Cinema capixaba faz de Vitória sua grande vitrine e “Represa” coloca Jaguaribara pela terceira vez nas telas

Foto: Equipe de “O Último Rock”, curta capixaba, dirigido por Diego de Jesus

Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória-ES

O Festival de Cinema de Vitória, que acontece na capital do estado com ramificações a municípios do interior, está fazendo de sua trigésima edição potente vitrine da produção audiovisual capixaba.

Na noite inaugural, no Cine-Teatro Sesc Glória, foram exibidos cinco curtas prata-da-casa. Dois de temática infantil (as ficções “O Passarinho Menino”, de Úrsula Dart, e “Trinca Ferro”, de Maria Fabíola), a animação musical “Marcha, Mastro e Fé”, de Arthur Navarro, o experimental “Ruína do Futuro”, de Doroltya Czakó, e o documentário “Mångata – Todas as Fases da Lua”, de Marcella Rocha.

Todos foram aplaudidos com imenso entusiasmo, pois seus atores (mirins, inclusive), equipes técnicas e familiares lotavam quase todas as poltronas disponíveis.

No dia seguinte, mais um filme local, o curta (quase média) “O Último Rock”, de Diego de Jesus, superlotou a sala. Além do elenco dessa ficção de alma documental, protagonizada por atores black, também estiveram no cinema dezenas de crianças de importante projeto social-assistencial de comunidade periférica vitoriana.

O filme narra, ao longo de 24 minutos, vivências de grupo de jovens que se reúne em momento difícil. Uma doença (a epidemia da Covid 19) espalha-se pelo mundo. Estamos em março de 2020 e fala-se abertamente na decretação do recolhimento de todos em seus lares (o lockdown). Mas aqueles jovens da periferia de Vitória têm muitos sonhos. E problemas a enfrentar. Um deles fala de dificuldades laborais, caso a Rede Cinemark, onde trabalha, seja obrigada a fechar seus cinemas ao público. Se tal condição se tornar realidade a empresa o demitirá? Uma jovem evoca a dificuldade de seguir seus estudos de pós-graduação, já que propõe pesquisa com nova bibliografia (não eurocentrista) e professores da Universidade Federal do Espírito Santo parecem impermeáveis ao projeto. Os outros participantes da reunião fazem considerações sobre música e relacionamentos afetivos.

Todos pensam nos impasses do futuro imediato. Quanto tempo vai durar a epidemia, quando poderão se ver de novo, estarem juntos, se abraçarem?

Os aplausos ao filme foram muito calorosos. Mas era tão grande a sua equipe, somada a familiares dos artistas e às crianças do projeto social, que, quando eles se ausentaram do cinema, sobrou um terço da plateia para assistir ao longa cearense “Represa”, de Diego Hoefel.

Muitos filmes capixabas ocuparão, ainda, as retinas dos espectadores até a noite de entrega dos Troféus Vitória, no sábado, 23. Na competição de longas destaca-se o documentário “Toda Noite Estarei Lá”, de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin.

Na competição de curtas brasileiros, com 16 títulos (o festival exibe quase 90 produções no formato) – vindos de várias geografias: do oeste paulista (Assis) a Uberlândia, do Rio a Roraima, de São Paulo a Minas –, o Espírito Santo ocupa quatro vagas. Além de “O Último Rock”, foram selecionados “De Onde Nasce o Sol”, de Gabriele Stein, “Homem”, de Anderson Bardot, e “Remendo”, de Roger Ghil, este o vencedor do principal Troféu Kikito, em Gramado.

Mais três filmes (e quatro videoclipes) – 17 na soma total – compõem a significativa representação capixaba: “Azul da Cor do Mar”, de Natália Dornelles (segmento dedicado a filmes no feminino), “Memórias do Fogo”, de Rita Melo Santos (Cine Ambiental) e “Encruzilhadas no Caos”, de Alex Buck (Cine  Fantástico). Os clipes são “Manifesto”, “Milico” e “Miqueismo”.

