“Mais um Dia, Zona Norte”, “Rodas de Gigante” e os curtas “Pastrana” e “Instante” são os vencedores do Festival de Brasília
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília-DF
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro encerrou sua quinquagésima-sexta edição em demorada cerimônia, que entrou madrugada adentro e distribuiu 51 prêmios e menções honrosas. E sem a exibição do filme convidado “Raoni, uma Amizade Improvável”, de Jean-Pierre Dutilleux, cancelado devido a desentendimentos financeiros entre o cacique Kaiapó e o cineasta belga.
Depois de imenso atraso e maratona de 195 minutos (o último prêmio foi entregue às 1h15 deste domingo), a plateia estava exausta. Se não bastassem os múltiplos prêmios dos júris oficiais e paralelos, os colegiados resolveram atribuir prêmios extras, como “melhor roteiro de temática afirmativa” e seis menções honrosas. Uma verdadeira reforma agrária de troféus. Raros foram os não-laureados.
Os longas-metragens “Mais um Dia, Zona Norte”, do carioca Allan Ribeiro, e “Rodas de Gigante”, da brasiliense Catarina Accioly, foram os vencedores da competição nacional e da candanga. No terreno dos curtas, os júris elegeram o gaúcho “Pastrana”, de Gabriel Motta e Melissa Brogni, e “Instante”, da brasiliense Paola Veiga.
A cerimônia de premiação poderia ter sido ainda mais cansativa e infindável, passando das quatro horas, se todos os premiados estivessem presentes no Cine Brasília e subissem ao palco para receber troféu e entoar agradecimentos. Por sorte, a hilária e espirituosa atriz Ana Luíza Bellacosta, uma força da natureza, somou forças com o ator Rocco Pitanga. Ela pintou e bordou. Até tocou duas flautas simultâneas… pelas narinas!
Todos os júris se pautaram pelo distributivismo. As delicadas histórias dos quatro protagonistas de “Mais um Dia, Zona Norte”, urdidas com sensibilidade e afeto por Allan Ribeiro, somaram cinco Troféus Candango (incluindo o prêmio da Crítica) e uma menção honrosa. E garantiram 50 mil reais em divulgação no (do) Canal Like.
Os principais concorrentes de “Mais um Dia, Zona Norte” – o pernambucano-gaúcho “A Transformação de Canuto” e o mineiro “O Dia que te Conheci” – foram laureados em importantes categorias.
“Canuto” entra para a história do festival como o primeiro longa-metragem escrito e dirigido por um indígena (o guarani Ariel Kuaray Ortega, em parceria com Ernesto Carvalho) a disputar o Troféu Candango. A dupla levou a láurea pela melhor direção, melhor fotografia (da craque Camila “Chão” Freitas) e roteiro afirmativo.
A comédia amorosa de André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico, único longa já mostrado em diversos outros festivais (os outros cinco eram 100% inéditos), também levou quatro troféus Candango. Incluindo melhor atriz (Grace Passô) e melhor ator (Renato Novaes), em desempenhos de ponta e aliciadores.
O documentário “No Céu da Pátria nesse Instante”, de Sandra Kogut, que causou furor junto à politizada plateia do Cine Brasília, levou o Prêmio Especial do Júri e teve sua montagem festejada.
O representante de Brasília na competição nacional, a ficção científica “Cartório das Almas”, de Leo Bello, foi o escolhido do público e levou dois prêmios técnico-artísticos (direção de arte, para Maíra Carvalho, e som, para Olívia Fernandez).
Só um dos seis competidores ficou sem prêmio: o paulistano “Nós Somos o Amanhã”, de Lufe Steffen, fantasia musical gay, na qual adultos interpretam crianças.
Um dos grandes favoritos ao Troféu Candango – o documentário, com complexas inserções ficcionais “A Transformação de Canuto” – escolheu o Festival de Brasília como sua primeira vitrine brasileira. Depois de conquistar dois troféus na meca do cinema documental, o IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã), o longa (130 minutos) de Ariel e Ernesto chegou cercado de curiosidade.
O que se viu na tela do Cine Brasília foi um filme realmente impressionante, fruto de anos de trabalho do Coletivo Mbyá-Guarani, atuante na região gaúcha dos Sete Povos das Missões, em parceria com seu vizinho argentino, o Coletivo Arapyaú. E com o seminal Vídeo nas Aldeias na retaguarda.
Antes de mais nada há que se lembrar que “Canuto” dissolve fronteiras geográficas (entre Brasil e Argentina) e estético-narrativas (lança mão de procedimentos documentais e ficcionais, embaralhando-os com imensa liberdade). O filme, em uma de suas fases de montagem, se propunha a separar suas partes documental e ficcional. Foi a argentina Lucrécia Martel (“O Pântano”) que, depois de discutir o filme com seus diretores, sugeriu que misturassem tudo. A ideia foi assimilada.
