Aki Kaurismaki ganha retrospectiva na MuBi e “Folhas de Outono”, fecho de sua tetralogia proletária, chega aos cinemas

Por Maria do Rosário Caetano

Aki Kaurismaki viverá um final de ano glorioso no Brasil. Cinéfilos que o conheceram, décadas atrás, por seus primeiros filmes (originais, melancólicos, brechtiano-chaplinianos) exibidos na Mostra Internacional de São Paulo, poderão assistir, no streaming, a imensa retrospectiva de seus 33 filmes (na MuBi, a partir dessa sexta-feira, 17 de novembro).

Duas semanas depois, seu festejadíssimo e mais recente filme — “Folhas de Outono” (foto), pré-indicado ao Oscar internacional — chegará aos cinemas. O novíssimo Kaurismaki desponta como um dos franco-favoritos a figurar no seleto grupo de cinco finalistas a melhor produção internacional (anúncio dia 23 de janeiro).

“Folhas de Outono” é uma encantadora comédia romântico-proletária. Na verdade, um tardio acréscimo a trilogia iniciada em 1986, com “Sombras no Paraíso”, e levada adiante com “Ariel” (88) e “A Garota da Fábrica de Fósforos” (90).

Pois não é que, passadas mais de três décadas, Kaurismaki, 66 anos, maior nome do cinema finlandês, resolveu realizar mais um longa-metragem sintonizado com o mundo do trabalho. Seus personagens vivem de empregos desvalorizados. Ou subempregos. E o fez com sua costumeira originalidade.

“Folhas de Outono”, fecho dessa tetralogia proletária, é protagonizado por trabalhadores dedicados a atividades laborais marcadas por agravante: são desprovidas de direitos trabalhistas. Nos deparamos com verdadeiros representantes do “precariado”, aqueles que ralam muito, mas o fazem sem garantias da rede de proteção social montada, outrora, pelas democracias liberais europeias.

Antes de discorrer sobre este quarto “filme proletário” de Kaurismaki — ao qual Cannes atribuiu o Prêmio do Júri e a crítica internacional laureou com o Troféu Fipresci — vale relembrar seus três antecedentes, todos ambientados em fábricas, minas de carvão ou supermercados, moradias humildes, ruas sórdidas e bares frequentados por almas solitárias.

“Sombras no Paraíso” narra história de amor entre Nikender, um lixeiro, e Llona, uma caixa de supermercado, depois vendedora em loja de roupa feminina. Neste local, ele será humilhado ao ousar visitá-la.

Com seu estilo minimalista e diálogos lacônicos, Kaurismaki constrói encantadora (e desconcertante) love story entre dois “zé-ninguém”. Mas iluminado por um  raio de esperança no desfecho. Sim, o final de “Sombras no Paraíso”, apesar de todas as adversidades e ironias, é feliz. Um navio de cruzeiro, enfeitado com entrelaçada foice e martelo, será o condutor do casal (o lixeiro e sua amada) rumo “à liberdade”. Pelo menos temporária.

Um filme de Kaurismaki feito num tempo em que ele acreditava no socialismo? Afinal, a embarcação enfeitada com o símbolo da união de camponeses-e-operários irá da capital finlandesa para Talim, na Estônia, então uma das 15 repúblicas da União Soviética.  Só que, no frigir dos ovos, Kaurismaki está premiando seus proletários (que sonhavam com destino longínquo) com um microcruzeiro e destino incerto (Talim fica a apenas 80 Km de Helsinque).

O filme seguinte, “Ariel”, considerado — com razão — um dos melhores do cineasta, começa numa mina de carvão. Ao cerrar as portas, os donos do empreendimento deixam os trabalhadores sem rumo. O pai de Taisto, o jovem mineiro-protagonista, não suporta a situação e, antes de suicidar-se, presenteia o filho com um imenso (e velho) carrão branco. Daqueles dos anos pré-crise do petróleo.

