“Vida de Cinema” condensa trajetória de Nelson Pereira com testemunho pessoal e trechos de seus filmes

Por Maria do Rosário Caetano

Nelson Pereira dos Santos realizou muitos documentários ao longo de sua carreira de cineasta. O mais importante deles foi a “A Música Segundo Tom Jobim”. Ao conceber o filme sobre o maestro soberano, Nelson abriu mão da colheita de depoimentos. Construiu sua narrativa, em parceria com Dora Jobim, com poderosas imagens de arquivo e recorreu às composições do retratado, situadas entre as melhores de nosso cancioneiro popular.

Ao decidirem realizar “Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema” — estreia dessa quinta-feira, 16 de novembro — as diretoras Aída Marques e Ivelise Ferreira adotaram caminho semelhante. Ou seja, procuraram valorizar as ricas lembranças e reflexões de Nelson sobre seus 60 anos dedicados ao cinema.

Tudo devidamente valorizado com trechos de seus muitos filmes, ficcionais (em maioria) e documentais. Incluindo aqueles que apontaram novos rumos para o cinema brasileiro (“Rio 40 Graus”, “Rio Zona Norte”). E aquele, especialíssimo, que encantou o mundo (“Vidas Secas”).

Sem esquecer os longas-metragens realizados, em um tempo de trevas, com o bando libertário de Paraty (“Azyllo Muito Louco”, “Como Era Gostoso o meu Francês”). Um tempo em que, sob o arbítrio assegurado pelo AI-5, a “ditadura escancarada” obrigava os cineastas a recorrer ao que Antônio Houaiss chamou de “Neo-barroquismo”. Filmes alegóricos e de difícil fruição pelo grande público.

Depois dos anos difíceis, Nelson, que aclimatara o Neo-Realismo ao Brasil da década de 1950, se dedicaria a um cinema mais comunicativo, do qual “O Amuleto de Ogum” seria a obra anunciadora. Com ele pôde mostrar respeito aos cultos afro-brasileiros. Antes — testemunhará em “Vida de Cinema” — “eu subia o morro, passava por um despacho, mas não o via”.

No documentário de Ivelise e Aída, reencontraremos imagens de filmes de Nelson que foram criadas a partir do diálogo com dois escritores em especial — Graciliano Ramos e Jorge Amado (sem esquecer Machado de Assis e Nelson Rodrigues). Será dos mais significativos o aproveitamento de trechos de “Memórias do Cárcere”. E da fase baiano-amadiana do realizador paulista, cidadão adotivo do Rio de Janeiro, sua principal base de ação.

Jorge Amado aparecerá no documentário em imagens colhidas durante as filmagens de “Tenda dos Milagres”, mais uma das produções de Nelson protagonizadas por personagem afro-brasileiro (o bedel Pedro Arcanjo interpretado por Jards Macalé e Juarez Paraíso). Um homem que valoriza a história e os cultos de sua gente e enfrenta as ideias racistas do catedrático Nilo Argolo (Nildo Parente).

O primeiro protagonista negro de Nelson foi Grande Otelo. Ele tem presença vital no documentário “Vida de Cinema”. O sambista Espírito da Luz, de “Rio Zona Norte” — que Otelo considerava seu maior papel no cinema —  nasceu para ficcionalizar a história de Zé Kéti. Em prazerosa entrega, o artista emana luz (apesar de sua trágica vida) com seu olhar de felicidade, seja ao ouvir Angela Maria interpretando seu samba “Malvadeza Durão”, seja com o rosto ao vento num vagão de trem da Central (imagem-cartaz do filme de 1957, reutilizada com rara felicidade em outro documentário recente — “Othelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi).

Ivelise, parceira de Nelson desde as filmagens “A Terceira Margem”(realizadas em Paracatu e Brasília), conta que ela e Aída, montadora e professora UFF, dispuseram de 80 horas de imagens de arquivo para processar em intensos 102 minutos.

Em busca da síntese, não puderam dedicar-se com vagar a toda a vasta obra de Nelson. Nem deter-se no documentarista que ele foi (além de dois filmes dedicados a Tom Jobim, Nelson registrou a trajetória de Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala”, Sérgio Buarque de Hollanda, em “Raízes do Brasil”, e Zé Kéti , em “Meu Compadre Zé Kéti”). Aliás, nunca foi intenção das documentaristas dirigir um filme exaustivo, de três ou quatro horas.