Vale notar que, nesta edição do Festival de Brasília, três longas-metragens tiveram a América Latina como espaço geográfico. Além do filme de Ariel e Ernesto, houve “Rodas de Gigante”, de Catarina Accioly, que transitou por Uruguai e Brasil com imensa desenvoltura. E André Luiz Oliveira, que uniu Brasil e Argentina em “Ecos do Silêncio”, para depois transmigrar para a mística Índia e sua cidade sagrada de Varanasi.
“A Transformação de Canuto” se passa numa pequena comunidade, a Mbyá-Guarani, no extremo sul do Brasil, numa babel linguística que soma os idiomas Guarani, o português e o espanhol. Até o portunhol. Lá, todos conhecem o nome Canuto, um homem que teria, muitos anos atrás, se transformado em onça e, depois, tomado por destino sombrio.
Ariel Kuaray Ortega, aluno de oficinas do projeto Vídeo nas Aldeias (criado por Vincent “Martírio” Carelli) e hoje o mais festejado cineasta indígena do país, foi uma das crianças que cresceram ouvindo a história de Canuto. E que sonhou resgatar tal história em forma de documentário ou ficção.
O projeto se desenvolveu por mais de uma década, contando do início do roteiro até sua estreia mundial no Festival de Amsterdã. O que Ariel não imaginava é que ele seria, além de diretor e um dos roteiristas, o intérprete do Canuto adulto. Para a meninice do indígena que virou onça foi escalado o inquieto Álvaro Benitez. O garoto imanta a tela com seu olhar profundo e arredio. E com destreza rara na montagem de armadilhas de caça.
“A Transformação de Canuto” constrói-se como obra metalinguística, mas sem escravizar-se ao fetiche do “filme dentro do filme”. Tudo flui com naturalidade e vivacidade. A Comunidade Mybia-Guarani se mobiliza em torno da ideia de produzir narrativa audiovisual que relembre a conturbadas trajetória de Canuto. O que as pessoas mais velhas sabem dele? Como retratar sua história? Por que ele “virou onça”? Isto aconteceu mesmo? Ou trata-se de uma lenda?
E aí, depois de tantas indagações, surgiram as questões cinematográficas propriamente ditas. Quem vai interpretar o personagem em sua infância e, depois, na maturidade?
Começa, então, a busca. A meninada é reunida para que se escolha o Canuto criança. A unanimidade se forma em torno de Álvaro Benítez. Como o personagem real, ele é órfão, foi criado com pai adotivo e tinha alma de caçador (como o Canuto real). Ao longo do processo, surge um Canuto que ruma para a fase adulta (Thiny Ramirez) e, finalmente na pele de Ariel Kuaray Ortega, ele vai “transformar-se em onça” e seguir caminhos sombrios.
No debate do filme, o último a ser exibido na competição nacional, Kuaray reafirmou intenção explícita em todos os seus trabalhos: nunca romantizar a figura do indígena. Ele detecta tal ”romantização” na maioria das obras dedicadas aos povos originários, vistos como intocados, em sintonia plena com a Natureza, sem contato com o mundo dito civilizado.
Por isso, o Canuto do filme premiado em Amsterdã é um homem conflagrado, que recorre ao álcool excessivo e vive dolorosos padecimentos.
Se “A Transformação de Canuto” tivesse ganho o prêmio principal, estaria na boa companhia de “A Invenção do Outro”, que Bruno Jorge realizou com o povo Yanomami e que sagrou-se o grande vencedor do Festival de Brasília do ano passado.
A escolha do júri, porém, recaiu sobre outro docfic, o do carioca Allan Ribeiro. Felizmente, duas obras 100% inéditas, que escolheram o mais antigo e tradicional festival do país (já próximo da sexagésima edição) como primeira vitrine. Este ano, o evento foi realizado a toque de caixa, em “apenas 44 dias, quando o ideal são ao menos 120 dias”. Que, no ano próximo, ele aconteça em sua data histórica (a primavera) e não a uma semana dos festejos natalinos. E só aceite ser primeira vitrine.
Milagrosamente, num ano em que o Festival do Rio “passou o rodo” e exibiu dezenas de longas 100% inéditos, Brasília conseguiu cinco títulos não-vistos em território brasileiro. Sinal de que sua tradição e rechonchuda taxa de aluguel ou “cachê de seleção” (R$30 mil para longas e R$10 mil para os curtas) ainda calam fundo na sensibilidade dos produtores e realizadores.
Por fim, dois registros: a Mostra Brasília teve sua melhor edição. E os três curtas mais premiados da mostra nacional foram realmente os melhores. O gaúcho “Pastrana”, sobre rapaz que dedicou-se a uma espécie de “surfe no asfalto” e por ele perdeu sua juventude, transporta para a tela a vertigem do esporte radical.
