bird e Martins Sherwin, autores do livro “Prometeu Americano: O Triunfo e a Tragédia de J. Robert Oppenheimer”, base do filme)
Fotografia: Hoyte Van Hoytema
“Trogloditas da extrema-direita brasileira.” #EsquerdaLixo #ForaLulaesuaQuadrilhaComunista