O rapaz, motorizado, toma o rumo da cidade grande, mas, “caipirão”, acaba sendo roubado. Perde todo o dinheiro que recebera ao ser demitido da mina. Depois, conhecerá Llona, caixa de supermercado, divorciada e mãe de menino de uns cinco anos. Os dois se envolvem, se apaixonam.

Intempestivo, ao encontrar um dos ladrões que o depenaram, Taisto reage. Vai parar na cadeia. Conta com a solidariedade de Llona, que demitida do supermercado, vai cortar costelas bovinas num frigorífico. E arruma um jeito de ajudá-lo, a ele e a um descolado colega de cela, a reencontrar a liberdade. Mais um final feliz, mesmo que nada tenha a ver com os desfechos catárticos das comédias românticas norte-americanas.

Com seu estilo sedimentado em diálogos lacônicos e presença significativa de música (o que seria de seus filmes sem um rádio portátil?), Kaurismaki constrói mais uma encantadora história de amor, temperada com crime e…. esperança. Mais uma fuga pelo mar, dessa vez no navio Ariel,  rumo ao México.

O terceiro filme da trilogia que virou tetralogia é o mais denso (e desesperador) de Kaurismaki. O começo da narrativa mostra com precisão documental o funcionamento de uma fábrica de caixas de fósforos (com seus palitos que produzem fogo). Da madeira que vai gerar as finas lâminas das caixinhas e seu ingrediente inflamável, todo o processo nos é mostrado. Cabe a Íris, sorumbática protagonista  do filme, acompanhar as máquinas e ver se as caixas de fósforo, empacotas, estão perfeitas para serem comercializadas.

A moça vive uma vida medíocre, junto aos pais que a desprezam. O pouco que ganha na fábrica é entregue a eles. Iris sonha encontrar um parceiro amoroso num dos bailes que frequenta. Mas ninguém a chama para dançar. Um dia, ela vê um vistoso vestido rosa-cheguei  na vitrine e resolve gastar com ele parte do dinheiro que entrega aos pais.

No salão de baile conhecerá um homem que a engravidará. O que veremos a seguir  é doloroso. O final, nem se fala. Em 1990, desapareciam os finais com alguma dose de esperança de Aki Kaurismaki.

Passados 32 anos, o cineasta — decerto menos desesperançado que no alvorecer da década de 1990 — resolveu realizar uma nova comédia romântico-proletária. E irresistível como “Sombras no Paraíso” e “Ariel”. E com o imenso talento que ele demonstrou em “O Homem sem Passado” e “O Porto”, momentos notáveis (luminosos, apesar de sombrios) de sua obra mais contemporânea.

“Folhas de Outono” conta a inusitada história de amor de dois manés de Helsinque. Ela se chama Ansa (Alma Pöusti) e trabalha num supermercado como repositora de mercadorias. Ele, Holoppa (Jussi Votanen) é operário da construção civil. Acaba demitido deste e de outros empregos, ou “bicos” (sem direitos trabalhistas assegurados), porque bebe muito.

Os dois solitários se aproximam e se apaixonam. Ela, que leva vida ordinária num modesto apartamento, com rádio e cachorro, é demitida do supermercado porque leva produto vencido para assar em casa. Os dois acabam se distanciando um do outro por razão prosaica. Ele perde o número de telefone que ela anotou num papel. E um nem sabe o nome do outro.

O reencontro de Ansa e Holoppa se dará para gerar um novo desencontro. Ansa não suporta gente que bebe. O rapaz se nega a abrir mão do vício. O rádio contextualiza o que se passa no Leste Europeu — Guerra da Rússia contra a Ucrânia (e a OTAN). Mas os dois solitários só desejam se reencontrar, viver experiência amorosa, mesmo que outonal, melancólica.

Em entrevista durante o Festival de Cannes (a Elaine Guerini, Valor Econômico, 09/11/2023), Aki Kaurismaki citou os cineastas que ajudaram a fertilizar seu imaginário e estilo único. Um estilo moldado a partir de sua estreia em parceria com o irmão Mika no documentário “Saimara Gesture” e na ficção-solo “Crime e Castigo”, baseada em Dostoiévski. As fontes cinematográficas do finlandês são Charles Chaplin, para ele o maior de todos e o que mais o influenciou, Ozu, Bresson, Carné e Buñuel.