Úrsula Dart, que é diretora (de “O Passarinho Menino”), fotógrafa (de “Trinca Ferro”) e produtora das mais atuantes em Vitória, contou no debate da Mostra Foco Capixaba, que a produção local vem crescendo a cada ano. Já passa de uma dezena de curtas e um ou dois longas-metragens (documentais e/ou ficcionais) a cada novo ano.

Diego de Jesus, defensor e praticante do “Cinema Preto”, por sua vez, lembrou que, finalmente, os editais do Espírito Santo passaram a valorizar a expressão de realizadores afro-brasileiros. “Agora contamos com editais afirmativos e ‘O Último Rock’ é um filme preto e periférico”.

FLASHES VITORIANOS

NOVA JAGUARIBARA – O longa-metragem “Represa”, do gaúcho Diego Hoefel, cineasta, roteirista e professor universitário radicado em Fortaleza, é o segundo concorrente, em sua categoria, ao Troféu Vitória. O primeiro foi o documentário “Incompatível com a Vida”, de Eliza Capai, vencedor brasileiro do Festival É Tudo Verdade 2022. Como está na Europa realizando estudos cinematográficos, a documentarista se fez representar, no festival capixaba, pela produtora Mariana Genescá. Já Diego Hoefel subiu ao palco do Cine-Teatro Sesc Gloria para apresentar “Represa”, sua estreia na ficção de longa-metragem. E debateu o filme com o público e a crítica cinematográfica. Como Gramado apresentou dois filmes ambientados na represa de Jaguaribara, no Ceará (o documentário “Memórias da Chuva”, de Wolney Oliveira, e a ficção “Mais Pesado é o Céu”, de Petrus Cariry), nada mais natural que o desejo de se entender por quais razões chegam, num mesmo ano, aos festivais, três filmes incrustados na paisagem física jaguaribarense. Diego não detecta nenhuma razão específica. Para ele, trata-se de coincidência. E mais: “os filmes são bem diferentes” entre si. Em sintéticos 77 minutos, “Represa” mostra o improvável encontro entre dois irmãos, o gaúcho Lucas (Renato Linhares) e o cearense Robson (Gilmar Magalhães). O primeiro chega ao árido sertão nordestino para localizar e vender terreno que herdara da mãe, nascida na velha Jaguaribara, inundada por imenso açude-represa e substituída pela planejada Nova Jaguaribara. Lucas descobrirá que o terreno pertence também a seu (desconhecido) irmão Robson, guia turístico e profundo conhecedor da região. Este, com seu figurino temático, leva interessados à represa, para passeio de barco, prática da pesca e do mergulho. E os busca na madrugada, pois senão o sol inclemente tornará o passeio insuportável. Dois outros personagens – o responsável pela pousada onde Lucas se hospeda e a filha de Robson, interpretados por David Santos e Jenniffer Joingley – marcarão presença significativa na trama, fotografada com grande beleza por Daniel Correia. O filme participou da mostra “Brigth Future”, no Festival de Roterdã, na Holanda.

Cena do filme “Represa”, de Diego Hoefel

DIREITO AO ABORTO (Votação nessa sexta-feira, dia 22) – No debate de “Incompatível com a Vida”, a produtora Mariana Genescá, cúmplice muito articulada de Eliza Capai (as duas trabalharam juntas também em “Espero a tua Re-Volta”) avisou que o longa documental (sobre mulheres que enfrentaram gestação de fetos incompatíveis com a vida e, em alguns casos, imensas dificuldades para praticar o aborto legal, isto durante o governo Bolsonaro-Damares) chegará ao circuito exibidor brasileiro em novembro. E que a ministra Rosa Weber, quinquagésima presidente do Supremo Tribunal Federal (o mandato termina em dois de outubro), não mediu esforços para colocar o direito à interrupção da gravidez (até o prazo de 12 semanas) em pauta. Se não conseguir ver concretizada a realização desse direito pela maioria de seus pares no STF, ela poderá deixar seu voto dado (e mesmo com a aposentadoria ele continuará válido, sendo cumulativo em votações futuras). Mariana lembrou, também durante o debate, que “Incompatível com a Vida” está pré-qualificado a disputar vaga no Oscar de melhor longa documental, pois venceu o Festival É Tudo Verdade (um dos certames credenciados pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood).

