Série sobre Brigitte Bardot traça denso e atormentado retrato da bela e insegura musa francesa
Por Maria do Rosário Caetano
Quem começar a assistir à série “Bardot – E Brigitte Criou B.B.”, dificilmente conseguirá deixar os próximos capítulos (seis ao todo, de 52 minutos cada) para o dia seguinte. Experimente fazê-lo no streaming do Festival Varilux – gratuitamente e sem nenhuma burocracia – até dia 22 de dezembro. E resista se for capaz.
Criada, escrita e dirigida pela dupla Danielle & Christopher Thompson, a série é de fina concepção e manufatura. Tem uma atriz, a franco-argentina Julia de Nunez, que afigura-se como uma espécie de Brigitte ressuscitada. Elenco jovem e cheio de frescor soma-se a veteranos em estado de graça. Victor Belmondo (neto do astro acossado Jean-Paul Belmondo) interpreta um irresistível Roger Vadim, primeiro marido e “pai eterno” da insegura ex-esposa. Moham Edge impressiona na pele do introspectivo Jean-Louis Trintignant, o segundo amor da jovem estrela.
Os pais de Brigitte, os burgueses Pilou e Toty, encontram em Hippolyte Girardot e Géraldine Pailhas a representação exata. Yvan Attal faz do produtor Raul Levi um personagem inesquecível. E Anne de Ny encanta como a agente da atriz, a ultraeficiente Olga Horstig.
A estrela parisiense, hoje quase nonagenária, é vista apenas da adolescência aos primeiros sucessos no cinema. Dos 15 anos, quando vai fazer teste no escritório do produtor Marc Allegret (Charles Clément) e conhece Roger Vadim, até a realização do filme “La Veritée”, dirigido em 1960, pelo implacável George-Henry Clouzot.
No final dos anos 1940, Brigitte vivia com os pais e a irmã Mijanou, num lar burguês. Gazeteava aulas e estudava dança clássica. Posava, sempre que possível, para capas de revista. Aos 21 anos, o filho de imigrantes russos, Roger Vadim, atuava como auxiliar de Allegret. Ele ficou em estado de encantamento ao deparar-se com os lábios carnudos e o corpo escultural da Lolita francesa. Os dois seriam tomados pela paixão, para desespero dos pais ricos, católicos e tradicionalistas da ninfeta. Mas Brigitte e Vadim acabariam se casando, depois dela transar “mil vezes com ele”, no quartinho que o aspirante a cineasta dividia com o ator Christian Marquand (Cesar Chouraki). Casados, ele a dirigirá (e a revelará ao mundo) em “E Deus Criou a Mulher” (1956).
A série terminará no ano de 1960, quando Brigitte fará sua prova de fogo como atriz, enfrentando terríveis e desgastantes testes impostos por George Henry Clouzot, que a dirigiria no noir “La Veritée”. Isto depois dela dar à luz a seu único filho, Nicolas, fruto de seu segundo (e tumultuado) casamento, dessa feita com o ator Jacques Charrier. Um filho sonhado pelo jovem pai (dois anos mais novo que BB) e indesejado por ela. Que não o criou, por falta de vocação materna e porque apaixonou-se por outro ator, Sami Frey, seu parceiro em “Lá Veritée”.
Charrier ficou com a guarda do filho, que, aos 63 anos, não mantém boas relações com a mãe. Tanto que ambos a processaram quando ela publicou sua autobiografia. Não concordaram com o que Brigitte escreveu sobre o ex-marido. Venceram-na nas barras dos tribunais e, por isso, fizeram jus a indenização pecuniária.
Na série, os Thompson utilizam letreiro para registrar a discordância dos Charrier com o testemunho de B.B. E o respectivo triunfo judicial de pai e filho. Afinal, a narrativa da série adota somente o ponto-de-vista de sua protagonista.
Como costumam fazer os franceses, fiéis aos rumos tomados pelos fatos (posição oposta à dos folgados Ridley Scott e David Scarpa em “Napoleão”) há letreiro, na série, destinado a dirimir dúvidas do público.
Os diretores, que são também os roteiristas, avisam que há um único personagem fictício na trama, o paparazzo Enzo (Giusepe Maggio), usado para representar centenas de paparazzi que cercavam a estrela parisiense com suas câmaras invasivas, estivesse ela onde fosse (em Saint-Tropez, em seu apartamento parisiense, no hospital, num carro com um novo namorado etc., etc.).
