Cineclube Porta Amarela formou geração de Bong Joon-ho, o criador do oscarizado “Parasita”

Por Maria do Rosário Caetano

Quem quiser conhecer o cineclube que fertilizou a imaginação de Bong Joon-ho, o único estrangeiro a vencer o Oscar com um longa falado em sua língua materna, com estória, atores e locações nativos, deve sintonizar a Netflix e assistir ao documentário “Porta Amarela – O Cineclube dos Anos 90”. Antes do triunfo de “Parasita”, um francês, Michel Hazanavicius, também ganhara o Oscar principal (com “O Artista”). Mas seu filme era mudo e uma ode à mitologia cinematográfica criada por Hollywood.

“Porta Amarela”, documentário dirigido por Lee Hyukrae, não está preocupado com o Oscar. Sua intenção é unir o famoso (e talentosíssimo) Bong Joon-ho a seus colegas geracionais. Em especial, Choi Jon-tae, Lim Hon-a, Lee Dong-hon e Chang Eu-sim. Juntos, eles construíram e dinamizaram o importante, hoje mítico, cineclube.

O quinteto amava o cinema, mas não tinha nenhum conhecimento técnico. Dispunha de dois ou três livros para o estudo audiovisual, quando, na década de 90 do século passado, resolveu enfurnar-se em espaço coletivo, cujo acesso era permitido por discreta porta amarela.

Bong e seus amigos, mulheres e homens, resolveram ler os tais dois ou três livros traduzidos para o coreano (“verdadeiras raridades”) e colecionar o máximo de fitas em VHS que suas economias permitissem. Ao longo do filme, em tom de brincadeira (e alguma gozação), eles vão relembrar dezenas e dezenas de títulos comprados (muitos de vendedores piratas) e armazenados. Cabia ao futuro (e oscarizado) cineasta etiquetar as fitas com títulos coreanos. Um ou outro preservava o nome original, caso de “À Bout de Souffle”, o “Acossado” de Godard, que terá sequências exibidas no documentário de Lee Hyukrae.

O mais cinéfilo dos “porta amarela” vigiava as fitas como um tesouro, fiscalizava quem estava em atraso com a obrigatória devolução e, claro, assistia a tudo que haviam conseguido colecionar. Muitos títulos – a maioria europeus – serão citados (alguns servirão de ilustração  à narrativa) por Bong Joon-ho e sua gangue cineclubista (“éramos vistos como gente esquisita”). “Ladrões de Bicicleta”, de De Sica, e “Salário do Medo”, de Clouzot, são os primeiros.

Depois virão referências a “Noite Americana”, de Truffaut, “Paisagem na Neblina”, de Angelopoulos, o turco “Yol” (O Caminho”), de  Yulmaz Güney, “Gabinete do Dr Caligari”, de Wise, “Charulata”, de Satyajit Ray (este asiático), “Encouraçado Potemkin”, de Eisenstein, “Antes da Revolução”, de Bertolucci, os filmes do iugoslavo Dusan Makavejev, “Nostalgia”, de Tarkovski (com direito a sequência “de seis ou sete minutos” com um homem protegendo a chama de uma vela) etc.

Os sul-coreanos não assistiam a filmes norte-americanos no Porta Amarela?

Claro que assistiam. “Luzes da Cidade”, de Chaplin, “Cidadão Kane”, de Orson Welles, “A Conversação” e “O Poderoso Chefão”, de Coppola, “Touro Indomável”, de Scorsese. Deste, veremos trechos importantes. Em especial, aquele em que o destrutivo boxeador Jake LaMotta (Robert DeNiro) discute com o irmão e gerente bem-intencionado Joey (Joe Pesci).

Do cinema coreano, poucos serão citados. Decerto para não causar ciúmes. Um deles é Kim-Ki Duk (1960-2020), talvez por ter morrido recentemente, em Riga, na Letônia, portanto, longe de casa.