A dupla queria mostrar os momentos mais luminosos do realizador e tirar do esquecimento alguns de seus filmes. Caso do polêmico “A Estrada da Vida”, dedicado à dupla sertaneja Milionário e Zé Rico, que fez sucesso relativo no Brasil e rendeu ótima acolhida na China.

Quando “Vida de Cinema” ficou pronto, Ivelise fez questão de realizar, no Festival de Cannes, sua avant-première. A curadoria do evento o colocou na mostra “Cannes Classics”. Ivelise lembra que o festival francês foi a poderosa vitrine de “Vidas Secas”, laureado em 1964, com o Prêmio do Ofício Católico de Cinema (hoje, Signis) e o Prêmio da Juventude (Júri Jovem). E, exatos 20 anos depois, acolheria “Memórias do Cárcere”, laureado com o Prêmio Fipresci (da Crítica Internacional). No mesmo festival francês, Nelson apresentaria outros quatro longas-metragens (“Azyllo Muito Louco”, “O Amuleto de Ogum”, “Quem é Beta?” e “Como Era Gostoso o meu Francês”).

Nome maior do cinema brasileiro, o diretor de “Fome de Amor” recebeu, com “Vida de Cinema”, o tributo que merecia. Faz bem vê-lo como “ator improvisado” em “Mandacaru Vermelho”, filme igualmente improvisado (choveu no cenário de “Vidas Secas” e ele tapou o buraco com um singelo “nordestern”).

Dá gosto, igualmente, ver Jece Valadão e Odete Lara dando vida cinematográfica à peça “O Boca de Ouro”, fruto do diálogo dos dois Nelson, o dramaturgo e o cineasta, com o “Rashomon”, de Kurosawa (Leão de Ouro em Veneza, 1950). E o pernambucano, que de saída avisara ao cineasta — “faça o que quiser, eu não entendo nada de cinema” — depois emitiu opinião bem ao seu estilo: “mas xará, você puritanizou a minha obra”.

Por fim, deve-se aproveitar o documentário de Ivelise e Aída para prestarmos a devida atenção à frutífera relação de Nelson Pereira dos Santos, que seria professor de cinema na UnB e na UFF, com o jornalista Pompeu de Souza. Relação, por sinal, muito valorizada por “Vida de Cinema”.

O elétrico Pompeu, editor do Diário Carioca e futuro criador da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, foi peça-chave na campanha que liberou “Rio 40 Graus” do obscurantismo da censura. Nelson, que fizera o filme em sistema de cooperativa, com pouquíssimos recursos, viu seu primeiro longa-metragem acusado de subversivo pela Polícia do Rio de Janeiro. Que o interditou.

Ele foi atrás de Pompeu para pedir ajuda, pois necessitava liberar sua primeira produção com a maior urgência possível. O editor do Diário Carioca, então com 41 anos, olhou para Nelson, de 26, e retrucou: “mas, meu filho, eu não entendo nada de cinema”. Mesmo assim, ouviu a história do cineasta desesperado e, dali em diante, fez das páginas do jornal carioca ruidosa trincheira em defesa da liberdade de expressão e, claro, do filme do jovem estreante.

Menos de dez anos depois, Pompeu de Souza convidaria Nelson, então diretor consagrado de “Vidas Secas”, a implantar, com Paulo Emílio Salles Gomes, o curso de cinema da UnB.

O resto é história. A bela história de uma vida inteira dedicada ao cinema por um dos maiores artífices do audiovisual brasileiro.

 

Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema
Brasil, 2023, 102 minutos
Direção: Aída Marques e Ivelise Ferreira
Argumento: Ivelise Ferreira
Roteiro: Bernardo Florim, Ivelise Ferreira, Aída Marques e Luiz Guimarães de Castro
Pesquisa de imagens: Laís Rodrigues
Montagem: Luiz Guimarães de Castro
Composição e regência musical: Tim Rescala
Produção: MP2 , com coprodução da Globo Filmes, GloboNews e Canal Brasil
Distribuição: Bretz Filmes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.