ROBÔS NO INTERIOR PROFUNDO – O cineasta Guilherme Xavier Ribeiro participa do Festival de Vitória ao lado de seu co-roteirista e ator Daniel Rone. Eles representam a Cooperativa Oeste de Cinema, baseada em Assis, interior paulista. O curta-metragem, que conquistou o Prêmio da Crítica na Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso e foi selecionado para diversos festivais, conta história das mais curiosas. Na preferia de uma grande (e bolsonarista) cidade do interiorzão paulista, um rapaz de nome Luquinha (Gustavo Rodrigues) tenta recuperar sua égua de estimação (embora fujona). Ele passa a contar com a ajuda de jovens motoqueiros, que vivem do crime em meio ao barulho ensurdecedor da zona urbana do município. Na sequência mais comentada do filme – aquela em que a égua será localizada em avenida movimentadíssima, no meio do trânsito alucinado pelo consumismo natalino – um carrão dos donos do agronegócio aparecerá para “duelar” com os amigos do equino. No único momento não-realista da narrativa perceberemos que (olha o spoiler!) a potente máquina em movimento não conta com condutor. No debate do filme, Guilherme explicou sua metáfora de tons fantásticos: “quando filmamos, as forças conservadoras do interior dominavam o espaço público interiorano. E demonstravam com prepotência esse poder, exibindo-o em carreatas, passeatas e motociatas”. O diretor e sua equipe resolveram, então, colocá-las (as forças dos poderosos) como ausência intencional. “Nosso interesse” – arrematou Guilherme – “era dar espaço a quem não o detinha”. No caso, os moradores da periferia que vivem entre a vida rural (representada pela égua) e urbana (com seus carrões, motos e avenidas congestionadas)”.

DIÁRIO DE UMA BUSCA – Em 2010, a cineasta Flávia Castro realizou documentário de imensas qualidade e coragem – “Diário de Uma Busca”. Treze anos depois, a jovem carioca Júlia Menna Barreto mostra, no Festival de Vitória, o curta “E Nada Mais Disse”. O material de trabalho de Flávia resgatou a memória do pai, militante político anti ditadura militar, que deambulou por diversos países em seu exílio político. Até ser morto em condições obscuras, numa casa em Porto Alegre. A história de Júlia guarda semelhanças com a de Flávia. Mas o tom épico de “Diário de uma Busca” contrasta com o tom intimista (e gráfico) de “E Nada Mais Disse”. Júlia busca vestígios da trágica história paterna em anotações do inquérito judicial que investigou a morte dele, iluminador de teatro (do grupo Nós do Morro, do Vidigal). O pai de Júlia foi encontrado morto com profundo corte no pescoço, feito por estilete. Seu celular e outros pertences estavam a seu lado. A Polícia colou ao fúnebre acontecimento a palavra “suicídio”. A filha, agora cineasta, tinha 17 anos quando tudo aconteceu e iniciava sua trajetória na universidade. E constatou que houve, durante o inquérito, perícia dissonante. Sendo destro, o “suicida” não poderia ter feito o corte tal qual ele se apresentava. Passados 12 anos, Júlia revisitou os autos policiais e não mediu esforços para reunir as poucas imagens do pai. Em algumas delas, registradas em cores – num filme dominado pelo contraste entre o preto e o branco e com muitos black-out – vemos pai e filha em alegres momentos. Ela era, então, uma criança.

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