Godard é citado, além do recorrente “Acossado”, por “O Desprezo”. Sempre com entusiasmo. A ligação com a França, que deu a Palma de Ouro a “Parasita” (antes do Oscar da Academia), e costuma servir de vitrine a importantes filmes asiáticos, explicita-se também na busca por “A Chegada do Trem à Estação”, dos Irmãos Lumière.

Em um dos momentos mais saborosos de “Porta Amarela”, Bong e um colega tentam descobrir quantas fitas VHS eles armazenaram no cineclube. Com base em caderno de anotações do diretor de “Okja” e de “O Hospedeiro”, hiper-criativo filme de monstros, a dupla conclui que o acervo chegou a número que variaria entre 500 e 510 títulos. Todos vistos, discutidos e emprestados. E cobrados pelo vigilante zelador da videoteca.

E, afinal, eles tornaram-se (todos) grandes cineastas, esteios da poderosa indústria audiovisual sul-coreana, que hoje ocupa mais de metade de seu mercado interno?

Não. Só dois dos comandantes do Cineclube Porta Amarela dedicaram-se à direção cinematográfica. Bong Joon-ho, claro, tornou-se o mais bem-sucedido de todos. E outro deles fez cinco longas. Mas, talvez para não reduzir o brilho do coletivo cineclubista, o documentário não personaliza as glórias bonguianas. Nem a espantosa bilheteria de “O Hospedeiro”, que vendeu milhões e milhões de ingressos, deixando pesos-pesados made in USA comendo poeira. Nem o feito histórico de conquistar a Palma de Ouro em Cannes, seguida do Oscar de melhor filme (derrotando a nata da produção anglo-saxã). E melhor filme internacional.

No final, o destino de cada um dos principais integrantes do Cineclube Porta Amarela é anunciado. Um tornou-se psicólogo, outra desenhista. Houve quem se dedicasse ao montanhismo. Ou virasse professor de Matemática. Uma dedicou-se ao magistério no campo cinematográfico. Outra tornou-se fonoaudióloga. Um deles deixou a Coreia do Sul, radicando-se nos EUA e dedicando-se a atividades empresariais.

Sobre Bong Joon-ho, ouvimos frase lacônica: “ele prepara seu oitavo longa-metragem”. Ah, o documentário dá indícios claros de que o mais vocacionado ao audiovisual era mesmo o futuro diretor de “Memórias de um Assassino”. Ele comprou uma câmera e realizou seu primeiro curta. Uma narrativa bem maluca e amadora, que mostrava uma lagarta e um bicho de pelúcia metidos em muitas peripécias. Os que observaram bem o trabalho do novato artífice perceberam nele uma ou outra (futura) recorrência, em especial o apego a subsolos e porões.

É impossível falar em “Porta Amarela – O Cineclube dos Anos 90” sem citar o mais famoso e seminal dos filmes de Akira Kurosawa, um dos deuses do celuloide asiático: “Rashomon” (Japão, 1950, Leão de Ouro em Veneza e Oscar estrangeiro). Quando os cineclubistas coreanos dão versões diferentes para momentos evocados em seus divertidos depoimentos, um (ou outro) brinca: é o efeito “Rashomon”.

 

Porta Amarela – O Cineclube dos Anos 90
Documentário, 84 minutos, Coreia do Sul, 2023
Direção: Lee Hyukrae
Participação: Choi Jon-tae, Lim Hon-a, Lee Dong-hon, Chang Eu-sim e Bong Joon-ho
Onde: Netflix

 

FILMOGRAFIA
Bong Joon-ho (Coreia do Sul, 17 de setembro de 1969)

2024 – “Mickey 17” (em finalização)
2022  – “Expresso do Amanhã”
2019 – “Parasita”
2017 – “Okja”
2009 – “Mother – A Busca pela Verdade”
2006 – “O Hospedeiro”
2003 – “Memórias de um Assassino”
2000 – “Cão que Ladra Não Morde”

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