Quem for assistir ao irresistível “Folhas de Outono” verá declarações de amor do cineasta a Chaplin, claro, e a amigos, como Jim Jarmuch (os dois desajeitados namorados assistem ao horror movie “Os Mortos Não Morrem”). Cartazes colados na parede frontal do cinema evocam filmes e mais filmes.

E o happy end, mais uma vez contido, melancólico e doce, mostra sutilmente que Aki Kaurismaki resolveu dar a seus protagonistas, um pouco de felicidade amorosa. Afinal, se no campo laboral seus proletários só se ferram, por que não podem ser felizes na vida a dois? Foram tantos os desencontros e infelicidades que os apartaram ao longo dos  81 minutos da narrativa, que sentimos doce alento ao vê-los finalmente juntos.

Num mundo em que o trabalho e a vida gregário-sindical são cada dia mais precarizados, Kaurismaki nos comove com uma história de amor dentro do possível. Mínima e melancólica. Mesmo assim, o filme traz um “rayto de sol”, aquele que os produtores tanto pediam a Fellini. Um bálsamo num tempo de intolerância e guerras.

Na mostra retrospectiva que a MuBi organizou em sua plataforma dedicada ao melhor do cinema autoral, serão exibidos curtas, médias e longas ficcionais e documentais do finlandês que ama Portugal, seu segundo lar e refúgio contra os dias escuros do inverno nórdico. Seu irmão Mika Kaurismaki também buscou um país de expressão portuguesa — o Brasil — e muito sol para fugir do gelo finlandês. Aqui morou e aqui realizou filmes como “Tigrero” (1994) e “Brasileirinho” (2004), o primeiro sobre a aventura de Samuel Fuller na Ilha do Bananal e o segundo sobre a música dos chorões cariocas.

 

Retrospectiva Aki Karismaki
Data:
a partir de 17 de novembro, 33 filmes, apresentados em etapas
Onde: Plataforma MuBi
Programação: os primeiros títulos a serem disponibilizados são “O Homem sem Passado”, “Luzes na Escuridão” e “O Porto” + “Tavern Man” e o curta “The Foundry”

FOLHAS DE OUTONO
Finlândia, Alemanha, 2023, 81 minutos)
Direção: Aki Kaurismaki
Elenco: Alma Poysti, Jussi Vatanen, Janine Huytianem, Sakari Kuosmanen
Fotografia: Tino Salminen
Produção: Sputik Oy e Bufo
Distribuição: O2 Play e MuBi
Estreia: 30 de novembro

FILMOGRAFIA
Aki Kaurismaki ( Finlândia, 04/04/1957)

1981 –  “Saimara Gesture” (parceria com Mika Kaurismaki)
1983 – Crime e Castigo
1985 – Calamari Union
1985 – Rosso
1986 – Sombras no Paraíso (*)
1987 – Hamlet Vai à Luta
1988 – Ariel (*)
1989 – Os Cowboys de Leningrado
1990 – Contratei um Matador Profissional
1990 – A Garota da Fábrica de Fósforos (*)
1992 – La Vie de Bohème
1994 – Te Cuida, Tatiana
1994 – Total Balalaika Show
1996 – Nuvens Passageiras
1999 – Juha
2002 – Dez Minutos Mais Velho: O Trompete (filme de episódios)
2002 – O Homem sem Passado
2004 – Visões da Europa (filme coletivo)
2006 – Luzes na Escuridão
2007 – Cada um com seu Cinema (filme coletivo)
2011 – O Porto
2022 – Tavern Man (O Taberneiro ou O Tasqueiro)
2021 – Centro Histórico, filme coletivo
2017 – O Outro Lado da Esperança
2023 – Folhas de Outono (*)

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