A Brigitte da série é uma mulher libertária (em tudo distante da senhora que hoje vota na extrema-direita), mas muito insegura. Aos 25 anos, já desmanchara dois casamentos (um de forma razoavelmente tranquila, pois Vadim “aceitou” perdê-la para um de seus atores, Trintgnant; o outro de forma traumática). Sim, Jacques Charrier, que abandonou o segundo papel de “O Sol por Testemunha” (René Clément, 1960) – sendo substituído por Maurice Ronet (o primeiro papel sempre foi de Alain Delon) –, nunca perdoou a ex-mulher.
Além dos casamentos de papel passado, Brigitte viveu uniões tumultuadíssimas com dezenas de atores e cantores franceses (Sacha Distel, Gilbert Bécaud, Sami Frey…. a lista é vasta).
Curioso notar a presença militar na vida de B.B. Jean-Louis Trintgnant, que terminou um sólido casamento para ficar com a “mulher criada por Deus”, foi convocado pelas Forças Armadas para prestar serviço militar. Designado a bater continência na Alemanha, ele vivia o pavor de ser mandado para a Guerra da Argélia.
A própria atriz, que recebia o namorado fardado para fugazes noites de amor, fez tudo para impedir que ele fosse servir na colônia rebelada. Ela até apelou a François Mitterrand, futuro presidente da França, que então ocupava cargo de ministro de Estado. E era parente da “primeira produtora” de sexo feminino a dedicar-se a tal ofício na França dos anos 1950-60.
O segundo sogro de B.B., o pai de Jacques Charrier, era coronel. E o filho, já vivendo sua história de amor com Brigitte, foi engajado às Forças Armadas e mandado para a Guerra da Argélia. Voltaria dias depois para viver os meses mais loucos de sua vida. Meses que somariam tentativa de suícido, a gravidez indesejada pela mulher, união civil tumultuada pelos paparazzi e por indecisão da noiva, além de internação em clínica psiquiátrica.
Devotos de Nossa Senhora do Contexto, os Thompson recorrerão a cinejornais para mostrar B.B. causando furor até em evento promovido pela Rainha Elizabeth II ou a dor de Jacques Charrier ao ver o imenso êxito de Alain Delon, que seria seu parceiro de cena em “O Sol Por Testemunha”.
A dupla fará questão de referenciar a Guerra da Argélia e destacar discursos proferidos por De Gaulle. Além de manchetes de jornais sérios e, principalmente, dos sensacionalistas. Estes, afinal, viviam sem descanso em torno de Brigitte, caçando notícias escandalosas e imagens picantes da deusa insegura.
Brigitte Bardot irá autorizar uma nova temporada da série dos Thompson? Aceitará exposição de fatos que sequenciaram sua vida e carreira interrompida no começo da década de 1970? Depois do apogeu, suportará ver seu crepúsculo narrado para milhões de espectadores?
Na França, a recepção crítica à série foi muito boa. A média das cotações dos jornais e revistas resultou em quatro estrelas (em cinco possíveis). A do público foi um pouco menor (3 pontos).
Além dos excelentes roteiro e direção dos Thompson (com enfoque feminista sem proselitismo, tudo flui organicamente), da complexidade dos personagens (inclusive dos coadjuvantes), dos cenários (e figurinos) de grande beleza, ainda somos presenteados com o olhar crítico jogado sobre a mídia sensacionalista e a caretice burguesa. Por tudo isso, só nos resta recomendar, com entusiasmo, que todos assistam à série até a dará limite, 22 de dezembro. Será que ela encontrará espaço nas grandes plataformas de streaming ofertadas no Brasil?
E, por fim, torcer por continuação que abarque os anos compreendidos entre 1963, quando, sob direção de Godard, Brigitte protagonizou “O Desprezo”, até a década em que, beirando os 40 anos, ela deixou os sets e foi substituída por outros torpedos hormonais. O último filme de B.B. foi o obscuro “Colinot Trousse-Chemise” (Nina Companeez, 1973). Quem sabe, na continuação da série, o famoso passeio de B.B. ao Brasil, em especial a Búzios, traga a narrativa ao balneário fluminense!
Bardot – E Brigitte Criou B.B
França, 2023, série em seis capítulos de 50 minutos cada
Direção e roteiro: Danielle e Christopher Thompson
Elenco: Julia de Nunez, Victor Belmondo, Hippolyte Girardot, Geraldine Pailhas, Yvan Attal, Anne de Ny, Cesar Chouraki, Moham Edge, Charles Clément, Jean Paul Bordes, Carolina Gay (como Vera Amado Clouzot), Fabián Wolfrom, Mikael Mittelstadt, Giuseppe Maggio e Jean Franco (este no papel do mordomo de Brigitte)
Fotografia: Michel Amathieu
Onde: Festival Varilux – gratuito até 22 de dezembro