“Remendo”, o curta-sensação do ano (premiado em Tiradentes, Gramado e Vitória) foi aceito apesar da quebra de cláusula histórica do Festival de Brasília: não aceitar filmes laureados com o principal troféu em outros festivais de peso. Mas, selecionado, foi analisado pelo júri e ganhou troféus de direção, Crítica-Abraccine e melhor ator, para seu maravilhoso protagonista, o capixaba Elídio Netto. Sua criadora, a cineasta e pensadora Roger Ghill (ou GG Fákọ̀làdé), é dona de talento subversivo e desconcertante. O que nos motiva a ficar de olho em seus próximos projetos. E em seu primeiro longa-metragem, que ela concebe enquanto prepara sua tese de doutorado na UFES. Embora pareça muito agressiva em suas performances, GG é disciplinadíssima (a primeira a chegar a seus compromissos) e muito afetuosa.
“Erguida”, dirigido, escrito e protagonizado por Jhonnã Bao, premiou a talentosa atriz que ela é. Articuladíssima, dona de discurso firme e escandido com brilho e vivência, Jhonnã concebeu sua envolvente autoficção com muita paixão. E o fez para mostrar a volta por cima de uma transexual da periferia paulistana, que troca lágrimas por versos.
Da Mostra Brasília a constatação de que pelo menos dois de seus concorrentes (o grande vencedor, o documentário “Rodas de Gigante”, e a ficção “Ecos do Silêncio”) caberiam muito bem na competição nacional.
Confira os vencedores:
LONGA-METRAGEM BRASILEIRO
. “Mais um Dia, Zona Norte”, de Allan Ribeiro (RJ) – melhor filme, Prêmio da Crítica (Abraccine), atriz coadjuvante (Valéria Silva), ator coadjuvante (Victor Veiga), trilha sonora (Allan Ribeiro e Tibor Fittel) e menção honrosa ao ator Silvio Fernandes
. “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho (PE, SP, RS) – melhor direção, fotografia (Camila Freitas), roteiro de temática afirmativa (Ariel Kuaray Ortega, Ernesto de Carvalho, Miguel Antunes Ramos, Patrícia Ferreira, Ralf Ortega)
. “O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira (MG): melhor atriz (Grace Passô), ator (Renato Novaes), roteiro (André Novais Oliveira), Prêmio Zózimo Bulbul
. “No Céu da Pátria nesse Instante”, de Sandra Kogut (RJ) – Prêmio Especial do Júri, melhor montagem (Renata Baldi e Sandra Kogut)
. “Cartório das Almas”, de Leo Bello (DF) – Júri Popular, melhor direção de arte (Maíra de Carvalho), edição de som (Olívia Hernandez)
CURTA-METRAGEM BRASILEIRO
. “Pastrana”, de Gabriel Motta e Melissa Brogni (RS) – melhor curta-metragem, Júri Popular, Prêmio Canal Brasil, montagem (Bruno Carboni)
. “Remendo”, de Roger Ghil (GG Fákọ̀làdé) (ES) – melhor direção, Prêmio da Crítica (Abraccine), ator (Elídio Netto)
. “Erguida”, de Jhonnã Bao (SP) – melhor atriz (Jhonnã Bao), roteiro de temática afirmativa (Jhonnã Bao), Prêmio Zózimo Bulbul
. “Helena de Guaratiba”, de Karen Black (RJ) – melhor fotografia (Pedro Rodrigues) e trilha sonora (DJ Machintal)
. “Vão das Almas”, de Edileuza Penha de Souza e Santiago Dellape (DF) – Júri Popular, menção honrosa
. “Dona Beatriz Ñsîmba Vita”, de Catapreta (MG) – melhor roteiro (Catapreta)
. “Cáustico”, de Wellington Gondim (DF) – melhor direção de arte (Carmen San Thiago)
. “Axé Meu Amor”, de Thiago Costa (PB) – melhor edição de som (David Neves)
. “Cidade by Motoboy”, de Mariana Vita (SP) – menção honrosa
MOSTRA BRASÍLIA (Prêmio Câmara Legislativa do DF)
. “Rodas de Gigante”, de Catarina Accioly – melhor longa-metragem, direção, montagem (Sergio Azevedo), Prêmio Saruê do Correio Braziliense
. “Instante”, de Paola Veiga – melhor curta-metragem, atriz (Roberta Rangel), roteiro (Roberta Rangel, Paola Veiga e Emanuel Lavor)
. “Ecos do Silêncio”, de André Luiz Oliveira – melhor ator (Thalles Cabral), melhor fotografia (Krishna Schmidt e André Carvalheira)
. “O Sonho de Clarice”, animação de Fernando Gutierrez e Guto Bicalho – direção de arte (João Capoulade, Juliet Jones e Sarah Guedes), trilha sonora (Cesar Lignelli), edição de som (Fernando Vieira e Francisco Vasconcelos)
. “Não Existe Almoço Grátis”, de Marcos Nepomuceno e Pedro Charbel – Júri Popular, menção honrosa
. “Nada se Perde”, de Renan Montenegro – Júri popular, menção honrosa
. “Estrela da Tarde”, de Francisco Rio – menção honrosa
. “A Chuva do Caju”, de Alan Scharvsberg – menção honrosa do Júri do Prêmio Zózimo Bulbul